“Pós-pandemia, jamais seremos os mesmos”, diz psicanalista
Já é possível supor mudanças nas relações afetivas e interpessoais, segundo Dora Gurfinkel, ouvida pelo Terra
O medo diante do imprevisível está em evidência desde a chegada oficial da covid-19 ao planeta. A falta de uma vacina e de remédios e tratamentos comprovadamente eficazes acentua essa percepção e dá luz à discussão de como lidar diante de uma ameaça que não distingue classes sociais e avança como um tsunami silencioso – cientistas preveem que só no Brasil o número de mortes provocadas pelo novo coronavírus deve chegar a 100 mil em agosto.
“Como se proteger daquilo que não se conhece? O inimigo pode ter se apoderado do próximo, daquele que está ao nosso lado, de quem usa o elevador conosco. Os países fecharam as fronteiras. As informações chegam fragmentadas 24 horas por dia, repletas de contradições e desconfianças. Tudo isso gera estresse. Por outro lado, sinaliza mudanças”, comenta a psicanalista Dora Gurfinkel, cofundadora da Escola Brasileira de Psicanálise Movimento Freudiano.
Ainda é cedo, ela reitera, para pontuar com precisão o impacto da pandemia na relação das pessoas com o cotidiano. Mas existem pistas. As manifestações de afeto, por exemplo, a partir do isolamento social e do temor do contágio, tendem a passar por um processo de readaptação.
O aperto de mãos, o abraço e o beijo, que ganham mais força quando se recorre a imagem de avós e netos, na nossa cultura, sob a égide da distância física, traduzem esse paradoxo – afastar-se de entes queridos para a proteção de todos.
“As crianças vivem intensamente essa experiência agora, tomam consciência de que estar com o outro é perigoso. Isso certamente vai ter reflexos no futuro. Quais seriam? Ainda não se sabe.”
Essa questão, claro, abrange todas as faixas etárias. A própria psicanalista e seus parentes não têm desfrutado mais da companhia do médico, o doutor Meer Gurfinkel, 99 anos. O pai de Dora vive nos últimos três meses contando com a ajuda de duas cuidadoras, preservado do contato com os filhos, netos e bisnetos para evitar eventual exposição ao coronavírus. Mas mantendo a comunicação virtual com eles.
“O mais incrível é que ele compreende com lucidez o momento e sabe que nós não o abandonamos.”
Outro aspecto não menos relevante diz respeito à importância das redes sociais – que, dependendo do uso, pode ser uma armadilha – no dia a dia da pandemia. “É importante filtrar o que chega e não se tornar refém de notícias e lives que nos são oferecidas a cada segundo. Para manter a saúde mental, o uso dessa tecnologia pode ajudar a fortalecer nossas redes de amigos, de suporte.”
Dora Gurfinkel também antevê a necessidade de um esforço coletivo para acompanhar esse movimento que exige atualização constante e adaptação. “Os mais velhos vão ter de seguir as gerações mais jovens para usar com independência os recursos da Internet. Também é importante pensar em como essas inovações contemplarão as pessoas que não puderem ter acesso a esse tipo de comunicação. Caso contrário, continuaremos a ter um grupo cada vez maior de excluídos. Temos de pensar sobre isso. É hora de mudanças.”
A psicanalista mantém um canal no Instagram (@doragurfinkel), no qual aborda questões relacionadas à saúde mental a partir da pandemia.