'Só crise econômica é tratada como emergência no País; desigualdade, não', diz Katia Maia, da Oxfam
Para diretora executiva da ONG, falta de dinheiro para auxílio emergencial deveria ser tratada como problema a ser resolvido e não como justificativa para não ser feito
Para a diretora executiva da ONG Oxfam no Brasil, Katia Maia, o maior desserviço do governo de Jair Bolsonaro para o País foi alimentar o debate "economia versus saúde" durante a pandemia do coronavírus. Em sua opinião, não há economia sem que a população esteja saudável e a gestão da saúde pública depende das finanças em ordem. "Quase um ano depois, esse discurso se mostrou vazio. Estamos tendo de fechar o País de novo."
Ela vê a falta de recursos para a continuidade do auxílio emergencial como um problema a ser resolvido, e não uma justificativa para que o benefício seja dispensado no momento de crise. Para Katia, o País historicamente privilegia problemas econômicos e não trata questões sociais, como a desigualdade, com o mesmo cuidado. "O Brasil é um país que produz muitas riquezas. Onde está o dinheiro? Numa emergência como esta, é hora de ver quais setores podem contribuir mais."
Na segunda-feira, 25, durante o Fórum Econômico Mundial, a Oxfam divulgou um estudo mostrando que a fortuna das mil pessoas mais ricas do mundo aumentou em US$ 3,9 trilhões desde o início da pandemia, enquanto os mais pobres "precisariam de mais de uma década para se recuperar dos impactos econômicos da crise". Leia a seguir a entrevista.
A Oxfam faz uma previsão difícil em relação ao combate à desigualdade. Em que medida a covid-19 piorou a situação?
Primeiro, é a constatação do que já sabemos, de que o mundo é extremamente desigual. Mas a covid mostrou uma desigualdade ainda mais profunda em muitos países. Pelo menos 77 países consideram que a desigualdade piorou. É uma constatação deles, mas também do FMI, do Banco Mundial, etc. O cenário é de que o pós-pandemia é um período de aumento de desigualdades. Isso é algo que preocupa porque o aumento da desigualdade num mundo que já é desigual significa mais milhões de pessoas na pobreza. Ações para evitar essa catástrofe são urgentes. Importante ressaltar que essa não é uma questão especificamente econômica. Antes do impacto econômico, estão as escolhas políticas. É a escolha política que vai determinar as ações que vão evitar o aumento de desigualdades.
Quais serão os desafios para os países que, como o Brasil, já tinham um alto grau de desigualdade?
Países com essa característica têm milhões de pessoas no trabalho informal, por exemplo. É uma das áreas mais afetadas na pandemia. Numa crise econômica, não há proteção social. Não tem acesso à atenção básica, essas pessoas estão fora do sistema. Se elas perdem a renda, não têm com o que viver. Acabou o auxílio emergencial e não foram tomadas medidas para atender a essa população. Temos um governo que, primeiro, nunca levou a sério a pandemia, tratou como gripezinha, não só na perspectiva da saúde, mas também na questão do impacto econômico. Não é só abrir para pessoas trabalharem. O impacto é mais profundo. Tem de ter saúde, mas principalmente liderança política num momento como este.
Qual a importância de uma retomada do auxílio emergencial para começar a reverter ou minimizar este quadro?
A prioridade zero é a conversa com a população com seriedade sobre o que está acontecendo. Há desinformação alimentada pelo governo federal e reproduzida nos Estados e municípios de que o que estamos vivendo é realmente uma gripezinha. O que estamos passando não é brincadeira. Nós temos uma questão econômica complexa, que são as milhões de famílias que dependiam do auxílio emergencial. Enquanto não dermos atenção a milhões de brasileiros, não dá para priorizar quem já é privilegiado. Não há economia que sobreviva se metade da população está em condições precárias, sendo excluída de toda a nossa produção de riqueza. É fundamental a inserção dessa massa da população na economia com recursos. Se agora isso acontece com auxílio emergencial, ok. Falta de dinheiro para auxílio emergencial deveria ser tratado como problema a ser resolvido, e não como justificativa para não ser feito. Ao invés de usar a falta de dinheiro como justificativa, o governo deveria procurar recursos para auxílio emergencial. O Brasil é um país que produz muitas riquezas. Onde está o dinheiro? Numa emergência como esta, é hora de ver que setores podem contribuir mais.
O mundo vinha numa forte onda conservadora e, no Brasil, o discurso que pedia menos Estado ganhou força. Isso se enfraquece diante dos desafios da pandemia?
O papel do Estado é fundamental. Essa coisa do Estado mínimo é um desafio porque cada um fala de onde vê. O Estado sempre ajudou o setor privado nas crises, com incentivo fiscal por exemplo. No aperto, o Estado é chamado. O problema é que a desigualdade social não é tratada como emergência. A emergência é só a crise econômica. O Estado tem de estar presente na reconstrução do futuro. Seria um erro da humanidade que a gente voltasse a ser o que era antes da pandemia.
Em que medida o debate "saúde da população versus economia" atrapalhou na forma como o País lidou com a pandemia?
Entre os vários desserviços feitos pelo governo atual, esse foi o pior. O maior desserviço do governo Bolsonaro foi colocar a economia e a saúde da população como coisas antagônicas. Gerou um debate que não era para ser colocado. Não existe economia sem saúde e a economia é importante para a gestão da saúde. A forma como isso foi usado gerou desinformação, mentiras, gerou na população isso de que era uma coisa ou outra. E, quase um ano depois, esse discurso se mostrou vazio. Estamos tendo de fechar o País de novo. Essa falta de responsabilidade com a seriedade do problema pelo governo leva a nossa sociedade a ter muito mais dificuldade para a recuperação econômica. A economia não se recupera com as pessoas doentes. Se o Brasil não avançar na vacinação, o Brasil vai ficar isolado no mundo.
É possível mudar a perspectiva de que os principais parâmetros de desenvolvimento são econômicos, o PIB, por exemplo?
Começamos a ver pequenos exemplos que mostram caminhos e resultados. Ainda é pouco, mas é uma perspectiva que se coloca. Dentro do establishment econômico, tem uma percepção de que basta, de que não dá pra continuar como estava. Há movimentos de milionários e bilionários de outros países - infelizmente, nenhum brasileiro - que fizeram cartas pedindo para pagar mais impostos. Pedindo para contribuir mais. Há iniciativas. O governo pode fazer esse debate. Espero que economistas e institutos de pesquisa, em conjunto com a sociedade, que a gente possa construir um diálogo nacional para estabelecer alguns pactos mínimos, se não a gente vai ficar no discurso do ajuste fiscal, do teto de gastos. Na emergência, se a gente pensar só nisso, não sai dessa situação em que estamos. Temos de pensar para além, temos de trazer para a mesa aqueles que muito têm, para que façam sua contribuição diferenciada.