Sudeste registra mais mortes do que nascimentos pela 1ª vez
Brasil relatou nos primeiros seis dias deste mês um quadro que só era previsto para daqui a mais de duas décadas; especialistas já consideram a possibilidade do País chegar a 500 mil vítimas
Nos seis primeiros dias de abril, morreu mais gente do que nasceu no Sudeste do Brasil - algo inédito. Foram 12.181 óbitos, ante 11.744 nascimentos, um indicativo de como a pandemia de covid-19 pode alterar a estrutura populacional brasileira. A letalidade excessiva fez o País adiantar em mais de duas décadas, ainda que de forma provavelmente temporária, um fenômeno demográfico previsto para acontecer apenas em meados do século 21.
Segundo dados preliminares do Registro Civil Nacional/Portal da Transparência, nos três primeiros meses deste ano, o número de mortes excedeu o de nascimentos no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro. Em abril, as Regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste já registram mais mortes, embora os dados ainda tenham de ser consolidados.
Segundo especialistas, mesmo que haja represamento dos registros de nascimento, não seria suficiente para aproximar tanto as duas curvas se não houvesse excesso de mortalidade. Em geral, o número de nascimentos no Brasil anualmente é mais que o dobro do número de mortes.
Mesmo que a tendência não se confirme para todo o Brasil até o fim do mês, dizem, é significativo que o País tenha registrado tais números pela primeira vez em sua história. Normalmente, o número de mortes só excede o de nascimentos em países muito desenvolvidos. É o caso do Japão, por exemplo, onde a taxa de natalidade é extremamente baixa.
Projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontavam que a população brasileira só alcançaria esse patamar e pararia de crescer em 2047. Nesse ano, daqui a 26 anos, o Brasil - prevê o instituto - chegará a 233 milhões de pessoas.
O fenômeno, no entanto, já foi registrado de forma excepcional e pontual em momentos de tragédia e profunda desestruturação social. Foi o que ocorreu com a Segunda Guerra Mundial, a epidemia de Aids em alguns países da África e o colapso da antiga União Soviética.
No caso atual do Brasil, além das mortes provocadas diretamente pela pandemia, há uma elevação do número de óbitos por outras causas. Isso acontece diante do colapso do sistema de saúde, causado pela pandemia. Para especialistas, é normal também que as pessoas tenham menos filhos em um momento de crise.
"Evidentemente, o eventual decrescimento vegetativo atual é excepcional e se deve ao agravamento da pandemia", afirmou o demógrafo José Eustáquio, funcionário aposentado do IBGE. "Controlar o vírus e reduzir as mortes é essencial para que as pessoas possam decidir ter filhos em um ambiente saudável e para que a transição demográfica possa seguir o seu ritmo menos traumático."
Projeção
Na análise de Miguel Nicolelis, neurocientista e professor catedrático da Duke University (EUA), o número total de mortos pode superar o de nascimentos em abril. O total de óbitos causados pela covid-19 pode ultrapassar os 500 mil em julho, avalia.
"No pico da primeira onda já houve um crescimento enorme de mortes", disse. "Agora, em março, chegaram a 174 mil. A expectativa de óbitos de abril já passa de 100 mil no mês. Nas minhas contas poderemos ter 200 mil ou mais mortes totais, somando todas as causas. Nesse sentido o Brasil estaria no negativo. Está difícil fazer previsão, mas falar em 500 mil mortos até julho talvez seja conservador agora."
Eustáquio concorda com o colega. "Não é improvável que em algum mês de 2021 o número de óbitos supere o de nascimentos. Isso seria um fato absolutamente inédito na história brasileira, que é marcada por um crescimento muito consistente e acelerado ao longo da história", afirmou. "Embora as taxas de fecundidade estejam caindo desde a década de 1960, as projeções do IBGE e da ONU indicam que o número de habitantes do Brasil vai continuar crescendo até a década de 2040 e só deve começar a diminuir na segunda metade do século."
A demógrafa Márcia Castro, do Centro de Estudos para População e Desenvolvimento da Universidade de Harvard, não acredita que vá haver redução da população no Brasil. Considera, porém, que os números são muito significativos.
"Não é que a população vá diminuir, claro que é algo temporário", afirmou. "Mas é uma mudança inédita, algo que nunca tinha acontecido, considerando o nosso estágio de transição demográfica. Mas nunca tínhamos visto um crescimento do número de mortes desse jeito e quando comparamos com os anos anteriores, e olhamos para os Estados, vemos claramente relação com a pandemia."
Por causa dessas alterações das dinâmicas demográficas, diz Márcia Castro, mais do que nunca seria importante a realização do censo, que o governo pretende adiar mais uma vez. Para Nicolelis, mudanças demográficas de longo prazo poderão ser sentidas no futuro, com a redução da população economicamente ativa, por exemplo. Segundo os especialistas, um lockdown rigoroso e mais longo é necessário para deter a escalada das mortes.