Vacina contra o coronavírus: segunda dose deve ser tomada em 3 ou 12 semanas?
Reino Unido lançou nova estratégia de vacinação que chamou atenção global e divide opiniões de especialistas renomados.
Em meio a seu "pior momento" desde o início da pandemia, o Reino Unido anunciou uma reviravolta em sua estratégia de vacinação que atraiu a atenção mundial.
Quando dezenas de milhares de britânicos esperavam pela segunda dose da vacina da Pfizer, autoridades médicas cancelaram agendamentos e aumentaram o tempo recomendado entre a primeira e a segunda picada para 12 semanas, em vez de 21 dias.
A decisão gerou preocupação e dividiu opiniões na comunidade científica internacional.
Os proponentes dizem que a maior parte da imunidade é alcançada após a primeira dose, e que a segunda dose pode ser aplicada de forma mais espaçada.
Eles argumentam que isso daria proteção suficiente a muito mais pessoas, de forma mais rápida.
Mas críticos temem que esse atraso altere a eficácia da vacina ou, o que é pior, dê ao vírus mais tempo para sofrer mutações e se tornar mais resistente.
"Suponho que esta decisão do Reino Unido atenda às emergências que o país têm devido à complicação da pandemia. Fico em dúvida", disse Amós García Rojas, presidente da Associação Espanhola de Vacinação (AEV).
O Reino Unido declarou seu terceiro confinamento nacional desde março de 2020, e o primeiro-ministro, Boris Johnson, garantiu que "o pior ainda está por vir".
Muitos países já começaram a vacinar suas populações em meio a um dos momentos mais críticos da pandemia global.
Enquanto isso, o debate sobre como imunizar a população e voltar à normalidade o mais rápido possível ainda gera divisões.
Mudanças
Quando os laboratórios Pfizer e BioNTech apresentaram os resultados dos testes clínicos de sua vacina, eles disseram que ela era mais de 90% eficaz após duas doses administradas com 21 dias de intervalo.
O Reino Unido começou a vacinar sua população em 7 de dezembro seguindo esses protocolos, mas mudou o roteiro e passou a oferecer a segunda dose 12 semanas após a primeira, quatro vezes o tempo recomendado pelo fabricante.
"Não há dados que mostrem que a proteção após a primeira dose seja mantida após 21 dias", disseram a Pfizer e a BioNTech em comunicado recente sobre o assunto.
O Reino Unido já vacinou mais de 1,5 milhão de habitantes com os imunizantes da Pfizer e o da Universidade de Oxford e AstraZeneca, aprovado em 30 de dezembro.
A vacina de Oxford também é administrada em duas doses, mas, neste caso, parece ser mais eficaz com um intervalo mais longo em comparação à da Pfizer nesse mesmo regime estendido de aplicações.
Autoridades britânicas decidiram que "é preferível" vacinar mais pessoas com a primeira dose e afirmaram que a "grande maioria" da proteção inicial se desenvolve após a primeira injeção.
Elas argumentam que a segunda dose é bastante importante para a duração da proteção e que "um intervalo apropriado pode até aumentar a eficácia da vacina."
Críticas
A posição das autoridades britânicas tem gerado críticas dentro de suas fronteiras e alimentado um debate internacional.
A British Medical Association, por exemplo, considerou "grosseiramente injusto" cancelar os agendamentos de pacientes que receberam a primeira dose e logo receberiam a segunda.
Esses pacientes incluem alguns dos grupos mais vulneráveis ao vírus, como os maiores de 80 anos e profissionais de saúde.
Já a Associação de Médicos do Reino Unido, em carta ao ministro da Saúde Matt Hancock, expressou "sérias e reais preocupações sobre as mudanças repentinas no regime de vacinas da Pfizer porque não seguem as recomendações científicas".
O debate também chegou aos Estados Unidos, mas o país descartou por ora a adoção da estratégia do Reino Unido.
"Temos acompanhado as discussões sobre a redução do número de doses, ou alteração, ou aumento do tempo entre as doses ou mistura de vacinas para imunizar mais pessoas contra COVID-19", disseram Stephen Hann e Peter Marks, cientistas que assinam um comunicado da divisão de vacinas da US Food and Drug Administration (FDA).
O documento admite que "todas essas questões são razoáveis durante os testes clínicos".
No entanto, o órgão acredita que mudar a estratégia agora "sem os dados apropriados" coloca a saúde pública em "risco" e "prejudica" os esforços para fabricar vacinas covid-19.
O que diz a OMS?
Em 5 de janeiro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) se pronunciou sobre o assunto e recomendou a aplicação da segunda dose da vacina Pfizer (a aprovada por mais países até o momento) "entre 21 e 28 dias". Em casos excepcionais, o intervalo poderia ser aumentado para 42.
As recomendações foram divulgadas pelo Grupo Consultivo Estratégico de Especialistas (Sage) do governo do Reino Unido.
"Embora não conheçamos dados de segurança e eficácia após a primeira dose, recomendamos que, nessas circunstâncias excepcionais, os países atrasem a segunda dose por algumas semanas para maximizar o número de indivíduos que se beneficiam da vacina", disse Alejandro Cravioto, presidente da Sage, em conferência de imprensa.
Outro dos especialistas do grupo, Joachim Hombach, admitiu que o intervalo pode até ser estendido para no máximo seis semanas. Mas isso representa apenas metade do tempo que o Reino Unido implementou.
Dúvidas e riscos
"Em uma pandemia, os protocolos devem ser respeitados. E os da Pfizer dizem que a imunidade é gerada com uma dose hoje e a próxima após 21 dias", disse García Rojas, presidente da AEV.
O especialista, porém, entende que a situação no Reino Unido "é muito complicada" devido ao rápido aumento de casos e pressão hospitalar.
"Tentam gerar maior imunidade, mas reitero que as especificações técnicas das vacinas devem ser respeitadas e com base nos dados disponíveis. É confuso para os cidadãos e arriscado", diz García Rojas.
José Manuel Bautista, diretor do Departamento de Bioquímica e Biologia Molecular da Universidade Complutense de Madri, na Espanha, tem outros temores.
"O que mais me preocupa na estratégia adotada pelo Reino Unido é que nas 12 semanas entre a primeira e a segunda dose aconteçam mutações do vírus que possam reduzir a eficácia da vacina", explica Bautista à BBC.
As mutações dos vírus são frequentes e muitas não surtem efeitos, mas a terceira onda de infecções sofrida pelo Reino Unido aponta para uma variante mais contagiosa do patógeno, embora no momento não seja mais letal ou resistente às vacinas.
"A decisão do Reino Unido é salomônica. Não se pode dizer que esteja errada. É verdade que a primeira dose já gera uma resposta benéfica, mas, no meu caso, eu não correria esse risco por medo de mutações", diz Bautista.