Criminalista Antonio Ruiz alerta para os perigos das prisões irregulares
Justiça Criminal não pode ser orientada por números
Pesquisa realizada pelos ministros Luís Roberto Barroso e Rogério Schietti Cruz conduziu à conclusão de que, com base em 1,64% de decisões de recursos julgados pelo Superior Tribunal de Justiça para absolver ou substituir a pena, a prisão antes do julgamento perante o segundo grau de jurisdição seja de incontestável necessidade. Segundo os ilustres ministros, se o STJ não modifica condenações em 98,36% dos casos, é justo aplicar a pena antes de tais julgamentos.
Por essa apreciação estatística, os ministros pretendem justificar prisões que não decorrem de decisões definitivas, conhecidas como prisão na segunda instância. Segundo o advogado criminalista Antonio Ruiz Filho, esse ponto de vista não deve prevalecer.
O Supremo Tribunal Federal, baseado no princípio constitucional da presunção de inocência, firmara jurisprudência no sentido de que o cumprimento de pena dependeria de decisão condenatória definitiva. Ao julgar Habeas Corpus em 2016, o ministro Teori Zavascki decidiu que a antecipação do cumprimento da pena após o julgamento da apelação não comprometeria a presunção de inocência. A partir daí, todos tribunais do país começaram a decretar prisões, mesmo que a condenação fosse passível de outros recursos aos tribunais superiores, como se a nova diretriz fosse obrigatória.
A discussão tomou vulto nacional. "Hoje cada brasileiro tem opinião sobre a prisão de alguém em determinada fase processual. A condenação do ex-presidente Lula colaborou induvidosamente para insuflar posições a este respeito", reforça Antonio Ruiz.
Apesar do STF flexibilizar o preceito constitucional da presunção da inocência, ainda havia obstáculo criado pela Lei 12.403 de 2011, que modificou o artigo 283 do Código de Processo Penal para fazer constar: "Ninguém pode ser preso senão (...) em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado".
Em razão da mudança de entendimento sobre o momento do cumprimento da pena, o partido político (PEN) e a própria AOB foram ao Supremo para afirmar a constitucionalidade do artigo 283 do CPP. Por um voto de diferença, o plenário da Suprema Corte decidiu liminarmente que sua vigência fosse suspensa. As ações ainda não foram julgadas, julgamento este que poderia ter impedido tudo quanto se passou no último domingo em torno da prisão e eventual soltura do ex-presidente Lula.
"Ainda que fosse possível relativizar o princípio constitucional da presunção de inocência, o artigo 283 do CPP, por ser a expressão de mandamento da Constituição, se tornou lei por vontade de representantes do povo - a submissão de todos à lei está na gênese do Estado Democrático de Direito. Pouco importa o que o diz a legislação de outros países ou a percepção popular sobre impunidade. No Brasil é assim porque a Constituição Federal e a lei ordinária assim o determinam. Quem queira algo diferente pode trabalhar para modificar a estrutura normativa vigente, mas não simplesmente ignorá-la ou adaptá-la às próprias conveniências. Aliás, esta é a razão pela qual atualmente se critica um certo ativismo judicial, forma de a vontade do juiz sobrepor-se ao império da lei a que suas decisões deveriam estar submetidas", alerta Antonio Ruiz Filho.
Para este tema, é indiferente que as decisões do STJ façam, percentualmente, mais ou menos justiça. Interessa constatar que o recurso àquele tribunal superior não tem nenhum prestígio. A consequência imediata é a verdadeira enxurrada de Habeas Corpus impetrados para suprir a falta de efetividade dos recursos dirigidos àquela Corte Superior. A demanda pela jurisdição não pode ser contida, antes, tem de ser resolvida.
O advogado criminalista, ainda, destaca outro ponto relevante quanto à prisão em segunda instância: "Não se pode prender ninguém sem fundamentação adequada apenas porque se atingiu alguma fase processual, que não seja a condenação definitiva. O STF, depois da guinada jurisprudencial que permitiu a execução provisória das penas, já advertiu que as decisões para prender não podem ser automáticas, baseadas exclusivamente na nova interpretação do princípio da presunção de inocência, devendo ser fundamentadas sob pena de nulidade, como o exige o artigo 93, IX, da Constituição Federal, para todas as decisões judiciais, mais ainda quando se trate de restringir a liberdade. Espera-se que mais este princípio não se torne letra morta."
Na visão dos ministros em questão, pessoas presas injustamente tornam-se um percentual desprezível. O argumento com base estatística não justifica a manutenção de pessoas presas em condições reconhecidamente deletérias.
A prisão se faz necessária apenas quando houver motivos fortes e concretos, depois de afastar medidas alternativas. Não se pode esquecer que a Justiça Criminal trata de vidas humanas, e, por essa razão, estatísticas e números não devem orientar suas decisões, finaliza Antonio Ruiz Filho.
Serviço
Antonio Ruiz Filho é advogado criminalista, ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP). Foi diretor da secional paulista da OAB, presidente da sua Comissão de Direitos der Prerrogativas e diretos adjunto do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) por duas gestões.