Crise hídrica pode levar Cidade do Cabo a ficar sem água até abril
Mohammed Allie, correspondente da BBC, relata o drama vivido por cerca de quatro milhões de pessoas que enfrentam racionamento de água em decorrência da seca.
"Minha mulher não usa mais o chuveiro. Em vez disso, ela ferve um litro e meio de água e mistura com cerca de um litro da torneira para fazer sua higiene diária".
"Enquanto ela faz isso, nós coletamos a água que corre lentamente em um balde para reutilizar na descarga do banheiro", conta Mohammed Allie, correspondente da BBC na África do Sul.
O jornalista é uma das quatro milhões de pessoas vítimas da crise hídrica que atinge a Cidade do Cabo, que corre o risco de se tornar a primeira metrópole sem água do mundo.
Destino turístico famoso por suas praias e montanhas, a cidade passa pela pior seca em um século, reflexo de três anos de chuvas muito escassas.
A crise levou o governo a restringir o consumo diário de água a 87 litros por pessoa - limite que será reduzido mais uma vez a partir de 1º de fevereiro, para 50 litros.
Com o racionamento, ficou proibido, por exemplo, lavar carros e encher piscinas.
"Como a maioria dos residentes da Cidade do Cabo, minha família, de quatro pessoas, teve que mudar seus hábitos para economizar água."
"Um balde e uma jarra se tornaram ferramentas essenciais para mim e meus filhos quando tomamos um banho de dois minutos", acrescenta o correspondente.
Dia Zero
O racionamento faz parte do esforço para postergar o que está sendo chamado de Dia Zero, data prevista para o corte do abastecimento não-essencial de água.
A medida será tomada quando os reservatórios atingirem 13,5% da sua capacidade - atualmente, o nível está em 27,1%.
Inicialmente, o Dia Zero estava previsto para 21 de abril, mas a projeção foi revisada, na semana passada, para o dia 12 do mesmo mês.
"O fracasso em manter o racionamento só significa uma coisa: o Dia Zero chegará ainda mais rápido", avalia Mohammed Allie.
'Novo ouro'
A SA Breweries, uma das principais cervejarias da África do Sul, instalou cinco torneiras que permitem à população encher recipientes de plástico de todas as formas e tamanhos com água corrente limpa, desviada de uma fonte natural localizada no local.
Mas, segundo Mohammed Allie, houve denúncias de que moradores e pequenos empresários estavam coletando até 2 mil litros de água de uma vez só para vender a consumidores desesperados.
Com isso, a quantidade de água passou a ser limitada a 25 litros e a segurança precisou ser reforçada no local.
Habitantes aflitos, munidos com recipientes de plástico, também podem ser vistos coletando água de córregos da montanha ao redor da cidade.
"A água tornou-se claramente o novo ouro da Cidade do Cabo, cidade famosa por suas praias e montanhas", avalia o jornalista.
Aqueles com mais dinheiro - e que não querem enfrentar as longas filas - enchem carrinhos de supermercado com garrafas de cinco litros de água mineral em um esforço para aumentar o abastecimento, enquanto tentam permanecer dentro dos limites de consumo.
O que está sendo feito?
O governo local está correndo contra o tempo para enfrentar a situação, com o desenvolvimento de usinas para dessalinização da água do mar, projetos de coleta de água subterrânea e programas de reciclagem de água.
De acordo com dados oficiais, 70% do consumo de água na Cidade do Cabo é proveniente do uso doméstico.
Um chuveiro padrão utiliza 15 litros de água por minuto, enquanto um vaso sanitário consome 15 litros a cada descarga, segundo a ONG WaterWise.
Desta forma, os moradores estão sendo orientados a consertar vazamentos de água em suas propriedades, usar água potável só para beber, cozinhar e fazer a higiene básica, dar descarga no banheiro apenas quando for realmente necessário, reduzir o tempo do banho de chuveiro para dois minutos, coletar água do chuveiro, da banheira e da pia e reutilizar para lavar o banheiro, o jardim e o carro, usar máquinas de lavar roupa e louça só se estiverem cheias
Segundo o governo, 41% da população aderiu ao racionamento.
"Felizmente, em nossa casa, temos há dez anos um sistema que bombeia água usada para o jardim, além de ter um tanque de plástico de 750 litros que coleta água da chuva que foi desviada das calhas do telhado", diz Mohammed Allie.
"Ao mudar nossos hábitos, limitando o uso da máquina de lavar a dois ciclos por semana e reutilizando a água sempre que possível, conseguimos reduzir nosso consumo médio de cerca de 18 mil litros por mês no ano passado para 7 mil litros por mês atualmente", completa.
Ele conta que a mudança de hábito também foi refletida na conta de água, que passou de cerca de US$ 23 por mês para US$ 2,30.
"Mas se as coisas não melhorarem, talvez tenhamos que recorrer a pratos de papelão para comer, em um esforço para evitar a lavagem de louça, enquanto também podemos limitar o uso da máquina de lavar roupa", acrescenta.
Problema mundial
Mas os problemas relacionados à água não se limitam à Cidade do Cabo.
Cerca de 850 milhões de pessoas em todo o mundo não têm acesso a água potável, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), e as secas estão ficando cada vez mais severas.
Por isso, parece inacreditável que um recurso natural essencial ainda seja tão desperdiçado. Nos países em desenvolvimento e emergentes, cerca de 80% da água é perdida em vazamentos, de acordo com a consultoria ambiental alemã GIZ.
Mas, mesmo em algumas áreas dos Estados Unidos, até 50% da água é desperdiçada devido a desgastes de infraestrutura.
Diante deste cenário, um número cada vez maior de empresas de tecnologia está focando seu trabalho no gerenciamento da água - aplicando soluções "inteligentes" para os desafios apresentados.
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