Design e política: a possibilidade de construção de uma sociedade mais justa e inclusiva
Para além do incentivo ao consumo, o design pode ajudar a construir identidades, criar produtos que solucionem problemas concretos das pessoas e propagar mensagens que se traduzem numa sociedade menos desigual
Zé Gotinha, postes de sinalização e roupas específicas para pacientes com Parkinson. O que essas coisas têm em comum? Todas elas são bons exemplos de design, ou, mais especificamente, do uso político do design, que pode ser um poderoso instrumento de propagação de mensagens, ideias e valores que podem influenciar a opinião pública e as decisões políticas.
No mundo consumista em que vivemos, ao pensar em design, é possível que você o imagine como um vilão, em razão da sua ligação com a cultura do consumo. Mas o design também pode — e deve — ser entendido como uma ferramenta estratégica para promover a construção de um mundo mais justo e equilibrado, por meio da criação de imagens, produtos e espaços.
O design a serviço de uma sociedade mais justa e equitativa
No intercâmbio entre design e política, talvez seu uso mais claro seja o das campanhas de comunicação, que podem ser utilizadas para criar uma comunicação visual que compartilha mensagens políticas e promove determinadas ideias ou agendas. O design gráfico e a publicidade criam cartazes, folhetos, brochuras, anúncios nas redes sociais e outros materiais que promovem candidatos políticos, causas sociais ou campanhas de sensibilização.
E aqui o exemplo do Zé Gotinha mostra bem esse papel político fundamental do design: a imagem do personagem, suas interações e associações com imagens que as crianças apreciam e aprovam contribuem para o fortalecimento das campanhas de vacinação do governo federal e para a melhora dos índices de vacinação infantil.
Outro campo de atuação política do design pode ser visto por meio do desenho urbano. O delineamento dos espaços públicos e urbanos pode influenciar a forma como as pessoas percepcionam o seu ambiente e os seus comportamentos. Podemos identificar o uso do design neste contexto observando os lugares de sentar em espaços públicos, nas lixeiras, postes de sinalização, dentre outros equipamentos que fazem parte da vida coletiva nos ambientes urbanos.
Os gestores urbanos se preocupam com a criação de espaços verdes? Com o controle de automóveis e a circulação de trânsito não motorizado? Há espaços de convivência da comunidade como um todo? Essas e outras questões da concepção urbana dizem muito sobre as mensagens políticas criadas por espaços que refletem os valores e as prioridades de uma comunidade ou de um governo.
E, obviamente, o campo onde o design é mais corriqueiramente percebido é a concepção de produtos. O design industrial, principalmente, pode ser utilizado para criar produtos que reflitam determinados valores políticos ou promovam causas sociais.
Por exemplo, produtos que são "amigos do ambiente", produzidos de forma ética ou que suscitem a igualdade de gênero, raça, religião (dentre outros aspectos da vida social) podem ser projetados com o objetivo de influenciar as decisões de compra das pessoas consumidoras e promover mudanças sociais.
Há projetos de design que podem atender pessoas com mobilidade limitada, a exemplo dos cadeirantes, que precisam se deslocar por lugares com pisos os mais diversos possíveis, e isto é uma forma de pensar na inclusão. No campo do vestuário, já é possível encontrar propostas de vestimentas que consideram as pessoas acometidas por Parkinson, bem como roupas específicas para paratletas. Estes exemplos nos direcionam para a possibilidade do design para além do consumo.
Uma história que nasce com a Revolução Industrial
É lugar comum associarmos a história do design às complexas transformações que passam a ser experimentadas pelo mundo ocidental, de modo particular no contexto europeu, com o advento da Revolução Industrial. Nesse momento, os sistemas e produção começam a se alterar e, com eles, hábitos e comportamentos consolidados no antigo regime também se transformam.
Nesse conceito, o design se relaciona com a prática da atividade que nasce e começa a se consolidar no final do século 18 e que tem como pressuposto básico a projeção e criação de coisas, objetos e produtos decorrentes da industrialização — e, consequentemente, dos progressos tecnológicos oriundos desse movimento. O progresso da máquina e da tecnologia tornou-se um fato incontestável e suas influências atingiram a vida das pessoas em vários sentidos, tanto na Europa quanto nas Américas, África e continente asiático.
Essas mudanças abrangeram os aspectos materiais (como a configuração urbana, através da transformação da paisagem das cidades por meio da arquitetura das fábricas, a poluição por elas exalada, a inserção de bens industrializados) e também os modos de vida, o aumento da pobreza, o surgimento de novas classes de trabalhadores, operários e, entre eles, os profissionais do design.
No universo do trabalho, a divisão das tarefas, acelerando a produção, promovendo a economia do tempo e a separação processual entre concepção e execução, ocasionou a emersão da figura do designer como o profissional que se tornou o responsável por reestruturar e simplificar os métodos de fabricação, distribuição e inserção de novas tecnologias no mundo fabril.
O mundo ocidental pós-revolução industrial mudou profundamente e em vários setores da vida social. No espaço urbano, os efeitos foram percebidos nas ruas, nas fachadas dos comércios, nas vitrines, cartazes, anúncios de vendas e estímulo ao consumo, bem como a cristalização dos produtos fabricados nos espaços públicos: bonde, pavimentações das ruas, eletricidade… Aquele era um novo mundo, que exaltava o consumo. Mas era também um mundo de contrastes, onde havia lixo, miséria e doenças pelas ruas como evidencia das desigualdades promovidas pela industrialização.
A construção de identidades, entre o global e o local
Na atual conjuntura, uma das questões mais significativas para o design é o constante debate entre global e o local e a construção e reforço de identidades. As modificações operadas no contexto global repercutem no contexto social, político, econômico e cultural e, obviamente, no pensamento em design. Os efeitos da globalização geram a ideia da uniformidade, da universalidade, mas, ao mesmo tempo, paradoxalmente, são formuladas preocupações concernentes à valorização da identidade local.
O mundo em que vivemos passou por rápidas e profundas mudanças nas últimas décadas, que afetaram de modo definitivo a vida das sociedades em sua generalidade. A integração mundial promovida pelos meios de comunicação digital, como efeito da globalização, possibilitou alterações que expandem novas maneiras de se construir culturas e saberes.
Descobrimos que é possível nos comunicar uns com os outros do outro lado do mundo, realizar um curso, comprar um livro ou uma máquina de lavar sem sair de casa. As fronteiras do mundo estão agora no teclado do computador que cada vez se transmutam em equipamentos portáteis que acompanham as pessoas para onde quer que se desloquem.
Por outro lado, nesse mundo achatado, há o aumento de tensões, pois se há um mundo que se comunica e progride, ainda há o mundo pobre, dos conflitos, das necessidades e que se evidenciam diante dessas novas possibilidades de comunicação que se estabelecem.
Na década de 1970, o designer e educador Victor Papanek (1927-1999) escreveu um livro intitulado "Design for the Real World", no qual questionava a relação do design com o meio ambiente e conclamava pelo uso dessa importante ferramenta para promoção de soluções concretas para a vida das pessoas.
Naquela ocasião, essa prerrogativa foi incompreendida pela maior parte de seus pares, mas hoje ela tem se tornado um nicho de atuação de designers e profissionais que se utilizam do pensamento em design, com o intuito de atuar na vida real das pessoas, fora do circuito do luxo e do exclusivo.
O cenário das necessidades, das desigualdades, da pobreza é, portanto, um lugar significativo para se concretizar projetos que atuem no sentido de fazer a diferença para uma maioria, para o coletivo e para o meio ambiente. O design, portanto, pode ser utilizado como um poderoso instrumento político para comunicar mensagens, promover causas e provocar mudanças sociais.
Ao assimilar o poder do design de forma estratégica, as pessoas profissionais do design, em associação aos agentes públicos, aos coletivos, aos grupos sociais em sua multiplicidade, podem contribuir significativamente para o debate político e para a formação de uma sociedade mais justa e equitativa.
Docente pesquisadora na Universidade do Estado de Minas Gerais, atuando nos cursos de graduação em Design e pós-graduação na mesma instituição.