É hora de mudar lei da delação premiada, diz criminalista
Para advogado que conduziu delação de Joesley Batista, 'jurisprudência não é uníssona' e 'não há segurança jurídica' no instrumento
BRASÍLIA - O criminalista André Luís Callegari, um dos principais especialistas em colaboração premiada do País, afirmou que o Brasil precisa aproveitar a tramitação no Congresso dos projetos anticrime do ministro da Justiça, Sérgio Moro, e do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes para aprimorar as regras sobre colaborações.
Para ele, o vazamento de mensagens que supostamente indicariam uma coordenação entre o então juiz Moro e procuradores da força-tarefa da Lava Jato evidenciou a necessidade de se aperfeiçoar o instrumento, hoje alvo de questionamentos.
À frente da delação do empresário Joesley Batista, da JBS, Callegari foi ouvido em audiência pública para debater os projetos de lei e já encaminhou sugestões à comissão que analisa a matéria.
Segundo ele, é preciso definir procedimentos claros para a colaboração, como que tipo de prova tem de ser apresentada desde o início pelo candidato a delator. As lacunas existentes deixam vulneráveis delações já firmadas e obrigam empresas e delatores a se guiarem pelo que acontece no Supremo. "A jurisprudência ainda não é uníssona. Não há segurança jurídica", disse o advogado, que publicou livro com análise dos casos de colaboração homologados pelo STF.
O senhor defende mudanças na lei da colaboração para empresas e pessoas físicas. Por quê?
A jurisprudência ainda não é uníssona. As decisões são contraditórias, não temos acordo sobre vários pontos dentro do próprio Supremo. Não há segurança jurídica. Há discussão, por exemplo, se os prêmios concedidos ao colaborador podem ser extrapenais ou se têm de se adequar à legislação. O que é regime prisional domiciliar diferenciado (pena aplica a alguns delatores da Lava Jato)? Isso não existe. O ministro Ricardo Lewandowski devolveu um acordo para que a Procuradoria-Geral da República o ajustasse, porque sanções premiais devem se adequar ao Código Penal. Já o ministro Luís Roberto Barroso entende que elas podem ser aplicadas desde que não sejam desfavoráveis ao colaborador. Esse é um dos muitos pontos que merecem reparo. É melhor fazermos um ajuste legal, com boas diretrizes de segurança jurídica, ou o Supremo tem de ficar preenchendo os vazios legislativos.
Os vazamentos de conversas atribuídas ao então juiz Sérgio Moro e a procuradores da força-tarefa da Lava Jato tumultuaram o debate. É o momento adequado para promover mudanças na lei?
Reforça a necessidade de alterarmos. A legislação tem de ter uma proteção e resguardar as partes que participam do acordo. Digo mais: em um voto recente do ministro Gilmar Medes ele pediu que seja modificada a jurisprudência que veda a impugnação da colaboração pelos delatados. O que é um caso de flagrante ilegalidade? Por exemplo, se um juiz, em vez de somente verificar a legalidade e a voluntariedade no momento homologação, ele conversar com o Ministério Público sobre cláusulas do acordo. Não sabemos ainda se foi isso que aconteceu, mas é debate que se impôs. Se houver essa desconfiança por parte do delatado, ele deve ter o direito de impugnar a colaboração. Hoje, a lei não prevê isso.
Por que há tantas lacunas?
A lei da colaboração veio para suprir um problema de tipificação do que era organização criminosa, porque o Brasil tomava emprestado da Convenção de Palermo. De carona, trouxe a colaboração premiada, mas sem um procedimento específico e um regramento que estabeleça como devem ser feitos os anexos, a lista de assuntos, etc. O primeiro artigo que trata da colaboração versa sobre os prêmios. Ora, precisam primeiro vir regras de como isso irá funcionar. Até agora, as colaborações foram feitas empiricamente. O Ministério Público foi construindo contratos de colaboração, colocando cláusulas de adesão, porque o colaborador, muitas vezes, se via premido a firmar o acordo.
O que seriam esses procedimentos?
Minha sugestão é que se estabeleçam critérios de avaliação objetivos do material entregue, considerando a qualidade e os dados de corroboração, que são o grande problema das colaborações. Há divergência na jurisprudência sobre se a palavra do colaborador basta para o recebimento da denúncia. A lei diz que nenhuma sentença penal condenatória será proferida somente com a palavra do colaborador. Mas isso é no final da ação penal. E para iniciar a ação penal? Precisamos decidir isso. Um caminho é justamente termos mais segurança desde o início, com os anexos e dados de corroboração. E o comprometimento do Ministério Público de zelar pelo acordo. O Ministério Público não pode, simplesmente, fechar o acordo e depois não defendê-lo. Deveria ter também uma penalidade para esse caso.
Mas e se o Ministério Público entender que há um erro?
Novamente um problema de omissão da lei: ela não fala em rescisão do acordo. Minha sugestão é que se inclua. Os ministros Sérgio Moro e Alexandre de Moraes (autor de projeto também em tramitação no Congresso) se preocuparam em trazer a figura do whistleblower, que é o informante do bem, um denunciante que não necessariamente cometeu crimes. Mas não olharam os problemas já causados no caso da colaboração. Vira e mexe se critica a colaboração premiada por não ter provas suficientes, ou porque pessoas delatadas sofreram exposição desnecessária e acabaram inocentadas.
O colaborador deve ser responsabilizado se sua delação não der resultados?
Não. Há vários casos em que foi entregue vasto material probatório, com dados de corroboração, mas eles não andaram porque o Ministério Público demorou a remeter ou distribuiu sem o material probatório. O colaborador não é investigador ou dono da ação penal.
E se a colaboração e condenações que se originaram dela forem questionadas porque procuradores e juízes agiram incorretamente?
Se o colaborador agiu de boa-fé e acreditou no Estado, a ele não pode ser atribuída a culpa, porque ele estava firmando um contrato com um representante do Estado. Se o MP agiu mal, os benefícios ao colaborador devem ser mantidos. Talvez o que pode vir a acontecer, e há voto recente do ministro Gilmar Mendes nessa direção, é que o MP perca as provas e os benefícios sejam mantidos.
A responsabilidade penal da pessoa jurídica deveria ser ampliada?
Talvez seja um caminho necessário (hoje, as empresas só podem ser responsabilizadas por crimes ambientais). As empresas teriam incentivo maior para fazer uma investigação permanente, manter canais sérios de denúncia. No sistema europeu, o compliance entrou mais forte, porque há responsabilidade criminal e lá há a regra de que quanto mais você colabora com a investigação menos culpabilidade empresarial existe. Portanto, as sanções para as empresas que colaboram são bem menores.
Hoje, empresas no Brasil e possíveis delatores se sentem incentivados a firmar acordos?
Há insegurança. O número de colaborações caiu drasticamente do ano passado para cá. Não apenas pela não aceitação por parte do Ministério Público, que não demostrou interesse em muitos dos casos. Atribuo essa queda também ao fato de não haver segurança de que os prêmios poderão ser entregues ao final. Há notícias de que os acordos podem ser revistos, que os colaboradores não terão a devida proteção do Estado. Isso vai gerando insegurança.
O "boom" de delações ficou para trás?
Minha aposta é que veremos uma estagnação até que se verifique o que o Supremo vai decidir em casos recentes. O ministro Gilmar Mendes votou recentemente pela anulação de colaboração com a manutenção dos prêmios ao colaborador. É sui generis. Normalmente, quando reconhecemos que o acordo é nulo por algum problema na formatação perdem os dois lados: o Ministério Público perde as provas e o colaborador, os benefícios. É só um voto ainda e houve pedido de vista. Outro problema é o colaborador não saber o porquê de sua proposta ter sido negada. Toda decisão judicial deve ser fundamentada. Se ele entrega uma lista de assuntos e o MP diz que não tem interesse, acho que tem de estar motivado. Fiz essa sugestão. Ou daqui a pouco estamos escolhendo politicamente quais colaborações serão aceitas.
O sigilo da colaboração é um problema para empresas?
É um tema tormentoso. A lei diz que o sigilo só pode ser levantado com o recebimento da denúncia. O problema é que houve autorização pelo próprio Judiciário. Se há um canal dentro da empresa para a comunicação aos órgãos oficiais e essa comunicação é feita, o sigilo não pode ser levantado ou, daqui a pouco, a empresa que está colaborando se vê prejudicada.
Há ambiente favorável para mudanças?
É um momento favorável se o Legislativo fizer com seriedade. A sociedade virou justiceira, queremos quanto mais pena melhor, quanto mais medidas de supressão de direitos e garantias fundamentais melhor. Temos de tirar isso do âmbito midiático e explicar que essas medidas drásticas que a sociedade pugna irão se voltar contra ela no futuro. O direito penal é para todo mundo. Se o debate for sério, estamos diante de um momento único. Até porque a colaboração é, a meu ver, um instrumento sem volta, um instituto que veio para ficar.