Case: O que a carreira de Katherine Johnson, matemática negra na Nasa, ensina sobre o mercado
Investimento em educação, garra e resiliência foram essenciais para sucesso profissional da cientista e encontram lugar de destaque no ambiente de trabalho atual, explica especialista no mundo corporativo
No mundo V.U.C.A. - acrônimo em inglês para volatility (volatilidade), uncertainty (incerteza), complexity (complexidade) e ambiguity (ambiguidade) - estar preparado para os desafios do mercado de trabalho é tarefa constante. Pensando nisso, o Sua Carreira convidou professores para contar histórias de aprendizados e reflexões profissionais que podem inspirar o dia a dia de trabalho.
Confira, a seguir, o case apresentado pela especialista em educação corporativa Marisa Eboli.
Em 24 de fevereiro de 2020 faleceu Katherine Johnson, aos 101 anos. Ela foi uma brilhante matemática, que até os últimos anos de vida continuou a encorajar estudantes a perseguir suas carreiras em ciência e tecnologia. Em 2016, foi incluída na lista das cem mulheres mais inspiradoras e influentes pela BBC. O seu brilhantismo também foi reconhecido ao ser condecorada por Barack Obama com a Medalha Presidencial da Liberdade, em 2015.
Mas afinal, o que fez Katherine Johnson? Como foi sua carreira?
Vamos nos transportar para a realidade dos anos 1960, relatada no filme Estrelas Além do Tempo, dirigido por Theodore Melfi (2016). No auge da corrida espacial entre Estados Unidos e Rússia, durante a Guerra Fria, uma equipe de cientistas da Nasa, formada exclusivamente por mulheres negras, liderou uma das maiores operações tecnológicas registradas na história americana, tornando-se verdadeiras heroínas da nação.
A trama é centrada justamente em Katherine Johnson, uma brilhante matemática que, ao lado das colegas Dorothy Vaughn e Mary Jackson, foi peça fundamental no lançamento do astronauta John Glenn para a órbita da Terra e seu retorno em segurança. Junto, o trio ultrapassou todos os preconceitos de gênero, raça e, também, profissionais para mostrar sua competência e ser muito bem-sucedido nessa missão pioneira. Elas quebraram paradigmas num contexto muito hostil. Na vida real, as três não trabalharam juntas e nem no mesmo período de tempo, embora as situações apresentadas no filme sejam verdadeiras.
O filme foi inspirado no livro Hidden Figures, escrito por Margot Lee Shetterly, que atualmente trabalha no The Human Computer Project, um arquivo digital das histórias de todas as mulheres que trabalharam na Nasa como "computadores humanos".
O livro promove um ótimo debate sobre gênero, raça e ciência, apresentando ricos relatos sobre a trajetória de muitas mulheres brilhantes:
• Dorothy Hoover, que publicou uma pesquisa teórica sobre as famosas asas em delta, em 1951.
• Dorothy Vaughan, que trabalhou com as 'computadoras leste' para escrever um manual teórico sobre métodos algébricos para as máquinas calculadoras mecânicas.
• Mary Jackson, que defendeu sua análise contra John Becker, um dos principais aerodinamicistas do mundo.
• Katherine Coleman Goble Johnson, que descreveu a trajetória orbital do voo de John Glenn. Sua matemática no relatório pioneiro de 1959 foi considerada elegante, precisa e magnífica como uma sinfonia.
• Marge Hannah, a 'computadora' branca que atuou como chefe das primeiras 'computadoras' negras.
• Doris Cohen, que estabeleceu o padrão com o primeiro relatório de pesquisa de autoria feminina no Naca, em 1941.
Segundo Margot Lee Shetterly:
Katherine Johnson (1918) é física, cientista espacial e matemática. Concluiu o ensino médio aos 14 anos e aos 15 iniciou os estudos na universidade. Formou-se, com notas máximas em matemática e francês, aos 18 anos! Ela deu contribuições fundamentais para a aeronáutica e para a exploração espacial dos Estados Unidos, em especial em aplicações de computação na Nasa. Seu trabalho de liderança técnica se estendeu por décadas, incluindo as primeiras missões de John Glenn e Alan Shepard, o voo da Apollo 11, em 1969, à Lua, o trabalho contínuo por meio do programa dos ônibus espaciais e os planos iniciais para a missão a Marte.
Embora tenha estudado apenas até o sexto ano, o pai de Katherine era um gênio da matemática que podia dizer quantos metros cúbicos uma árvore iria render só de olhar para ela. Logo que a filha mais nova deles começou a falar, Joshua e Joylette perceberam que a menina tinha herdado o jeito simpático do pai e também a cabeça dele para a matemática. Katherine contava tudo o que cruzava seu caminho: louças, degraus e estrelas no céu. De uma curiosidade insaciável a respeito do mundo, lançava perguntas para seus professores de gramática e saltou do segundo para o quinto ano.
Katherine graduou-se em Matemática e Francês pela West Virginia University. Obteve dois títulos de doutorado honorário em Ciência, um pela Old Dominion University, Virginia, e outro pelo Capitol College, Laurel, Maryland. Foi co-autora de 26 artigos científicos. Desde 1979, antes de se aposentar da Nasa, a sua biografia tem lugar de destaque entre a lista de negros pioneiros em ciência e tecnologia, além de receber inúmeros prêmios e honrarias.
O seu trabalho na Nasa começou em 1953 e durante os cinco primeiros anos ela trabalhou como computadora, fazendo análises para tópicos, como a redução da rajada nas aeronaves. Até a sua aposentadoria em 1986, Katherine trabalhou como técnica aeroespacial com os computadores digitais, tais como os que conhecemos hoje. Sua habilidade na precisão de cálculos - e a sua reputação - deram aos colegas confiança para trabalhar com a nova tecnologia. Ela ainda trabalhou no programa dos ônibus espaciais, nos satélites de observação terrestre e na futura missão a Marte.
Quando John Glenn fez três órbitas ao redor do planeta em 1962, a Nasa começou a usar computadores digitais, que eram aplicados para calcular a trajetória. Todas as fórmulas subjacentes se originaram do artigo de Johnson. Naquela época, os computadores eram uma tecnologia nova e ninguém se sentia confortável para confiar neles, por isso pediram a Johnson para verificar todo o funcionamento das máquinas. Os seus cálculos foram considerados muito mais confiáveis. Se Katherine Johnson dissesse que os cálculos estavam corretos, então eles estavam corretos e pronto.
Quais aprendizados sobre o mercado de trabalho vemos na carreira de Katherine Johnson?
A história de Katherine Johnson serviu de exemplo para toda uma geração de mulheres que sonhava em trabalhar com o espaço. Jasmine Byrd, que trabalha atualmente no mesmo lugar um dia ocupado por Johnson, cujo edifício hoje denomina-se Katherine Johnson Computational Research Faciliity, contou à Nasa sobre sua admiração.
"Sou grata pela ponte que Katherine construiu para que alguém como eu pudesse atravessá-la facilmente. Isso me ajuda a não pensar nessa oportunidade como certa. Eu sei que houve pessoas antes de mim que trabalharam muito e passaram por muitas turbulências para garantir que fosse mais fácil para pessoas como eu."
Em público, Katherine era sempre graciosa, otimista e serena. A dor, a solidão e o peso de ser mãe e pai ao mesmo tempo (em decorrência da viuvez antes dos quarenta anos) ela deixava para a vida privada, ainda de acordo com Shetterly.
No filme, fica escancarado o preconceito, ainda que na vida real Katherine afirmasse não ter sido tão discriminada. Mas ele existia, mesmo em uma instituição de ponta como a Nasa, onde a ciência é estratégica. Como Katherine e todas essas mulheres obtiveram sucesso? Simplificando, dois pontos o explicam: educação e grit (em português, garra ou força de vontade).
Como diz o especialista em educação e jornalista Paul Tough, "Se você quiser que seus filhos sejam bem-sucedidos, tem que deixá-los fracassar um pouco." Ele assegura que elogios fáceis criam pessoas fracas. O essencial é o suporte emocional no fracasso para que consigam transformá-lo em oportunidade de crescimento e de superação.
E, claro, tudo isso em um ambiente pressionado por resultados, visto que a Rússia já havia lançado Yuri Gagarin, o primeiro cosmonauta a viajar pelo espaço, em 1961. Em termos práticos: a Nasa não podia se dar ao luxo de desperdiçar tanto talento e competência por preconceitos tão idiotas. O foco em resultados fez a meritocracia prevalecer.
Uma carreira tão brilhante fornece inúmeras lições. Algumas das aprendidas com Katherine Johnson são:
1) O papel fundamental da família e da escola em identificar e reconhecer o talento das crianças e dos jovens e assim orientá-los na sua carreira;
2) Fazer o que gosta combinado com vocação é uma fórmula quase infalível para o sucesso;
3) Investimento em educação e aprendizagem permanente ao longo da vida são condições fundamentais na Sociedade do Conhecimento;
4) Saber lidar exemplarmente com os desafios profissionais, aprendendo com cada problema que tiver que resolver;
5) Atuação pautada por princípios éticos e profissionalismo;
6) Apesar das dificuldades, ter empenho em equilibrar vida pessoal e profissional;
7) Muita coragem, determinação, firmeza, garra e resiliência para quebrar paradigmas mesmo num contexto hostil e competitivo.
*Marisa Eboli é especialista em Educação Corporativa e professora de graduação e mestrado profissional da Faculdade Fia de Administração de Negócios (e-mail: marisap@fia.com.br).