Em dez anos, disparidade salarial entre homens e mulheres só diminuiu 6,7% no Brasil
Mesmo com aproximação do ganho médio, pesquisas mostram que mulheres ainda recebem 20% a menos e fatores sociais e raciais agravam realidade
Aos 17 anos, quando estudava pedagogia e estava recém-chegada no mercado de trabalho, Fabíola Matos viveu o que muitas mulheres experimentam dentro dos ambientes corporativos. "Tive um líder que me disse que eu teria que trabalhar mais que qualquer homem, e que qualquer mulher de lá, porque dificilmente um homem aceitaria que uma mulher inteligente, que soubesse o que queria, estivesse no mercado de trabalho", lembra.
O relato, que não passa de uma lembrança, certamente inspirou Fabíola. Hoje, a profissional comanda em Salvador a Artha Gestão & RH, um HUB de estratégia e soluções em gestão de pessoas que presta consultoria a empresas de diferentes ramos, como indústria, comércio, saúde e educação.
Segundo a sócia e diretora do negócio, a escolha por trabalhar com o setor de gestão pessoal e recrutamento está ligada diretamente a um propósito de construir no mercado de trabalho um cenário mais justo e diverso, principalmente quando se fala da participação das mulheres.
"As mulheres sabem e têm plena consciência que o mercado é tão cruel e que posicionamentos machistas ou posicionamentos que exijam que ela faça mais obrigam que ela aprenda mais, que ela se dedique mais, apesar do reconhecimento não vir na mesma proporção", diz Fabíola.
A análise não se limita à sua observação no dia a dia. Estudos evidenciam a disparidade persistente na remuneração entre homens e mulheres, mesmo em cenário de encolhimento.
Dados divulgados pelo Painel do Relatório de Transparência Salarial 2024, elaborado em conjunto pelo Ministério do Trabalho e Emprego e pelo Ministério das Mulheres, mostram que as mulheres recebem, atualmente, 19,4% a menos no valor do salário médio no País pago aos homens. A estatística ganha ainda mais relevância após a pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgada em março deste ano, segundo a qual a disparidade salarial por gênero caiu apenas 6,7% no valor médio da remuneração em dez anos.
Ou seja, de 2013 a 2023, as mulheres conseguiram um avanço no mercado de trabalho no que diz respeito ao valor médio do salário que recebeu, mas a disparidade ainda fica 20% abaixo da remuneração dos homens. A pesquisa do Relatório de Transparência Salarial reuniu mais de 17 milhões de vínculos trabalhistas e 49,5 mil estabelecimentos espalhados pelo Brasil.
Mulheres negras têm os menores salários
Os fatores sociais e raciais ainda surgem como características determinantes ao falar da remuneração média no Brasil. Enquanto os homens autodeclarados não negros são o grupo com o melhor ganho médio do País, com R$ 5.718,40, as mulheres autodeclaradas negras recebem os piores salários, com média de R$ 3.040,89.
Entre os locais que apresentam a menor remuneração média para mulheres estão estados do Norte e Nordeste, que ocupam as dez últimas posições desse ranking. Destaque para o Rio Grande do Norte (R$ 2.165,71), Acre (R$ 2.102,40) e Roraima (R$ 2.102,39), que têm as menores médias.
Para a advogada trabalhista Ana Paula Studart, mestre em Direito do Trabalho, um dos principais fatores que sustentam a disparidade salarial entre os grupos é a "divisão sexual do trabalho", como ela define. A especialista explica que, historicamente, os trabalhos destinados aos homens estão ligados a funções de valor social agregado, como cargos decisórios e de liderança ou funções políticas.
"Além disso, as mulheres dedicam mais tempo a trabalhos domésticos que os homens, o que acaba deixando as mulheres mais sujeitas a trabalhos informais, mais precários ou a contratos a tempo parcial, além de sofrerem uma discriminação maior no momento da contratação em virtude da possibilidade mais alta de afastamentos pela licença maternidade, por exemplo", diz.
Referência em estudos de gênero no País, o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (Neim), da Universidade Federal da Bahia (Ufba), acompanha o campo de estudo das relações de gênero e mercado de trabalho. Maira Kubík, doutora em Ciências Sociais pela Unicamp e pesquisadora do Neim, ressalta que há a necessidade de discutir o contexto do mercado de trabalho no Brasil também a partir dos estudos de gênero.
"Há muito tempo os estudos de gênero se preocupam de que maneira o mundo do trabalho é atravessado pelas hierarquias de gêneros, as diferentes posições de homens e mulheres no que diz respeito à posição no trabalho, formal ou informal, remunerado ou não, doméstico ou não", analisa.
Maira afirma que existe um "teto de vidro" que muitas vezes limita as mulheres a progredir em cargos ou salários dentro das empresas. Para ela, a parcela que alcança e ultrapassa essa barreira ainda é exceção.
Empresas podem pagar salários diferentes no mesmo cargo?
De acordo com a Lei da Igualdade Salarial, de 2023, as empresas são obrigadas a pagar salários iguais para a mesma função. Além disso, a legislação tem como objetivo aumentar a fiscalização contra a discriminação e facilitar os processos legais.
Tudo isso através da divulgação de dados salariais por CNPJ, dando transparência e a possibilidade de verificação por parte dos interessados, além de prever a notificação das empresas em casos de diferenças salariais.
Ana Paula lembra que, pelo que estabelecido na própria regra da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), é vetada a disparidade salarial em virtude de sexo, etnia, nacionalidade ou idade, quando em idêntica função e no mesmo empregador.
"É importante esclarecer que, de acordo com a CLT, trabalho de igual valor é o que for feito com igual produtividade e com a mesma perfeição técnica, entre pessoas cuja diferença de tempo de serviço para o mesmo empregador não seja superior a quatro anos e a diferença de tempo na função não seja superior a dois anos. Isso vale, inclusive, para pessoas do mesmo sexo", especifica a advogada Ana Paula Studart.
No Painel do Relatório de Transparência Salarial, os cargos com maior disparidade na razão entre salários médios de homens e mulheres são as chamadas atividades operacionais. Ou seja, são aquelas atividades que mantêm as empresas em pleno funcionamento, como setores de gestão de pessoas e financeiro ou de vendas.
Para cargos desse tipo, a desproporção de ganhos chega a 36,1% no País. É o setor com o maior número de vínculos analisados pelo painel, com 9.712.941 trabalhadores.
Já para os cargos de gerência, há um índice menor de disparidade, de 21,2%. Levantamento feito pelo CNI também mostra uma aproximação nessa paridade: em dez anos, subiu de 35,7% para 39,1%.
Como melhorar o cenário?
Diante de um cenário que ainda desvaloriza o desempenho da mulher no mercado de trabalho, há um movimento de reestruturação de algumas empresas que buscam dar mais espaço para a diversidade no processo de contratação. O próprio relatório do Ministério das Mulheres indica estados que, hoje, já desenvolvem políticas de incentivo à contratação dessas profissionais.
No levantamento, Rondônia lidera a lista como o estado com mais estabelecimentos que indicam ter essa política de contratação: 40,3% das empresas analisadas. Já o Mato Grosso surge em último lugar, com 25,6% das empresas desenvolvendo ações para ter mais mulheres no mercado de trabalho.
Maira Kubík, do Neim, já enxerga alguns movimentos que passam a valorizar a participação, contratação e promoção das mulheres dentro das empresas. Entre elas, Maira cita a criação de comissões com o foco em diminuir as desproporções.
"São iniciativas que são importantes. Formam-se comissões para discutir a desigualdade de gênero na empresa, cursos de formação para detectar onde está o gargalo na questão salarial e de opressões cotidianas. Não só da questão salarial, mas de cenários de tentativas de intimidação, piadas e outras pequenas violências contra as mulheres no mercado de trabalho", enumera.
Uma das grandes conquistas do Neim, fundado em 1983, foi a criação do Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade, que existe desde 2009. Maira reforça que a formação dos estudantes da graduação no curso já é uma chave de transformação para o próprio mercado de trabalho.
"É uma graduação que só tem na UFBA [Universidade Federal da Bahia] e forma analistas políticos de gênero e diversidade. Pessoas formadas para pensar justamente nessas políticas, que podem ser aplicadas no mercado de trabalho", completa.
*Repórter do programa de trainee 'Focas', do Estadão