Mesmo desigual, ensino técnico é a porta para profissionalização estudantes pretos: 'Pontapé inicial'
Segundo levantamento da Fundação Itaú, modalidade tem pouco desequilíbrio racial e de gênero, mas não é nulo
Estudo aponta que o ensino técnico no Brasil possui pouca desigualdade racial e de gênero, mas varia em equilíbrio por regiões e áreas.
A Educação Profissional e Tecnológica (EPT), conhecida popularmente como ensino técnico, no Brasil possui pouca desigualdade racial e de gênero, mas falha em repetir o feito em todos os estados e áreas. É o que aponta um estudo feito pelos pesquisadores Alysson Portella e Thiago Patto da Fundação Itaú.
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Segundo a análise, os números se encontram em um equilíbrio relativo, no entanto, ao avaliar por regiões, há heterogeneidade com desequilíbrios pequenos, médios e altos, sendo os mais acentuados no recorte socioeconômico.
De acordo com os especialistas, para chegar aos resultados, foram usados dados do Censo Escolar de 2019 e calculados a partir de índice de Representação Descritiva (IRD). No IRD, o indicador possui cinco categorias. Sendo elas:
- 0: equilibrio total
- 10 e 10: equilíbrio relativo
- 10 e 30: equilíbrio médio
- 30 e 50: desequilíbrios médios
- Acima de 50: desequilíbrio alto
A partir desta métrica, no recorte por raça, de modo geral, há um equilíbrio relativo (-5,1). No entanto, quando olhamos a nível estadual, o número quase chega ao equilíbrio médio (-9,5). Segundo a análise, onde há mais desequilíbrio são nas regiões Centro-Oeste (-12,9) e Norte (-6,2).
Em gênero e raça, os números revelam que a presença masculina branca é a mais forte no ensino técnico. Os homens brancos estão melhor representados em todas as grandes regiões do país. Enquanto homens pretos, pardos e indígenas (PPI) possuem a pior representação. Nos números, o desequilíbrio é mais acentuado no Sudeste (-22,8), seguido pelo Centro-Oeste (-5,2).
As mulheres pretas, pardas e indígenas estão sub-representadas em quase todas as regiões do Brasil (-3,1), em especial, no Sudeste (-21) e no Centro-Oeste (-8,8).
Já no recorte socioeconômico, a representatividade por situação financeira dos alunos apresenta um desequilíbrio expressivo. Estudantes de baixo nível socioeconômico estão subrepresentados em todas as regiões, sendo o maior nas regiões Sul (-22,7) e Sudeste (-41,5).
Nos eixos tecnológicos, o estudo revela que há disparidade em gênero, de acordo com a área. As mulheres estão concentradas em certos eixos, como: ambiente e saúde, desenvolvimento educacional e social, gestão e negócios, produção cultural e design, produção alimentícia, produção industrial, e turismo, hospitalidade e lazer; mas estão em baixos números em outras áreas como: controle e processos industriais e informação e comunicação.
Falta de equidade em todas as áreas
Em entrevista ao Terra, os pesquisadores refletiram que ficaram surpresos ao perceber, inicialmente, que não havia um grande desequilíbrio no ensino técnico brasileiro. No entanto, os números também revelavam que esse baixo índice era seletivo e não acompanhava todas as nuances e necessidades da educação brasileira.
“É interessantíssimo que, numa primeira visão, não tem grandes desigualdades. [...] Precisamos considerar ainda que o universo da educação profissional ainda é pequeno e ele não contempla o tamanho da juventude e das matrículas do ensino médio. Mas, quando você vai olhar esse cruzamento de idades, você vai olhar onde estão as mulheres, os homens, os negros e tudo mais, você descobre desequilíbrios regionais. Você descobre que, em alguns lugares, o desequilíbrio é maior do que em outros”, pontua a superintendente do Itaú Educação e Trabalho, Ana Inoue.
Para Inoue, o desequilíbrio é resultado da desigualdade do país. “O que [o resultado] mostra é que, apesar de você ter mulheres e negros em quantidades proporcionais à população geral do país, quando eles se somam, você vai encontrar essa realidade que a gente já sabe que existe”, detalha.
“Precisamos fazer um esforço para sair deste lugar porque o default é esse. Os homens brancos vão ser mais encaminhados para carreiras que são mais tecnológicas e que são mais da indústria, que também são carreiras que pagam melhor do que as carreiras onde mulheres pretas, pardas e indígenas, por exemplo, estão ocupando”, pontua a especialista.
Ensino técnico como uma porta para o mercado de trabalho
De acordo com o Censo Escolar de 2023, a educação profissional e tecnológica (EPT) foi a modalidade de ensino que mais cresceu na educação básica no último ano. Segundo o Instituto Nacional de Estudo e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), entre 2022 e 2023, as matrículas na EPT passaram de 2,1 milhões para 2,4 milhões, representando um aumento de 12,1%.
Em entrevista ao Terra, estudantes e ex-estudantes dizem que optaram pela formação no EPT motivados pelo desejo de se profissionalizar e entrar mais direcionados e qualificados no mercado de trabalho.
O advogado Everton Brasiliano Oliveira da Silva, um homem negro de 23 anos, se formou em Tecnologia da Informação (T.I) através da Escola Técnica Estadual de São Paulo, quando tinha 17. Ele conta que foi orientado a entrar no processo seletivo do curso por um professor, ainda na escola, e foi aprovado.
“Tive na escola um professor que sempre falava que era interessante nós sairmos do ensino médio com um técnico para enfrentar as dificuldades do mercado. Então eu prestei um vestibulinho”, relembra.
Embora não tenha seguido na carreira, ele detalha que o chegou a trabalhar na área durante um período e que essa etapa teve forte influência em como ele se preparou no ensino superior.
“O técnico consegue fazer com que o aluno se desenvolva. Até porque a modalidade que eu fiz, eu vivia aqui na minha bolha, no meu bairro. Eu fui criado aqui no meu bairro, ia para a escola e voltava para casa. No técnico, eu tinha contato com outras pessoas. Com pessoas mais velhas, com pessoas que já tinham graduação, com pessoas que já tinham outros cursos”, detalhou.
Iris Rana Rocha Filho, uma mulher negra de 23 anos, fez dois cursos técnicos também pela ETEC, sendo um de Dança e outro de Meio Ambiente, quando tinha entre 15 e 17 anos. De acordo com ela, optou pelos cursos, pois ainda estava indecisa sobre o seu futuro profissional.
“[Hoje] eu trabalho nas duas áreas. Eu sou dançarina profissional de uma companhia de dança que tive contato durante o técnico [...] e tenho uma empresa de consultoria ambiental. Então, eu acabei seguindo os dois ramos”, conta Iris. Após concluir o técnico, ela detalha que fez uma segunda especialização, desta vez, no ensino superior na área de meio ambiente.
“[O técnico] foi o pontapé inicial e, com muita certeza, digo que foi uma das formas mais inteligentes que arrumei de escolher o que eu ia fazer com a minha vida”, relembra.
“Quando a gente estava no Ensino Médio, a gente tinha uma pressão absurda de decidir qual vai ser a nossa carreira dos sonhos. E eu tinha muitos interesses, então, fiquei muito perdida no que seguir. Principalmente, porque a gente não quer só fazer uma faculdade para estudar o que ama, mas também para ter uma carreira de sucesso no futuro. Foi muito importante para entender como me posicionar no mercado e me especializar”, detalha.
Iris detalha ainda que encontrou no curso de dança uma representatividade com a qual ela não tinha contato, na época. Entre os colegas e professores, tinham mulheres mais velhas e que já tinham uma carreira e que estavam redescobrindo suas paixões. Algo que ela não viu em Meio Ambiente.
“Ser um técnico em meio ambiente tem impressões muito mais matemáticas, mais bilaterais e foi muito difícil ter representatividade nesses lugares. Tanto com professores, quanto com a administração. Eram todas as pessoas, além de muito brancas, de classe média alta, com uma cabeça muito fechada para o que é ser um técnico de meio ambiente”, detalhou.