Como o samba foi para a avenida e entrou na sala de aula no Japão
Carnaval de Asakusa, em Tóquio, reúne meio milhão de pessoas em torno das escolas de samba
Uma escola privada de ensino médio do Japão resolveu incluir o samba em sua grade escolar. E o que era para ser uma aula sobre música transformou-se em uma exibição de bateria e dança.
Há 24 anos, cerca de 150 alunos e os graduados do professor Yoshihiro Shigeyama têm se reunido durante as férias escolares de agosto para intensos ensaios e confecção de fantasias que são apresentadas no desfile de Carnaval de Asakusa, em Tóquio, para um público estimado de meio milhão de pessoas.
O samba é ensinado desde 1998 como matéria optativa no colégio Jiyuu no Mori (Bosque da Liberdade), localizado na cidade de Hanno (Província de Saitama), a cerca de uma hora da capital Tóquio.
A escola é a única do Japão a incluir essa disciplina na grade escolar, com aula semanal e avaliação.
Porém, o curso está com os dias contados. O professor Shigeyama completou 60 anos de idade e deverá se aposentar em breve. "Sem um sucessor, não tem como continuar com o curso", lamenta.
Na época em que foi contratado para lecionar no Jiyuu no Mori, o colégio estava ampliando a lista de matérias optativas, e o samba foi apresentado como muito atraente para os jovens.
Esse gênero musical chegou no Japão muitos anos antes até mesmo do que a bossa nova, que se popularizou na década de 1960 quando Astrud Gilberto e Sergio Mendes foram para o Japão, e ainda hoje é muito tocada como música ambiente em restaurantes e cafeterias.
"Bossa Nova ouço no fone de ouvido enquanto leio em um café, é muito introspectiva. Já o samba é uma música alegre que você quer ouvir e tocar enquanto bebe cerveja", diz o japonês Willie Whopper, autor de seis livros sobre música brasileira e dono do barzinho chamado Aparecida, em Tóquio.
O samba fez parte de um pacote de novidades estrangeiras que invadiram o Japão durante o período de crescimento econômico no pós-guerra.
O jazz americano, a música havaiana, o folclore sul-americano, o yodeling escandinavo e até as canções folclóricas russas eram populares na época.
"Muitos conheceram o samba através do filme Você já foi à Bahia? (Three Caballeros, 1945), da Disney, e dos discos de Carmen Miranda", diz Willie.
Cantores japoneses também produziram suas versões de samba. O Matsuken Samba, interpretado pelo ator de dramas Ken Matsudaira, é um dos mais populares atualmente, embora não seja estritamente um samba.
"É um estilo exclusivamente japonês, que também mistura música latina, como o mambo cubano e ritmos caribenhos."
O que o professor Shigeyama tenta ensinar aos adolescentes é o gênero musical samba.
"Uma série de coincidências me levou a conhecer dois pandeiristas e um cavaquinista, todos japoneses envolvidos com ritmos brasileiros. Nas primeiras aulas eu falava sobre os instrumentos, mas depois que resolvi me aprofundar, o samba ganhou ritmo e som. Só não ensino a dançar, isso os alunos aprendem por conta própria", diz.
A participação da escola no Carnaval de Asakusa como GRES Bosque da Liberdade é resultado da empolgação do professor e dos estudantes.
"A primeira vez fomos para aprender". Mas desde a estreia no Grupo 3, em 2000, eles não perderam nenhum desfile.
E em 2019 acabaram subindo para a liga principal, onde há concurso e uma série de exigências, como número de integrantes (de 150 a 300), samba-enredo original e presença obrigatória da comissão de frente, casal de mestre-sala e porta-bandeira, além da ala das baianas.
O julgamento é semelhante ao do Carnaval do Rio de Janeiro, e os quesitos avaliados são enredo, evolução, fantasias/adereços, samba-enredo/bateria, dança e conjunto.
"Somos uma escola, e temos muitas limitações. Apesar das dificuldades financeiras, temos conseguido nos manter entre as oito equipes da liga principal", diz Shigeyama.
Segundo o músico paulista Claudio Ishikawa, de 65 anos, os japoneses são muito competitivos, e quando participam de um concurso como é o Carnaval, eles se dedicam muito a ganhar.
O prêmio em dinheiro concedido ao vencedor cobre apenas uma parte dos gastos que a escola de samba tem, produzindo alegorias e às vezes importando fantasias do Brasil.
"Mas isso parece não ter tanta importância para as grandes agremiações, desde que se consiga o reconhecimento dos jurados e do público."
Em 2001, Claudio criou o Bloco Arrastão, cujas características são a irreverência e as cores preto e branco — em homenagem ao Corinthians, seu time do coração.
Ele é adepto de fantasias mais simples e sambas-enredos com um pouco de sarcasmo e humor.
"Os japoneses estranham, mas entendem. Digo que o samba não é Carnaval, e precisa de intuição e flexibilidade."
No Japão, o primeiro contato das crianças com o samba muitas vezes ocorre nas aulas que discutem diversidade e multiculturalismo, quando geralmente as escolas de nível fundamental 1 convidam estrangeiros para apresentarem curiosidades acerca de seus países. No caso do Brasil, o menu acaba sendo o estereótipo samba-futebol.
Outras portas de entrada para o samba no Japão são as escolinhas de música e dança, e os clubes universitários.
A União dos Amadores é um exemplo. Criada em 1981, ela é formada por estudantes de diversas universidades japonesas da região de Kanto (que engloba Tóquio), onde há grupos que tocam, cantam e dançam música brasileira.
Embora haja concentração na capital, o samba é replicado em vários pontos do Japão.
No extremo norte, em Hokkaido, surgiu a escola de samba Urso da Floresta (criada em 2001), que anima festivais locais; e na ponta meridional do Japão é realizado o Carnaval Internacional de Okinawa.
Aprendendo in loco
As relações comerciais bilaterais indiretamente também contribuíram para propagar o samba e muitos outros aspectos da cultura brasileira no Japão.
A partir da década de 1960, diversas empresas japonesas se instalaram no Brasil, levando também a mão de obra especializada.
A família do administrador de empresas Tatsuya Itoh, de 61 anos, fez sua mudança para o Brasil nesse período.
Ele tinha um ano quando chegou no Rio de Janeiro, em 1964, e exceto um período de cinco anos, morou lá até 1982.
"Considero esta época como auge da MPB e do samba de raiz, e aprendi a cantar vários sambas ouvindo rádios e discos", diz.
Quando retornou ao Japão com 18 anos, ingressou na Universidade Cristã Internacional e lá fundou o clube universitário ICU Lambs (Latin American Music and Batucada Society).
Tatsuya aprendeu percussão em uma escola de samba de músicos brasileiros, em Tóquio, e depois resolveu levar alguns instrumentos para ensinar dentro da ICU.
Com exceção dele, ninguém conhecia nem o samba nem o Brasil. "O que tínhamos em comum era a curiosidade pela cultura. Já vivíamos num ambiente de diversidade e inclusão, e talvez os valores da ICU tenham ajudado a aceitarmos coisas novas."
Atualmente, a ICU é o único clube universitário a desfilar em Asakusa. Mas esse não era o principal objetivo do grupo.
"A intenção sempre foi o enriquecimento pessoal através do aprendizado pelo contato com a cultura brasileira, e o Carnaval sempre foi apenas uma das opções", afirma Tatsuya.
Os membros do clube fazem a votação para determinar o calendário do ano, e o Carnaval sempre foi incluído como uma das atividades anuais desde 2004, quando estrearam na avenida para comemorar o 20º aniversário da ICU Lambs.
Para turista ver
Entre julho e agosto, no Japão é comum presenciar pequenos desfiles de samba em bairros comerciais ou em festivais de verão. Porém, o evento no distrito de Asakusa tem outra dimensão.
O samba desembarcou lá em 1981, quando o carnaval foi incorporado aos festivais tradicionais, a fim de criar uma nova imagem para o bairro que vinha se deteriorando desde o pós-guerra.
Segundo o presidente do comitê executivo do Carnaval de Asakusa, Kazuyasu Inaba, este evento tornou-se parte do coração e da alma do distrito. A festa ganhou proporções e seu formato virou concurso, com duas ligas, 15 equipes participantes e quase 4 mil integrantes no total.
Desde 1981, o evento tem sido realizado todos os anos, exceto em 2011 - quando foi cancelado devido ao impacto do grande terremoto de Tohoku. E em 2022 e 2023, ocorreu sem os desfiles competitivos em decorrência da pandemia de covid-19.
No próximo dia 15 de setembro, o Carnaval promete ser como sempre foi, um espetáculo para meio milhão de pessoas assistir de graça, aglomeradas ao longo de duas avenidas, e um grande concentração em frente ao Kaminarimon (o portão do templo Sensoji).
De certa forma, os desfiles de rua acabam servindo de vitrine para atrair também mais japoneses para o samba. De tanto ouvir esse ritmo musical em casa e após participar de um desfile quando criança, o estudante Naoya Inoue, de 17 anos, acabou se apaixonando pelo ritmo.
Ele toca chocalho, é o atual diretor de bateria do GRES Bosque da Liberdade onde sua irmã Maho, que estudou com o professor Shigeyama, é a rainha de bateria.
"O samba mexe com o nosso corpo e a nossa alma. Quando tocamos, precisamos nos concentrar no ritmo, e ele vai nos envolvendo e tirando qualquer tensão", diz Naoya.
Seu colega Sotaro Konsho, 17, aprendeu tambor japonês (taiko) na infância, e na escola Jiyuu no Mori ele toca surdo. Apesar de se dedicar muito à percussão, diz que em breve se afastará dos instrumentos e da música, para se concentrar nos estudos. "O vestibular está aí. Quero entrar em uma faculdade de renome", diz ele, que ainda não definiu o curso.
Embora saiba que também precisará estudar muito para as provas no ano que vem, a porta-bandeira Shino Yamashita, 16, diz que vai priorizar o samba. "É o que me traz felicidade!"
Como a maioria, ela foi estudar samba no colégio sem conhecimento prévio. "No início achava que era só rodopiar com a bandeira, mas com o tempo fui aprendendo que tinha uma grande responsabilidade."
Fight Seki, 25 anos, nunca se distanciou do samba. Começou dançando sozinho, fazendo o papel de malandro, e logo se firmou como mestre-sala. Mesmo passados 6 anos da formatura, ele continua a desfilar pela GRES Bosque da Liberdade.
Foi ao Brasil três vezes, e em uma ocasião formou par com a porta-bandeira japonesa Sara Yokoyama, para desfilar pela Águia de Ouro no ano em que a escola conquistou o inédito título do Grupo Especial do Carnaval de São Paulo, em 2020.
Lamenta que seu trabalho como passador em uma churrascaria em Tóquio não o permita ficar metade do ano no Brasil como fazem alguns passistas e músicos japoneses que vão lapidar suas habilidades, mas está feliz por ter conseguido realizar o sonho de ver ao vivo o Carnaval do Rio.
Samba japonês
Segundo o músico Claudio Ishikawa, muitos japoneses tentam imitar ao máximo o Carnaval do Rio e de São Paulo, mas mesmo que façam tudo com capricho, isso nem sempre é possível.
Os carnavalescos japoneses se dividem entre cantar em português e em japonês. A escolha do idioma é crucial, pois ele é o elemento que pode tornar o samba-enredo mais, ou então menos japonês. No fim, muitos acabam misturando os idiomas.A escolha dos temas também varia muito.
"Muitas escolas de samba querem copiar o Brasil e exaltar a cultura brasileira ou cantar a África, coisas que nem a maioria dos integrantes nem o público conhece. Eu tento ao máximo falar algo que é do entendimento japonês", diz Cláudio.
Como exemplo, o Bloco Arrastão já cantou sobre sushi (Sambazushi), falou sobre o trajeto para o trabalho (tsukin samba) e o úmido e escaldante verão japonês. No primeiro Carnaval da ICU Lambs, o diretor de bateria, que era um músico experiente, resolveu compor em português.
"E como o idioma ajuda a trazer o ritmo mais próximo ao samba, conseguimos fazer um samba-enredo mais ou menos", lembra Tatsuya Itoh.
Atualmente ele atua como observador no clube universitário, e deixa tudo a critério dos estudantes.
"Mas penso que a mensagem do enredo deve ser algo que o japonês entende, utilizando histórias fáceis de compreender, como contos conhecidos, mesmo sendo de origem estrangeira", diz. A ICU Lambs, por exemplo, já foi campeã com enredo de sorvete.
No GRES Bosque da Liberdade, muitos sambas-enredos foram escritos pelos alunos, e falavam das coisas sob o ponto de vista dos jovens. Este ano, o tema será uma quase despedida.
A escola decidiu relembrar os 24 anos de participação no Carnaval, o período em que o professor Shigeyama esteve à frente do grupo ensinando o beabá do samba, os desafios e as conquistas, para terminar com o refrão "Bosque da Liberdade, a minha escola de samba. Meu coração é verde e laranja", cantado em português. O restante é todo em japonês.
Essa é a mistura típica e como os japoneses declaram sua paixão pela cultura brasileira.