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Da periferia a Amsterdã: jovem de MG ganha prêmio Anne Frank

5 set 2014 - 08h15
(atualizado às 12h13)
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A viagem incluiu atividades promovidas pela Confederação Israelita, mas Willian aproveitou a folga que teve para interagir com outros estudantes holandeses
A viagem incluiu atividades promovidas pela Confederação Israelita, mas Willian aproveitou a folga que teve para interagir com outros estudantes holandeses
Foto: Arquivo Pessoal

"A viagem foi mais legal do que eu imaginava que seria. Fez mudar meu modo de pensar sobre muita coisa. Pretendo voltar lá um dia, quem sabe com meus filhos, contando para eles toda a história da Anne Frank, o sofrimento dela e também sobre a minha redação que me fez conhecer o país." O relato é de Willian Junio Moreira de Souza, 15 anos, aluno do 9º ano do Ensino Fundamental da Escola Municipal Anne Frank, que fica no bairro Confisco, na periferia de Belo Horizonte (MG).

A viagem a qual se refere o garoto tímido, porém sorridente e sonhador, aconteceu entre os dias 24 e 31 de agosto e teve como destino Amsterdã, na Holanda, cidade que a estudante alemã Anneliese Frank, chamada pelos pais apenas de Anne, morou com a família até todos serem presos e levados para campos de concentração nazistas na Polônia e na Alemanha. Anne relatou em um diário os momentos dramáticos vividos por ela, familiares e amigos entre junho de 1942 e agosto de 1944. Todos se esconderam em um abrigo secreto que ficava nos fundos de uma fábrica em Amsterdã, até que foram descobertos e detidos pelas tropas de Hitler. 

Anne e a irmã, Margot, foram separadas dos pais e transferidas para um campo de concentração na Alemanha, onde morreram de tifo em 1945. Os pais das garotas, Otto Frank, foi libertado pelo exército russo e depois repatriado para Amsterdã recebeu o diário de Anne, que foi publicado em 1947.  

Passados 67 anos, sentado no banco da escola que leva o nome de Anne, coube a Willian a tarefa de escrever uma redação escolar que trouxesse para os dias atuais uma análise do sofrimento extremo vivido e descrito pela garota durante a Segunda Guerra Mundial. A Alemanha nazista ficou para trás, os ideais doentios de Hitler na busca por uma raça pura, idem, mas a intolerância racial, religiosa e as diferenças sociais e de classes ainda persistem. Mais do que nunca na vida de Willian, jovem negro e de origem humilde que mora em uma casa simples construída em meio lote e que vê na na mãe, a diarista Aurenice Moreira da Cruz, o maior exemplo. 

A viagem ocorreu entre 24 e 31 de agosto
A viagem ocorreu entre 24 e 31 de agosto
Foto: Ney Rubens / Terra

"Hoje, vejo a luta das pessoas por um mundo com igualdade, respeito e sem discriminação social. Vejo os negros lutando para conseguir seu espaço nas universidades, na política e nas empresas públicas; os indígenas lutando para preservar a sua cultura e até para não serem queimados em praça pública; as pessoas despertando e acordando para lutar pelos seus direitos. No período da segunda guerra mundial, as pessoas não tinham nem direito de lutar ou de reivindicar. Acredito que isso é pior: não poder lutar, não ter voz e não ter vez. Hoje, vejo que as pessoas têm mais oportunidades de lutar pelos seus direitos e liberdade de ir e vir. Nisso, vejo que a luta de Anne Frank não foi em vão, pois devido ao seu exemplo, muitas pessoas entendem que reivindicar os seus direitos é uma ação e não o parar e esperar. (…) Anne Frank nunca deve ser esquecida, pois uma simples história muda vidas. Não vamos deixar que esta história de crueldade se repita por meio do bullying, do preconceito, da discriminação, do racismo e muito mais. Todos querem mudar o mundo, o universo, mas ninguém dá o primeiro passo mudando a si mesmo. Mas, apesar disso tudo, eu ainda acredito na bondade humana," escreveu Willian.

Pela capacidade de percepção e expressão, o rapaz foi o vencedor do concurso nacional de redação promovido pela Confederação Israelita do Brasil (Conib) em parceria com a Federação Israelita do Estado de São Paulo. O tema deste ano foi “Anne Frank e a Preservação da Memória”. Participaram alunos do 5º ao 9º ano do ensino fundamental da rede de escolas públicas Anne Frank de Belo Horizonte, Palmas, Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo. A escola onde Willian estuda teve também a vencedora da categoria para alunos do 6º ao 9º ano. Lídia Helen Oliveira Lopes ganhou um tablet. Alunos das escolas de Palmas e Porto Alegre também foram premiados. No ano passado a instituição de ensino também já havia tido a vencedora nacional, a estudante Lívia Fernanda, 15 anos, colega do atual vencedor. 

A experiência 

Willian viajou para Amsterdã acompanhado do irmão, o professor de teatro Wesley Moreira; da professora, Rouse Ferreira; de Karen Didio Sasson, diretora executiva da Confederação Israelita do Brasil (Conib) e do diretor institucional Alberto Milkewitz: "A viagem foi sensacional. Quando nós chegamos lá fomos recebidos por algumas pessoas importantes da prefeitura e do museu da Anne Frank, que na verdade, é a casa onde ela morava. Nos dois últimos anos os vencedores e nem os diretores visitaram essa casa, eu tive esse privilégio.  Eles cuidam bem da casa para tentar preservar tudo. Outro lugar que eu tive acesso que pouca gente tem, foi o local onde o pai da Anne Frank fazia geleia. Foi muito legal," recordou, após retornar ao Brasil no último dia 31.

O estudante contou que ficou impressionado com a arquitetura e a gastronomia da cidade holandesa: "Eu vi muita coisa diferente. Os museus, principalmente. A  comida lá não tem arroz com feijão, só hambúrguer," contou. Em Belo Horizonte, a escola e a casa de Willian ficam próximas a uma praça onde  jovens costumam fazer o consumo de drogas, principalmente à noite. Mesmo assim, ele disse ter ficado incomodado com o que viu durante o passeio: "Achei estranho ver muita gente usando drogas ao ar livre, já que lá é liberado".

A viagem incluiu atividades promovidas pela Confederação Israelita, mas Willian aproveitou a folga que teve para interagir com outros estudantes holandeses: "Só tive o sábado livre, nos outros dias tínhamos atividades para fazer. Um dia eu fui até a escola de lá e eles pediram para eu ler a minha redação para a turma. Depois, uma aluna leu em holandês. No final, eles me fizeram algumas perguntas, tipo, o que eu mais gosto de fazer, de comer e qual a matéria que mais gosto na escola. Eu também pude fazer perguntas, quase as mesmas," explicou.

"No dia livre, eu resolvi sair sozinho e fui a uma loja comprar um tênis. Quando cheguei lá, eu não sabia falar que queria experimentar o tênis. O vendedor não entendeu o 'experimentar' e acabou entendendo a palavra 'spray'. Aí ele trouxe um spray para mim (risos). Outra coisa que eu não entendia também era quando os vendedores falavam dos valores das coisas. Aí eu pegava o meu celular e pedia para eles colocarem os números referentes ao valor. Deu para me virar com o telefone e comprar algumas lembrancinhas", recordou. "Tem um sapato que eles usam lá que achei bem diferente", disse, referindo-se ao famoso tamanco holandês.

Veja como foi a viagem de jovem ganhador do prêmio Anne Frank:

O professor de teatro Wesley Moreira, 20 anos, também disse ter curtido bastante a viagem, principalmente pelo fator motivador, a redação escrita pelo irmão: "Foi uma viagem que acrescentou muita coisa para a gente. Para ele como estudante e para mim, como professor que trabalha com a peça que fala sobre a Anne Frank. No sábado (último dia) a gente teve a oportunidade de assistir uma peça que falava sobre a vida da Anne e foi riquíssima para todos nós. Foi uma experiência única," analisou o sortudo e privilegiado Wesley, que para viajar com o irmão, teve que contar um pouquinho com a sorte.

"Como minha mãe não podia ir, o Willian fez um sorteio entre os irmãos. Sou eu e mais dois. Todo mundo queria ir, eu mais ainda porque trabalho com isso. E aí, acabou que no sorteio deu meu nome," revelou, com um sorriso de satisfação não somente pela experiência vivida durante a semana em que ele e o irmão estiveram na Europa, mas também pela união que o prêmio trouxe à família.

"Nós somos uma família de muita fé e sabemos que isso não aconteceu por acaso. Tanto que, quando meus irmãos ficaram sabendo, as coisas melhoraram. Todo mundo ficou envolvido e nós nos aproximamos mais. Ainda não deu tempo para contarmos para todo mundo como foi a viagem porque chegamos à meia noite de hoje (31 de agosto), mas vamos ter muita história para contar."

Uma delas, de aperto, literalmente: "Por exemplo, eu queria usar o banheiro e não sabia falar a palavra banheiro em inglês. Daí eu perguntei para uma mulher que estava passando na rua do jeito que eu pensei. Eu virei para ela e disse: Sorry, Banho? Ela olhou para minha cara, começou a rir e saiu andando. E eu fiquei apertado lá. Eu até pensei em fazer o gesto para ela, mas como estava no aeroporto eu fiquei como medo de fazer e depois ser preso," contou, às gargalhadas.

A diarista Aurenice Moreira da Cruz, 44 anos, mãe de Willian e Wesley, vibrou com a experiência dos filhos: "Foi uma emoção grande ver meu filho viajando para fora do Brasil. Eu não esperava. Ele nem me mostrou a carta e aí quando vi, a diretora estava ligando aqui em casa avisando que ele tinha ganhado e eu fiquei “meio assim”, sem acreditar. Só depois que eu fui acreditar e vi que era verdade. E quando ele ficou sabendo, saiu gritando que não estava acreditando. Só depois de tudo isso que ele foi ler a redação pra mim.  Aí vi que tinha muita emoção em tudo que ele escreveu. Essa foi a primeira vez que ganhamos algo, eu mesmo nunca tinha ganhado nada," sorriu, encabulada. 

"Eu não pude viajar porque eu que cuido deles e tinha que trabalhar. Não tinha como deixar as contas e despesas da casa. Quando eles foram deu aquele aperto no coração de mãe. Aquela preocupação de mãe, coisa de mãe, né? Quando ele chegou lá ele mandou um vídeo falando que estava tudo bem aí eu fiquei tranquila. Aí só fiquei esperando a semana passar para eles voltarem. Fiquei tão emocionada no sábado que nem dormi, esperando eles chegarem. É muito bom ver o filho da gente conquistando as coisas, crescendo na vida, estando no caminho certo," disse.

O preconceito como inspiração

Willian contou que a inspiração para o texto surgiu com a observação do dia a dia dele e dos colegas: “Escrevo e penso sobre quem foi a Anne desde criança aqui na escola. Ela foi uma garota que sofreu muito e que se trouxermos para os dias de hoje, fica muito parecido. Tem muita gente sofrendo bullying, preconceito," lamentou. A estudante ganhadora do prêmio em 2013, Lívia Fernanda, tem opinião parecida. Ela também esteve na Holanda após vencer o concurso e disse ter notado a diferença de culturas: “Lá é tudo diferente. As pessoas mais bonitas são as mais morenas, dos cabelos crespos, aqui no Brasil achamos as pessoas loiras mais bonitas," constatou.

Taynara Ketelen e Franciele Favoretti têm 15 anos e estudam na mesma sala de Willian e Lívia. As duas ficaram felizes com o desempenho dos amigos: “Eu fiquei muito surpresa porque ele (Willian) sempre foi muito bagunceiro e não gosta de estudar muito, mas fiquei feliz (sorrisos)”, disse Taynara. “Eu também não acreditei quando saiu o resultado porque ele não é de estudar muito na sala de aula. Ele fala demais, mas, apesar disso, é muito amigo e sabe conversar com a gente. E como a Lívia havia ganhado o prêmio no ano passado, ele tinha feito um propósito de ganhar esse ano. Ele tomou atitude e conseguiu. Ou seja, ele surpreendeu não só a ele como a gente," emendou Franciele.

“Ele serve como exemplo para a gente porque ele se dedicou e conseguiu. Mostrou que independente de onde a gente estuda, se tiver dedicação você pode conseguir um trabalho digno, ganhando um salário digno," completou outra amiga da dupla, Thamires Silva, 15 anos.

Os dois jovens vencedores são motivo de orgulho também para os professores e funcionários da Escola Municipal Anne Frank. A professora de Willian, Rouse Ferreira, que o acompanhou na viagem à Amsterdã, vibrou com o empenho do agora aluno famoso na comunidade: "Muita felicidade, orgulho e satisfação em ver o nosso trabalho reconhecido e valorizado. Sei que vou representar uma cultura brasileira, uma escola pública de periferia. Lá as pessoas querem ouvir sobre isso já que eles não entendem bem essa nossa realidade," disse, ainda antes de embarcar.

“Esse resultado, o segundo na minha gestão, é fruto de um trabalho de um projeto que implementamos na escola em 2009, projeto Anne Frank Viva, de autoria da professora Janice Faria. Ela queria entender um pouco mais do porquê do nome. Até então sabíamos que o lote (onde a escola foi construída) havia sido doado por um judeu, mas não tínhamos detalhes. Aí ela descobriu que existiam outras escolas Anne Frank no Brasil e no mundo," explicou a diretora Sandra Mara.

“Essa escola está localizada entre os municípios de Contagem e Belo Horizonte, em uma área vulnerável. A grande maioria das crianças e adolescentes são negras, de baixa renda, e com as famílias chefiadas por mulheres. Então a escola tenta dialogar com a comunidade com ações, como o projeto Anne Frank Viva, que estimula os alunos no aprendizado significativo. E esse é um processo que fazemos com as crianças desde os seis anos de idade, quando elas entram na escola,” explicou.

Leia abaixo o texto de Willian:

A história de Anne Frank na atualidade

Hoje, vejo a luta das pessoas por um mundo com igualdade, respeito e sem discriminação social. Vejo os negros lutando para conseguir seu espaço nas universidades, na política e nas empresas públicas; os indígenas lutando para preservar a sua cultura e até para não serem queimados em praça pública; as pessoas despertando e acordando para lutar pelos seus direitos.

No período da segunda guerra mundial, as pessoas não tinham nem direito de lutar ou de reivindicar. Acredito que isso é pior: não poder lutar, não ter voz e não ter vez.

Hoje, vejo que as pessoas têm mais oportunidades de lutar pelos seus direitos e liberdade de ir e vir.

Nisso, vejo que a luta de Anne Frank não foi em vão, pois devido ao seu exemplo, muitas pessoas entendem que reivindicar os seus direitos é uma ação e não o parar e esperar.

A história de Anne Frank foi e é importante para a humanidade saber como é o sofrimento das pessoas em uma guerra, a tristeza com a morte de amigos, a falta de água, comida e luz.

Além disso, é importante para nós valorizarmos mais a vida, aquilo que conquistamos, pois as pessoas que viveram durante a guerra, não tinham nada.

Anne Frank nunca deve ser esquecida, pois uma simples história muda vidas. Não vamos deixar que esta história de crueldade se repita por meio do bullying, do preconceito, da discriminação, do racismo e muito mais.

Todos querem mudar o mundo, o universo, mas ninguém dá o primeiro passo mudando a si mesmo.

Mas, apesar disso tudo, eu ainda acredito na bondade humana.

Fonte: Especial para Terra
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