Depois de 135 anos o país do “branqueamento” se autodeclara mais negro do que branco
O trajeto do país onde a política de branqueamento já foi indício de civilidade e evolução para um país majoritariamente pardo.
Na ideia de branqueamento, está o conceito de negritude (que nasce em Paris, na década de 30).
“O conceito de negro é um conceito político. Não um conceito genético”, como elucida Kabengele Munanga, professor e antropólogo, em uma fala no documentário “Kabengele: o griô antirracista”.
O Brasil — ao final do século XIX e início do século XX — foi marcado pela Abolição da Escravatura e pela instauração da República, fundamentando o pensamento social do brasileiro na questão racial.
Considerando as proporções (social, econômica e cultural) desses eventos, o debate sobre miscigenação racial foi um dos assuntos que mais mobilizaram a opinião de cientistas e intelectuais nas primeiras décadas do século XX, motivando a produção de uma série de ensaios de caráter científico e literário. Nessa época, a antropologia ocidental foi ferramenta importante para legitimar a colonização e exploração do continente africano.
“Depois de enfrentar o impasse do racismo científico estruturado pelo pressuposto do darwinismo social, o ideal do branqueamento foi adotado por diversos intelectuais a partir dos anos 1920 e 1930, visto como solução que nos desviaria dos possíveis efeitos perversos e possivelmente degenerativos da miscigenação. Nesse período ganha espaço a tese do culturalismo, reinterpretando positivamente a história da miscigenação e considerando as contribuições da cultura africana para a formação social brasileira.” (Skidmore, 1993).
No contexto internacional, o tema também vinha suscitando inúmeras polêmicas, resultado:
- das teorias eugênicas e do racismo (que grassava na Europa e nos EUA desde o século XIX);
- dos interesses imperialistas nos continentes africano, asiático e americano.
Nesse cenário, em regra, os “cruzamentos raciais” eram duramente condenados por médicos, antropólogos, eugenistas e viajantes estrangeiros, sendo vistos como os grandes responsáveis pela degenerescência das populações não-europeias.
Um plano político foi executado para que, ao longo do tempo, a valorização das características europeias tornasse a falsa teoria científica, um fato.
O debate sobre miscigenação ganhou diferentes significados para a população brasileira — desde visões negativas sobre o valor dos mestiços, passando por discussões acerca do branqueamento da população; até visões contrárias à formação mestiça brasileira como elemento distintivo da identidade e da cultura nacional —.
Na busca por uma população "branca" e "civilizada", foi promovida a vinda de populações europeias ao Brasil, fomentando outras camadas de miscigenação entre diferentes grupos étnicos — em particular, europeus e afrodescendentes —, "projeto que envolvia eugenização e a higienização social enquanto políticas públicas" (Antonio Carlos Lopes Petan, 2013).
Algumas etapas importantes desse elaborado plano chamado de “política do branqueamento” incluíram:
É fundamental destacar que a política do branqueamento refletia as visões e ideologias raciais prevalentes na época, além dos interesses das elites brasileiras e extrangeiras, sendo profundamente enraizada em noções de supremacia branca e hierarquias raciais trazidas por uma literatura científica (já em revisão) na Europa, ao final do século XIX.
Essa política alterou tão profundamente a percepção social do brasileiro que seus efeitos perduram até hoje. Amplamente disseminada em meios de comunicação e, até, em materiais escolares, a política do branqueamento contribuiu para estruturas e preconceitos, ainda, comuns na sociedade contemporânea.
Por isso, a luta antirracista questionou o estabelecimento de classificações que hierarquizam misturas (como mulato, caboclo, cafuzo, mameluco); o uso de nomeações pejorativas para os tons de pele; a imposição de um padrões de beleza e modo de vida sempre com referencial europeu.
Graças à longa trajetória de lutas e reivindicações do Movimento Negro, significativas mudanças foram acontecendo em discursos, livros escolares e veículos midiáticos. Mas a população ainda carece de mudanças para inclusão efetiva do povo negro nesse projeto de nação bem sucedida.
Daí advém a importância das ações afirmativas: políticas públicas voltadas a pessoas em condições de desigualdades sociais (em virtude das suas condições étnica, racial, de gênero ou religiosa). Tais ações servem como estratégias de reparação e equiparação social que proporcionam inclusão socioeconômica para grupos historicamente privados do acesso a oportunidades e direitos.
Um importante exemplo de política pública é a Lei de Cotas, implementada em 2012, nas universidades públicas do Brasil — que contribuiu para a ampliação do debate sobre identidade racial no país —. O feito é mérito do incansável Movimento Negro que, na metade dos anos 80, criou o Conselho de Desenvolvimento da Pessoa Negra (em SP), com a educação como eixo de trabalho.
Nos últimos tempos, foi intensificada a taxa de crescimento da população autodeclarada preta. De acordo com o IBGE, "os pardos aumentaram de 45,6% para 47%. Enquanto isso, a participação dos que se declaram brancos na população caiu de 46,3% para 43%", nos últimos dez anos.
Os nomes atribuídos às cores de pele, no Brasil, já desempenham papéis diferentes, podendo servir como dado à análise do discurso; ou empregados estrategicamente por falas em lugar de corpos ao encontro da autoestima negra. Ela perpassa pelas lutas por políticas de reparação, pela promoção de letramento racial e por ações de conscientização e valorização da história e cultura afro-brasileira.
Cada vez mais, sendo promovidos pelas próprias vítimas da racialização (como maneira de afirmação das suas múltiplas identidades), os debates sobre a autodeclaração ainda precisam avançar na direção ampliada de políticas de reparação social. Afinal, o Brasil ainda apresenta altos índices de crimes raciais, diariamente notificados — além dos crescentes crimes ambientais, que afetam diretamente as pessoas negras, mais vulneráveis à crise climática —.
Não há outro caminho possível à justiça cega a não ser a equidade, a fim de que se concretize aquele projeto de nação republicano, para todos os brasileiros.