Além de mensalidade, família paga para psicóloga acompanhar criança com autismo em sala
Presença do acompanhante terapêutico não é regulamentada por lei, mas pais tentam lidar com lacunas na política de inclusão
A demanda por um acompanhante terapêutico (AT) para João*, diagnosticado com transtorno do espectro autista (TEA) aos 2 anos, foi sugestão de especialistas em neurociência que o acompanham. O menino de 5 anos estuda em uma escola particular pequena no estado de São Paulo e, embora a família saiba que é a unidade de ensino que deve oferecer esse atendimento, desembolsa mensalmente o valor do profissional, além da mensalidade escolar.
"Dado que ele precisava de apoio, eu fui atrás de uma AT escolar pra poder ajudar em seu desenvolvimento. Existem comportamentos que são difíceis de manejo para quem não tem habilidade com ABA [Applied Behavior Analysis, que na tradução livre significa Análise do Comportamento Aplicada]. Muitas vezes, a escola, por não ter conhecimento necessário, acaba reforçando esse comportamento negativo", conta a mãe do garoto, que terá seu nome e o do filho ocultados para preservar as identidades.
Além de o profissional não custar barato, eles também investem em outros tratamentos para o menino, como terapia ocupacional, fisioterapia e psicomotricista. Com essa nova despesa, que está sendo bancada há três meses, os pais não sabem até quando vão conseguir lidar com tudo.
Para a acompanhante que vai todos os dias, pagando pela clínica particular, [a média do valor] é de R$ 5 mil a R$ 6 mil. Eu pago por fora. A acompanhante terapêutica não vai todos os dias, vai duas vezes na semana, porque eu não tenho condições de arcar com um valor tão alto. Isso fora a mensalidade da escola. - Mãe de criança com autismo
Apesar da demanda crescente pelo auxílio de acompanhantes terapêuticos em salas de aula, principalmente para alunos com TEA, a figura desse profissional não é regulamentada por lei. Para ativistas pela educação inclusiva e, até mesmo, para o Ministério da Educação (MEC), o AT é visto como da área da saúde e seu lugar seria fora da escola.
"Somos completamente contra", destaca Décio Guimarães, diretor de Políticas de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva, em entrevista exclusiva ao Terra.
A Lei Brasileira de Inclusão, implementada em 2015, define os professores do Atendimento Educacional Especializado (AEE) e os profissionais de apoio escolar como pilares da educação inclusiva. Mas em meio a lacunas da plena efetivação deste modelo, a demanda pelo auxílio de Acompanhantes Terapêuticos tem crescido.E, de qualquer modo, o texto proíbe o poder público e instituições privadas, de qualquer nível e modalidade de ensino, de cobrar valores adicionais de qualquer natureza em suas mensalidades, anuidades e matrículas para estudantes com deficiência.
- • A cobrança de valores adicionais em razão de deficiência é crime punível, com reclusão de dois a cinco anos, além de multa. Se o crime for praticado contra pessoa menor de 18 anos, a pena é agravada em um terço.
Limites
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Para as famílias, a nomenclatura dada ao profissional não importa, desde que seus filhos tenham o máximo de suporte para seu desenvolvimento. Os progressos de João, inclusive, já são percebidos pela mãe nesse curto período de tempo que a profissional o acompanha na sala de aula.
"Ele está melhorando as questões de bater, então os amiguinhos querem ficar mais perto dele. Agora, ele consegue fazer uma atividade do começo ao fim. Consegue fazer mais as atividades, deixou de querer quebrar o brinquedo do amiguinho ou brigar com o amiguinho", conta a mãe.
A profissional que acompanha João é psicóloga, formação mais comum para a função, segundo apuração feita pela reportagem. Procurado, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) não se manifestou sobre o número de profissionais que atuam nessa função, tampouco sobre a regulamentação dessa profissão em expansão. O espaço segue aberto para posicionamentos.
Mas especialistas defensores da educação inclusiva veem que um dos problemas relacionados à presença do AT nas sala de aula é justamente o fato de sua área ser a saúde e não a educação. Como explica Maria Teresa Eglér Mantoan, uma das responsáveis pela elaboração da Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), vigente desde 2008, o que é considerado, atualmente, é o modelo social de deficiência, não o modelo médico.
"O acompanhante terapêutico não faz parte do quadro da escola, não tem lugar no quadro da escola", diz Mantoan, que defende o professor do Atendimento Educacional Especializado (AEE) como o profissional previsto para romper com as barreiras físicas, atitudinais, comunicacionais e linguísticas que estejam impedindo o acesso desse aluno à escola.
O marco da mudança desse paradigma foi a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da Organização das Nações Unidas, de 2007, assinada e ratificada pelo Brasil em 2008.
Discussão no legislativo
No Congresso Nacional, a discussão em torno do AT ganhou maior proporção nas últimas semanas, quando passou a tramitar em regime de urgência o PL 3035/2020. O projeto busca instituir a chamada "Política para Educação Especial e Inclusiva, para atendimento às pessoas com Transtorno Mental, Transtorno do Espectro Autista (TEA), deficiência Intelectual e Deficiências Múltiplas".
Entenda o trâmite:
- • O Projeto de Lei 3035 foi apresentado em junho de 2020 pelo ex-deputado Alexandre Frota;
- • Em julho de 2023, o PL voltou para a discussão, com a incorporação de outros 14 projetos;
- • Um desses projetos é da deputada Tabata Amaral (PSB-SP), que busca alterar a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Lei Berenice Piana), assegurando o direito ao Acompanhante Terapêutico na sala de aula (PL nº 1847/2023);
- • Em agosto, Tabata pediu regime de urgência na tramitação do PL 3035 na Câmara dos Deputados, o que surpreendeu e gerou protestos de movimentos de apoio à educação especial na perspectiva inclusiva, que afirmam não terem sido consultados sobre as questões;
- • Em meio às pressões políticas, o MEC propôs um substitutivo ao projeto, que não cita a figura do AT, mas mantém a citação à presença de serviços clínicos na Educação Especial. Na versão mais recente do PL acessada pelo Terra, do dia 23 de agosto, as sugestões do MEC haviam sido acatadas. As mudanças ainda não agradaram os ativistas pela inclusão;
- • O PL 3035 está fora de pauta. A previsão é que ele seja levado para votação ainda em setembro.
A versão mais atual do PL tem como pontos principais a previsão de que as salas tenham dois professores, sendo um professor de educação regular e um professor fixo especialista em Educação Especial. Também há busca pela promoção do atendimento de equipes multidisciplinares na escola, incluindo setores como saúde e assistência social.
O Terra tentou uma entrevista com a deputada Tabata Amaral por três semanas, em busca de esclarecimentos sobre o PL 3035 e o porquê de sua urgência, mas ela não se pronunciou. O espaço segue aberto.
Preocupações
Apesar de o texto sugerir a ampliação da inclusão de estudantes que são público-alvo da Educação Especial - neste caso, com foco aos alunos diagnosticados com TEA -, entidades vinculadas à causa se posicionam contrárias ao PL. Entre elas, a Comissão Nacional da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (CNPEEI), a Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial (ABPEE) e a Associação Nacional para a Inclusão das Pessoas Autistas (ANIA-BR).
Renata Tibyriçá, defensora pública do estado de São Paulo e pós-doutora em judicialização do direito à educação das pessoas com deficiência, explicou ao Terra que há muitas preocupações sobre o PL. Uma delas, em sua avaliação, é que a proposta do acompanhante especializado "não resolve o problema das famílias pobres".
"Digamos que, de fato, esse profissional seja necessário e que tenha uma família que, de repente, vive com um salário super baixo. Eles vão ter que contratar um plano de saúde. A gente até prevê que, provavelmente, se isso [o PL] passar, essas famílias vão procurar a defensoria para poder solicitar esse profissional do SUS. Só que o SUS não tem esse profissional", explica Renata.
Existem casos de famílias que entram com processos na Justiça para que as escolas disponibilizem ou permitam a entrada do acompanhante terapêutico na sala de aula. No entanto, seguindo o estabelecido na Lei Berenice Piana, que prevê um "acompanhante especializado", o PL 3035 pode acabar misturando a função do AT com a do profissional de apoio já prevista em lei.
Renata acrescenta que, caso a atuação do AT passe a ser regulamentada por lei nacional e as escolas sintam a necessidade de tê-lo, ainda caberia às redes de ensino, públicas ou privadas, fornecer o profissional.
"A criança com deficiência tem que ser atendida em todas as suas necessidades. Se a escola acha que existe uma necessidade de intersetorialidade, ou seja, um trabalho intersetorial de saúde e educação, cabe a ela fornecer", afirma Renata.
'O que se diz, o que se faz'
A discussão em torno do PL 3035 também se estende à atuação da Secretaria de Políticas de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) do MEC. Apesar de o diretor Décio Guimarães ter se posicionado contrário ao projeto e o MEC planejar o lançamento de um plano de fortalecimento da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, o ministério apresentou um texto substitutivo ao PL com pontos que, segundo especialistas, divergem da política vigente.
O Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (LEPED) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenado por Maria Teresa Eglér Mantoan, divulgou uma carta aberta ao MEC após o Terra ter adiantado, com exclusividade, detalhes do plano que deve receber investimento de R$ 3 bilhões, questionando "as discrepâncias entre o que se diz e o que se faz".
De acordo com o Leped, para que a retomada à PNEEPEI seja coerente, é preciso que o MEC retire o substitutivo e se posicione contra o PL. Segundo o grupo, as propostas por um Plano de Ensino Individualizado (PEI) e pela presença de serviços clínicos na Educação Especial descaracterizam a atual política.
"Se era para garantir a continuidade da PNEEPEI, por que o MEC apresentou um substitutivo que a descaracteriza por completo? Por que deixou de apresentar o texto da própria PNEEPEI como substitutivo? Só essas escolhas já revelam a intenção de retirar a 'perspectiva da educação inclusiva' da atual Política, como tentaram fazer os dois governos passados", relata o Leped.
O medo é que, com a tramitação do substitutivo, a Política Nacional de 2008 seja enterrada após a aprovação do polêmico projeto de lei. O Terra entrou em contato com o MEC em busca de um posicionamento sobre as pontuações, mas a pasta não quis se manifestar.
Relutância de escolas
Representantes da educação básica privada historicamente relutaram não só em arcar com os custos da inclusão nas escolas, mas também com a obrigatoriedade de aceitar a matrícula de pessoas com deficiência. Em 2016, por exemplo, a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) chegou a ajuizar uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema.
“Durante muito tempo eles cobraram das famílias, às vezes, cobravam duas mensalidades, cobravam um valor extra. Se o menino precisava de um cuidador ou um profissional de apoio, a família que contratasse, então jogava tudo nas costas da família. Isso sempre foi assim, e aí quando a Lei Brasileira de Inclusão diz ‘olha, você não pode cobrar valor extra, e não só não pode cobrar, se você cobrar é crime’”, explica a defensora pública.
Em casos de judicialização pela falta de medidas de apoio, a defensora pública Renata Tibyriçá esclarece que, na maioria das ações que envolvem instituições privadas, as escolas afirmam ter aceitado o aluno, mas explicam que não tiveram condições e estrutura para realizar sua inclusão.
A justificativa é endossada pelo presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep), Eugênio Cunha. Em entrevista ao Terra, ele diz que defende a inclusão, mas considera que ela precisa ser feita a partir de quatro pilares: qualidade, razoabilidade, sustentabilidade e responsabilidade.
Não adianta fazer de qualquer jeito, porque sem qualidade não vai resolver nada. Se eu não tiver uma habilidade dentro da escola capaz de atender essa criança, não é razoável que eu o faça, porque eu vou fazer mal feito e sem qualidade. Também não adianta a gente ir colocando um monte de gente dentro da escola, e aí eu não ter como dar sustentabilidade à operação da escola particular. E, por último, a gente quer fazer isso com responsabilidade. - Eugênio Cunha, presidente da Fenep
Cunha ainda reforça que as escolas particulares estão dentro da nova legislação, apesar de não saber especificar como atuam os AEEs e como funcionam as tecnologias assistivas nas unidades. Com relação a cobranças extras, ele diz: "Não tem nenhuma cobrança extra ao pai do 'incluído'. Na realidade, isso é socializado com todos. É aí que vem a razoabilidade. Nós estamos dividindo uma conta de responsabilidade social".
O Terra buscou detalhes sobre a quantidade de processos abertos por causa de negações de direitos às pessoas com deficiência na educação no Ministério Público, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
* Essa é uma das reportagens da série Educar para Incluir, que faz uma imersão na educação inclusiva no Brasil a partir da história de alunos com deficiência ou com superdotação -- afetados, todos os dias, pelos êxitos ou falhas de governos e redes escolares. Acesse aqui.
- •Reportagem: Beatriz Araujo, Maria Clara Andrade e Marcela Coelho
- •Edição de vídeo: Luis Nascimento
- •Revisão: Estela Marques
- •Supervisão: Larissa Leiros Baroni
- •Tradutora de Libras: Jéssica Nascimento Moura
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