"Muito longe do que ele precisa", diz pai de criança superdotada sobre escolas para o filho
Famílias e especialistas afirmam que instituições não estão preparadas para receber esses alunos e enfatizam a necessidade de capacitação
Desde que os filhos Filipe e Lorenzo Barros Lopes tinham apenas um ano e oito meses, a mãe Aline Barros passou a perceber que eles eram "diferentes" de outras crianças na mesma faixa etária. Com essa idade, os meninos já começaram a ler, a se interessar por outros idiomas, como inglês e arábe, e aprendiam tudo com muita facilidade. O que explica isso? Eles são gêmeos superdotados.
Aline, porém, só descobriu isso anos depois, quando eles entraram na escola. Inicialmente, os professores desconfiaram que os gêmeos tinham Transtorno do Espectro Autista. Mas, ao procurar especialistas, as avaliações revelaram a superdotação dos dois.
Hoje com 7 anos, Filipe e Lorenzo estudam desde janeiro em uma instituição de ensino particular no bairro Ermelino Matarazzo, na cidade de São Paulo. Aline, 40 anos, conta, no entanto, que teve muita dificuldade para encontrar uma escola, porque, segundo ela, a maioria não está preparada para atender os seus filhos superdotados.
Os gêmeos têm interesses diferentes. Filipe gosta de estudar geografia e astronomia, enquanto Lorenzo é fascinado por ciências. Eles até gostam de ir para a escola e a superdotação poderia ajudá-los na rotina escolar, mas, na prática, não é bem isso que acontece: diariamente, eles dizem que se sentem muito entediados.
"Só tem atividades fáceis, queria fazer tarefas complexas", afirmam ambos para a reportagem do Terra. Por causa disso, os dois sempre recorrem à enfermaria da escola.
"Eles falam que estão com dor de cabeça, dor na barriga, dor no pé. Cada dia eles estão com uma dor diferente. É uma fuga, eles procuram sair daquele ambiente que não está oferecendo nenhum desafio para eles", diz Aline. "Os meninos falaram pra mim que acham que eles aprendem mais coisas assistindo o YouTube do que na escola", acrescenta.
*Para ver a versão desse vídeo com audiodescrição, clique aqui.
O mesmo acontece com Benjamin Marques, de 6 anos. Superdotado, ele aprendeu sozinho a falar inglês fluentemente e escolheu o idioma como sua primeira língua. "Ele tem até sotaque, o português dele parece de gringo", conta Fagner Marques, pai do garoto e que também foi identificado com altas habilidades, mas só soube disso aos 40 anos.
A superdotação de Benjamin também só foi descoberta depois que ele entrou na escola, aos 4 anos. Entretanto, desde que passou a frequentar o ambiente escolar, ele sempre afirma que não gosta da escola "porque não aprende nada". Os professores, inclusive, perceberam que ele dormia na sala de aula.
"Ele não encontra sentido nas coisas que ele tem que fazer. Por exemplo, ele passou o semestre inteiro pintando as letrinhas de A a Z, mas ele já sabe o alfabeto desde os dois anos, sabe o inglês", diz Fagner.
Atualmente, Benjamin estuda em uma escola particular de São Paulo.
"A escola que a gente o matriculou tem um programa bilíngue, com uma aula de inglês por dia. Mas a aula não serve para ele também, porque é um nível muito baixo. Pensando em estrutura física, essa escola é um pouco melhor do que a outra em que ele estava. O conteúdo, ligeiramente melhor. Mas muito longe do que ele precisa".
Segundo Fagner, ele e a esposa visitaram outras escolas internacionais, mas os custos eram muito altos para incluir no orçamento familiar.
O que é a superdotação?
O conceito de superdotação ou altas habilidades corresponde a uma condição em que os indivíduos apresentam grande facilidade de aprendizagem, o que os leva a dominar rapidamente conceitos, procedimentos e atitudes, segundo a cartilha Saberes e práticas da inclusão (2006), da Secretaria de Educação Especial, do Ministério da Educação (MEC). Pela definição do psicólogo educacional americano Joseph Renzulli, a superdotação é o entrelaçamento de três características:
- • Habilidade acima da média em alguma área de conhecimento;
- • Capacidade de realização criativa; e
- • Grande envolvimento na realização das atividades de seu interesse.
Um ponto importante é que o superdotado não é necessariamente aquele aluno que tira nota 10 em todas as disciplinas. Essa característica pode ser encontrada em alguns, mas em outros a superdotação pode se manifestar em apenas uma disciplina, como Matemática, ou dança, ou música ou esporte, por exemplo.
Essa noção equivocada de que um superdotado é aquela "pessoa que já sabe tudo", um "gênio", atrapalha inclusive na identificação e na inclusão desse público.
"Esse é um mito, simplesmente ele tem uma capacidade de execução cerebral superior. Mas é um indivíduo que não sabe tudo. Ele, na verdade, tem uma capacidade de aprender muito, de assimilar muito rápido", explica Carlos Eduardo Fonseca, o vice-presidente da Mensa Brasil, uma associação que reúne indivíduos com alto quoficiente de inteligência (QI).
A avaliação para verificação de indicadores de altas habilidades deve ser multidisciplinar, envolvendo psicólogos, neuropsicólogos, psicopedagogos, os pais, a escola e outros profissionais específicos, conforme o potencial de cada indivíduo. Testes psicométricos, para a aferição do QI, também podem ser procedimentos adotados em uma avaliação.
A identificação dos alunos
Segundo o Censo Escolar de 2022, há cerca de 47,3 milhões de estudantes na Educação Básica. Desses, em torno de 1,5 milhão são alunos da Educação Especial, grupo que abrange estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação.
De acordo com o levantamento, há 26.815 alunos identificados com altas habilidades ou superdotação nas escolas do país, mas o número pode ser maior. A Mensa estima que 3% a 5% da população brasileira seja de superdotados.
"Se você pegar só o recorte escolar, a gente está falando de pelo menos um milhão e meio de estudantes no Brasil com superdotação, números ideais. Só que essa identificação está muito além do que deveria ser", ressalta o vice-presidente da associação.
Essa falta de identificação é um dos principais problemas observados pelos especialistas ouvidos pelo Terra para que esse público tenha um atendimento adequado nas escolas.
"Imagina o sofrimento dessa criança de não ser enriquecida. Quantos talentos a gente não perde no Brasil porque ficou lá no fundo da carteira, porque ficou quietinho? Ou porque ficou insatisfeito, porque deixou a escola, porque não aguentava mais ir pra escola", questiona Patrícia Gonçalves, especialista em superdotação e doutora na área de cognição. Ela também é funcionária pública do Estado do Paraná e trabalha com alunos superdotados em uma Sala de Recursos Multifuncionais.
Fonseca acrescenta: "Hoje, só temos o atendimento ali para 26 mil estudantes e não temos o esforço de identificação. A gente tem que correr muito ainda atrás de direitos para que todo superdotado no Brasil seja identificado e consiga um atendimento adequado".
Em 2015, a Lei 13.234 que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, que regulamenta a educação no país, foi promulgada para a criação de um "cadastro nacional" de alunos com altas habilidades ou superdotação que estivessem matriculados na educação básica e na educação superior, para fomentar a execução de políticas públicas destinadas ao desenvolvimento pleno das potencialidades desse grupo. Até os dias de hoje, no entanto, o cadastro não foi implantado.
Ao Terra, o MEC disse que tem buscado diálogo com o Conselho Brasileiro de Superdotação para tratar do tema. "O Cadastro nacional de alunos com altas habilidades ou superdotação é uma previsão legal, constante na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional", pontuou a pasta para a reportagem.
O ministério informou ainda que prepara um seminário que fará "análises interseccionais e regionalizadas" para subsidiar todos os seus planos de ação, inclusive, os referentes à educação especial na perspectiva da educação inclusiva.
Os alunos superdotados ou com altas habilidades fazem parte do público alvo da educação especial do Brasil. Essa inclusão consta na Lei nº 12.796/2013, que também altera a LDB, e estabelece atendimento especializado gratuito aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e "altas habilidades ou superdotação"; a educação deve ser transversal a todos os níveis, etapas e modalidades, preferencialmente na rede regular de ensino.
Cada Estado e o Distrito Federal são responsáveis ainda pela publicação de resoluções, pareceres ou deliberações que regulamentam a forma de atendimento desse público.
Despreparo das escolas
Embora as leis e regras educacionais prevejam atendimentos específicos para os superdotados ou com altas habilidades, nem sempre isso ocorre. As famílias ouvidas nesta reportagem enfatizaram que há despreparo de algumas escolas para receber seus filhos.
Para atender os gêmeos Filipe e Lorenzo, a mãe Aline cita que a escola faz o enriquecimento curricular na sala de aula e os meninos levam tarefas para casa, mas ainda falta o Plano de Ensino Individualizado. O documento chegou a ser feito pela instituição de ensino, mas precisava de ajustes e até setembro deste ano não tinha sido entregue com as adaptações.
As escolas focam mais nos alunos que têm algum déficit. As crianças que têm superdotação são tratadas como se não precisassem de atendimento, porque acham que elas já sabem tudo. - Aline Barros
Segundo Aline, os pais de superdotados precisam sempre cobrar para conseguir atendimento. "Meus filhos são superdotados, mas eles não sabem tudo. Eles têm facilidade em algumas áreas, mas não em todas”, reforça a mãe de Filipe e Lorenzo.
A servidora pública Letícia Maltez, 43 anos, é mãe de dois meninos, Olavo, de 8 anos, e Alberto, de 10. No ano passado, os dois foram identificados como superdotados.
Com a avaliação em mãos, ela buscou o atendimento educacional especializado na escola em que eles estudam, em Goiânia. Mas, antes mesmo de saber da superdotação, ela já procurava por um aprendizado enriquecedor para os filhos porque percebeu a desmotivação deles.
No início deste ano, Letícia pediu à instituição a aceleração do filho mais novo. Mesmo com a avaliação de uma neuropsicóloga, a escola inicialmente negou, mas, depois de uma notificação extrajudicial, permitiu que Olavo fizesse as provas de reclassificação e ele passou do 2º ano para o 3º ano.
Em junho, ela cobrou da escola o plano individualizado e recebeu a resposta de que eles não sabiam fazer. Para ajudar os filhos, conforme conta, passou a estudar sobre o tema e a atuar em conjunto com a instituição. Letícia levou duas propostas de atendimento para a escola, uma para cada um dos filhos, que foram aceitas.
Esse realmente é o nosso direito, só que eles não sabem fazer. É um problema nacional que não vai ser resolvido a curto prazo, você precisa formar profissionais capacitados para isso. Enquanto isso, meus filhos estão estudando, eu preciso que eles sejam atendidos, então a melhor forma que eu encontrei foi estudar e me colocar à disposição da escola. - Letícia Maltez
Os especialistas também têm a mesma visão sobre o atendimento a superdotados nas escolas.
"O que eu mais vejo é que a escola não sabe o que fazer e vai enrolando até a família desistir de brigar ou trocar de escola, porque é um desgaste muito grande", afirma Claudia Hakim, advogada especialista em direito educacional e neurocientista.
Claudia já atuou em mais de 400 casos de alunos superdotados. A maioria, comenta a especialista, é para fazer aceleração de série. Ela decidiu se especializar na área há cerca de 15 anos, quando descobriu que os filhos, na época crianças, eram superdotados.
Para a advogada, também falta capacitação dos profissionais da escola para saber identificar os superdotados e aplicar na prática os direitos desse público.
"Lei temos muitas, tanto em nível federal, quanto em nível estadual. Precisa melhorar, sim, não criar barreiras, principalmente em relação à aceleração de série, mas a legislação existe. A grande questão é a falta de informação, facilitar o conhecimento de como fazer um PEI, por exemplo. Precisa de capacitação para que esses professores percebam quem são os alunos superdotados que estão em sala de aula. E depois, saber o que fazer com eles, porque existem diversas formas de atendimento", afirma Claudia Hakim.
Formação dos professores deixa a desejar
A formação dos professores em relação aos superdotados deixa a desejar desde a graduação, avalia Cristina Delou, presidente do Conselho Brasileiro para Superdotação (ConBraSD).
"A escola é o conjunto de pessoas que estão lá dentro atuando. O curso de pedagogia não forma, os cursos de licenciatura não formam, os professores só vão ter formação se forem buscar por conta própria, e às custas próprias", destaca.
Helia Mara França é professora de matemática há quase 20 anos e hoje atua em uma escola pública da prefeitura de Belo Horizonte (MG). Com conhecimento na Educação Especial, principalmente em superdotados, ela ajuda a identificar alunos com altas habilidades e, no contraturno, oferece em conjunto com outra professora aulas de enriquecimento nas disciplinas de Português e Matemática. Além disso, acompanha estudantes que têm interesse no programa Ismart, que oferece bolsas de estudos a jovens talentos de baixa renda.
"Eu acho muito interessante que eles se identificam. Um que sabe mais de determinado assunto se propõe a ajudar os outros, isso motiva e incentiva. Aquela motivação que ele não tem na sala de aula regular, ele tem nessa sala. A gente está caminhando devagar, mas está dando certo", diz.
Observando como é o dia a dia escolar, ela reforça a importância de capacitação para os professores nessa área, mas sinaliza que isso deve acontecer dentro do horário de trabalho do educador.
Nós, professores, temos tanto trabalho que não dá tempo de nos dedicarmos a pontos específicos, como esse de altas habilidades. Eu, por exemplo, tenho mais tempo para me dedicar a ler, ver vídeos, participar de aulas sobre isso, mas a maioria dos professores não tem. É preciso investir no aperfeiçoamento gratuito, porque tudo o que eu faço, eu tiro do meu bolso. E os cursos serem dentro do horário de trabalho porque tem professor que trabalha de manhã, à tarde e à noite para ter um salário melhor. - Helia Mara França
No Brasil, cerca de 94% dos professores regentes não têm formação continuada sobre Educação Especial. O dado é do MEC, referente a 2022. Na série histórica, desde 2012, é o ano com melhor índice.
O que diz o MEC
Em conversa com o Terra, Décio Guimarães, diretor de Políticas de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) do MEC, pontuou que a Rede Nacional de Formação Continuada de Professores (Renafor) tem, em curso, no mínimo três ações de formação com foco em superdotados ou com altas habilidades.
Ele revelou ainda que o MEC deverá levar formação para 1,3 milhão de professores regentes com relação ao tema da educação inclusiva em parceria inédita com a Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). O número representa cerca de 56% do total de profissionais do tipo na rede básica de ensino. Além disso, citou que a Renafor, em parceria com universidades públicas, deverá contemplar cerca de 20 mil professores com a formação continuada pelo programa.
Cristina Delou ainda mencionou a falta de materiais nas escolas para complementar a educação dos superdotados.
"Eles precisam de modelo anatômico, de mapas e planetários, precisam de materiais de artes, de modelagem, de pintura, de materiais de laboratório, de ciência, de matemática. O aluno superdotado tem um interesse imenso nessas atividades quando elas estão no atendimento educacional especializado. Em quantidade adequada, apropriada e qualidade apropriada, a gente não tem isso", detalha.
Já com relação ao fomento de Salas de Recursos Multifuncionais, Guimarães tem uma meta audaciosa para os próximos três anos: "Estamos trabalhando firmemente para democratizar a distribuição desses recursos. E nós temos como meta alcançar 100% dessas escolas".
Estímulo aos talentos
Para que consigam desenvolver todo seu potencial, pessoas com superdotação ou altas habilidades precisam de suporte e orientação especializada. Há alguns projetos sociais que atuam nesse segmento. Um deles é o Instituto Alpha Lumen. O Terra visitou a sede da ONG em São José dos Campos, no interior de São Paulo, no final de agosto.
O Instituto desenvolve inúmeros projetos junto à comunidade e tem estruturas de pesquisa nas áreas de educação, socioemocional, altas habilidades e cibercultura. Um dos trabalhos da ONG é o Projeto Escola Alpha Lumen, que atende estudantes do Ensino Infantil ao Ensino Médio, prioritariamente de baixa renda, que tenham altas habilidades. Nesse projeto, os "aprendizes", como são chamados, são acompanhados e experimentam diferentes atividades para alavancar seus talentos.
Durante a visita, a reportagem, acompanhada por vários "aprendizes", conheceu as estruturas desse espaço. As salas são compostas por mesas quadradas, que comportam quatro cadeiras ou mais, para os estudantes sempre trabalharem em grupos e se ajudarem.
A cada quadrimestre, eles podem escolher atividades que desejam participar. Há aulas na área de tecnologia, como programação e robótica; na área de esportes, a exemplo de judô, futsal, vôlei e xadrez; na área de artes, como dança, teatro e desenho. Também há aulas voltadas para participação de olimpíadas do conhecimento.
Para a realização dessas atividades, o local é formado por diversos laboratórios: o de audiovisual, o de artes, o de inovação, o de ciências, química e biologia; o de tecnologia; e o de astronomia, por exemplo.
"Estamos sempre criando e implementando coisas de acordo com o perfil que a gente tem de talento para que ele possa ter um caminho estrutural. Para nós, algo prioritário é o socioemocional. Então, temos que dar formação, conhecimento, ensinar a articular o conhecimento com sentido e um propósito para que aquilo sirva para alguma coisa. E isso é o que a gente faz em todos os projetos, que vão se formatando de acordo com as pessoas que estão naquele momento. O grande objetivo disso é o de não perder um talento e criar várias oportunidades para eles", explica Nuricel Villalonga Aguilera, fundadora do instituto.
* Essa é uma das reportagens da série Educar para Incluir, que faz uma imersão na educação inclusiva no Brasil a partir da história de alunos com deficiência ou com superdotação -- afetados, todos os dias, pelos êxitos ou falhas de governos e redes escolares. Acesse aqui.
- • Reportagem: Beatriz Araujo, Maria Clara Andrade e Marcela Coelho
- • Edição de vídeo: Luis Nascimento
- • Revisão: Estela Reis
- • Supervisão: Larissa Leiros Baroni
- • Tradutora de Libras: Jéssica Nascimento Moura