"Era a Caipora": quem são os brasileiros que já foram 'vítimas' de personagens do folclore
Além de gastronomia, ritmos e festas, os personagens são o que há de mais marcante no folclore brasileiro, celebrado nesta terça, 22
O aposentado Francino d'Eça não devia ter mais de 20 anos quando ficou preso dentro de uma mata baixa, de beira de estrada, no Recôncavo Baiano. Hoje com 77 anos, ele ainda lembra exatamente do que aconteceu quando decidiu colher frutas dos pés de cacau e limeira que estavam a seu alcance.
"Fui por dentro e vim para a estrada, tinha uma cerca de arame farpado. Quando eu tentei ir pra frente, percebi uma coisa estranha, porque não consegui. Parecia que tinha uma mata na frente. Tentava ir para direita, não conseguia. Para trás, muito menos. Fiquei quase uma hora, mais ou menos, nesse jogo, não acertava sair", conta ele, em entrevista ao Terra. "Aconteceu isso mais duas vezes. Aí uma pessoa me disse que era a Caipora".
Essa personagem é conhecida, junto com o 'primo', o Curupira, como protetora das matas e dos animais. Os dois têm cabelos vermelhos e são pequenos, mas têm algo particular: a Caipora percorre a floresta sobre um porco do mato, enquanto o Curupira tem os pés voltados para trás e assobio alto.
A advogada Kátia Filha, 29, garante que viu esse "homem menino" quando era criança e brincava no sítio de uma tia, no interior da Bahia. A única dos primos a se encorajar e buscar um brinquedo que havia caído na mata, ela se deparou com Curupira quando levantou a cabeça.
"A aparência dele era como se fosse uma pessoa normal mesmo. Ele era um homem, mas não consigo descrever ele. Era um rosto… Um homem menino, uma pessoa com cara de sapeca, travesso. Não me recordo de detalhes, não sei se o pé era pra trás mesmo, mas vi ele virando, me olhando e seguindo o caminho dele", conta Kátia.
A advogada afirma que a forma como se sentiu diante dele foi bem mais marcante.
"Quando ele olhou, era tão sereno, tão calmo, uma energia tão boa, algo tão bom… Cara de menino sapeca, mas o que emanava era algo bom. E parece que ele sabia que eu não tava fazendo mal algum àquele local. Parecia que ele estava observando o que a gente estava fazendo antes, que de alguma maneira ele sabia que eu iria até ali, sabe?! Não sei explicar", acrescenta.
Diferentemente de Kátia, que voltou para casa sem qualquer problema, o aposentado Francino d'Eça precisou seguir a lenda para não sofrer mais nenhuma "atrapalhada" naquela mata de Nazaré das Farinhas, cidade onde morava. Um conhecido sugeriu que ele colocasse fumo para a Caipora, como um pedido de "licença" para a figura protetora das matas.
"Comprei, coloquei, levei pra de junto de um tronco de uma árvore… Eu sei que depois disso, coincidência ou não, eu não vi mais nenhuma atrapalhada, e nunca mais fiquei perdido no mato", conta.
Como surgem as lendas do folclore
Relatos como o de Francino d'Eça e de Kátia Filha mantêm viva a cultura popular que gira em torno de mitologias e representações, com origem de quando a maior parte do Brasil ainda era rural. Além de elementos culturais, como gastronomia, ritmos e festas, os personagens são o que há de mais marcante no folclore brasileiro, celebrado nesta terça-feira, 22.
A Caipora ou Curupira, junto com o Saci Pererê, a mula sem cabeça, o boitatá e o boto, por exemplo, seguem vivos na memória coletiva. No entanto, essas lendas e mitos não são exclusividade do Brasil, de acordo com o sociólogo Elder Maia Alves, professor do Instituto de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação em sociologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
"Nas sociedades europeias não foi diferente, ao longo dos seus centenas de anos de formação, isso muito ligado ao mundo rural, porque é um mundo feito de lendas, de incertezas, de ameaças constantes da natureza --fomes, misérias, períodos de doenças e contaminações-- e essas lendas são produzidas pela memória popular, pela oralidade das populações rurais", explica.
Antes conhecido como uma ave, o Saci, por exemplo, foi migrando para formas mais humanas até chegar ao menino negro de uma perna só. O pesquisador Ademilson Franchini, escritor de obras sobre mitologias, diz ainda que esse personagem engloba traços de diferentes imaginários. Por exemplo, a carapuça vermelha que lhe confere a invisibilidade é um elemento comum aos duendes europeus.
Autor do livro 'As 100 Melhores Lendas do Folclore Brasileiro', Franchini acrescenta que essas histórias folclóricas tentam, por vezes, encontrar justificativa para algo "inexplicável". É como o que aconteceu ao ex-seringueiro Santana Damasceno, 71.
Natural de Santarém, no Pará, ele foi para a região do Acre em busca do látex das seringueiras, árvore natural da Amazônia. Numa época em que trabalhava com comércio mercantil no rio, deixou a canoa no porto e seguiu em direção à sua casa, a cerca de 500 metros de onde havia desembarcado. Já estava escuro quando ele tentou subir um barranco, mas não conseguiu.
"Senti uma coisa estranha, um barulho grande, tipo vento", lembra ele, que só chegou em casa após atravessar o caminho acompanhado de um amigo.
Questionado sobre o que poderia ter sido esse fenômeno, ele hesita, mas não nega a possibilidade de se tratar do Saci Pererê. "Não sei o que poderia ser, porque nunca vi outra coisa parecida", acrescenta.
A inclusão do folclore no currículo escolar
Desde 1965, quando foi instituído por meio do Decreto nº 56.747/65, o Dia do Folclore é celebrado para destacar a sua importância para a formação da cultura brasileira. Por esse motivo, os elementos do folclore continuam sendo abordados nos currículos escolares. O que mudou de lá para cá, na avaliação do sociólogo da UFAL é a forma como esses personagens são apresentados.
Alves diz que hoje há um "viés mais positivo", que se concentra nas heranças africanas e indígenas e destaca a diversidade cultural de nossa formação.
"Há cerca de 20 anos ou mais, o conteúdo das nossas lendas e tradições era abordado com certo desdém e preconceito, pois 'pareciam' revelar traços de arcaísmo, atraso ou infantilidade. No entanto, o contexto político de uma educação mais inclusiva e que valoriza a história e a cultura das populações afro-brasileiras permitiu que esse conteúdo passasse a ser abordado com mais respeito, valorização e interesse", argumenta.
O pesquisador reforça a importância dessas lendas, mitos e representações como expressões do saber ancestral popular. Alves esclarece que, diferentemente do que pressupõe a perspectiva elitista, esses conteúdos não são atrasados ou místicos, mas reúnem ensinamentos das diferentes culturas regionais e de suas tradições.
Por outro lado, o sociólogo pondera que hoje os professores estão mais qualificados, acadêmica e intelectualmente, para incorporar esses saberes no dia a dia dos estudantes. A celebração do folclore precisa existir, mas reconhecendo suas violências, dramas e exclusões.
"Mas também celebrando a diversidade e a capacidade de ressignificar esses conteúdos, positivar e valorizar o que temos de grande triunfo, como grande repositório de experiências, de mitos, de conteúdos e criações, que estão presentes e foram forjadas na formação e construção da sociedade brasileira, dentro dos diversos territórios e com as diversas naturezas e biomas".