Ricos deveriam financiar ensino, analisa reitor brasileiro
"Com o Estado em dificuldades, as pessoas de sucesso se voltam para proteger e investir na própria família", critica brasileiro
Brasileiros ricos deveriam seguir o exemplo de americanos e doar parte de suas fortunas para melhorar a educação do país, diz à BBC Brasil José "Zito" Sartarelli, reitor da Universidade da Carolina do Norte Wilmington (UNCW), nos Estados Unidos.
Tido como o primeiro brasileiro a dirigir uma universidade americana, Sartarelli afirma que muitos brasileiros ricos agem como se fossem "levar à tumba todo o dinheiro". "Na nossa cultura ibérica, esperamos que a educação seja provida pelo Estado, grátis. Agora, com o Estado em dificuldades, as pessoas de sucesso se voltam para proteger e investir na própria família", critica.
Sartarelli foi escolhido reitor da UNCW no último mês de abril, em seleção com 95 candidatos. A instituição figura nos rankings das melhores universidades públicas do sul dos Estados Unidos.
Nascido há 65 anos em Ribeirão Bonito, cidade com 12 mil habitantes no interior de São Paulo, ele migrou para a educação após uma carreira internacional no setor farmacêutico.
Depois de passar pela Eli Lilly e pela Bristol-Myers Squibb, Sartarelli foi presidente da Johnson & Johnson na América Latina, Japão e Ásia-Pacífico entre 2001 e 2010.
Formado em administração de empresas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo, em 1973, ele fez MBA e doutorado na Universidade de Michigan State, nos Estados Unidos, quando conheceu sua esposa, Katherine.
Sartarelli voltou ao meio universitário em 2010, desta vez como diretor da Faculdade de Economia e Negócios da Universidade de West Virginia, cargo que deixou neste ano.
Sartarelli defende que universidades se aproximem de empresas e diz que o Brasil abriu mão de investir em centros de excelência, o que terá um alto custo no futuro.
Ele afirma ainda que, para que a universidade que dirige possa competir com as melhores instituições americanas, será essencial atrair bons estudantes. Leia os principais trechos da entrevista, concedida por telefone na última semana.
BBC Brasil - O senhor tinha uma posição de destaque no mundo dos negócios. Por que resolveu se dedicar à educação?
Zito Sartarelli: Eu tinha alguns objetivos claros quando entrei na carreira corporativa: queria ter uma carreira internacional, atuar na área comercial e eventualmente ser o presidente ou gerente-geral de uma empresa. Depois de 30 anos, já tinha feito tudo isso.
Pensei que talvez fosse a época de voltar para área acadêmica e "give back" (devolver). Retornar e compartilhar com estudantes, pessoas jovens, tudo aquilo que aprendi.
BBC Brasil - Como a gestão de uma empresa se diferencia da gestão de uma universidade?
Sartarelli:
Embora a liderança moderna nas empresas seja participativa, na área acadêmica é muito mais. Os professores todos têm uma influência muito grande, porque a definição do que nós entregamos para o aluno é feita por eles. Na área corporativa, você tem bastante poder de fogo para contratar, desenvolver e também demitir pessoas.
BBC Brasil - O fato de ser brasileiro afeta de alguma forma o seu trânsito em universidades americanas?
Sartarelli:
Os Estados Unidos são um dos poucos países onde pessoas como eu conseguem chegar aos mais altos níveis através da capacidade, do mérito. Mas alguns podem ter visto minha contratação como "por que queremos ter um estrangeiro nessa posição?". Por mais perfeito que meu inglês seja, tem sempre um resquiciozinho (de sotaque) que vão reconhecer.
BBC Brasil - Como compara o ensino superior no Brasil e nos Estados Unidos?
Sartarelli:
No Brasil não conseguimos ainda fazer conviverem excelência e acesso. O sistema de sucesso tem de permitir o acesso a todos os alunos competentes. Por outro lado, o País tem também que focar em algumas áreas específicas de excelência, onde vai ser muito difícil entrar, não vai ter proteção por minorias, onde você tem que ser realmente bom.
A única maneira de avançar a ciência é ter nível de excelência ímpar. Todos os países de desenvolvimento recente, especialmente na Ásia, têm tido uma preocupação muito grande em criar centros de excelência competitivos ao níveis mais altos no mundo. O que nós não temos feito. Vamos pagar um preço mais alto no futuro, porque vamos continuar sendo copiadores, e não inovadores.
BBC Brasil - O senhor acha que o avanço de políticas afirmativas nas universidades públicas brasileiras afetou a qualidade?
Sartarelli:
Não sei. Acho que a não focalização em excelência no Brasil começou há muito tempo, muito antes das políticas afirmativas recentes. Estou falando das décadas de 70, 80, 90.
Já se notava a proliferação de cursos em todo o lado, de baixo nível. Se houvéssemos feito isso e mantido grandes centros de primeira linha, de pesquisa, tudo bem. Mas não fizemos.
BBC Brasil - O senhor dirige uma universidade pública num país onde as universidades mais renomadas são privadas. Como concorrer com instituições que estão entre as melhores do mundo?
Sartarelli: Você tem que ter grandes estudantes. Quando eles chegam aqui, eu digo: "Não estou interessado em coletar sua anuidade. Quero que venham aqui para trabalhar duro".
Vai ser muito importante minha habilidade em angariar fundos para bolsas de estudos, porque com elas vou conseguir atrair os melhores. Se você é um estudante de primeira linha nos Estados Unidos, vai fazer faculdades privadas sem pagar nada, com bolsas de estudo.
As grandes universidades públicas têm que fazer a mesma coisa. Se você traz grandes alunos, isso atrai grandes professores, porque eles querem ensinar os melhores. É um círculo virtuoso.
BBC Brasil - O senhor doou US$ 100 mil para um programa de bolsas da Universidade de West Virginia. Acha que as doações, que são uma prática comum entre americanos ricos, deveriam desempenhar um papel maior no financiamento do ensino no Brasil?
Sartarelli:
Sem dúvida alguma. O Bill Gates e outros foram recentemente à China falar sobre doações. O número de doações que têm vindo do Oriente para grandes instituições americanas é muito grande. São ex-alunos asiáticos que fizeram fortunas nas suas terras de origem. Acho uma prática muito boa, que deveria ser incentivada.
Depois de ter criado grandes empresas de aço, o (Andrew) Carnegie (1835-1919) deu toda a fortuna dele para criar grandes bibliotecas em todo o mundo. O Bill Gates, a mesma coisa.
BBC Brasil - Por que isso não ocorre no Brasil?
Sartarelli:
Na nossa cultura ibérica, esperamos que a educação seja provida pelo Estado, grátis. Agora, com o Estado em dificuldades, as pessoas de sucesso se voltam para proteger e investir na própria família.
Temos tido algumas exceções, como o Antônio Ermírio de Moraes (1928-2014), pessoas que sabem que não vão levar à tumba todo esse dinheiro. Mas muitos deixam fortunas para a família, que em uma ou duas gerações desperdiça tudo.
Eu doei porque tinha condições e achei que devia fazê-lo. Sou um produto também de bolsas de estudos. Recebi três ou quatro bolsas que me permitiram fazer o que sou hoje.
BBC Brasil - Há quem defenda que as universidades se aproximem das empresas e quem pregue que sejam completamente independentes. Com o senhor acha que deve ser a relação delas com o setor privado?
Sartarelli:
Acho que ela deve existir, deve ser cooperativa. A universidade tem muito a ganhar com o mundo corporativo e vice-versa.
Nos Estados Unidos, as universidades que mais auferem dinheiro em termos de licenças comerciais são grandes universidades de pesquisa, como Yale, Stanford, Harvard. Essas universidades descobriram algumas coisas e hoje recebem royalties que são usados para mais pesquisa, bolsas de estudo.
O que não queremos fazer é transformar a universidade num curso profissionalizante. A universidade forma a pessoa como um todo: queremos que nosso aluno aprecie as artes, tenha um profundo conhecimento de ciências e também seja um profissional.
BBC Brasil - O senhor considera um dia trabalhar com educação no Brasil?
Sartarelli:
Essas opções são sempre abertas. Adoro o Brasil e gostaria que estivéssemos muito mais avançados do que estamos.