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Brasil, inspiração de utopias

25 fev 2016 - 15h58
(atualizado às 15h59)
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Ensaios franceses do século XVI sobre a vida na França Antártica
Ensaios franceses do século XVI sobre a vida na França Antártica
Foto: Reprodução

A escolha dos ensaios franceses do século XVI sobre a vida na França Antártica deve-se a um acontecimento histórico: o registro dos 450 anos da chegada da expedição francesa do vice-almirante Nicolas Durand de Villegagnon à baia da Guanabara, (batizada por ele como Henriquina), em novembro de 1555.

O capitão e mais 600 que o acompanharam, vieram para aqui lançar as bases da França Antártica, a utopia tropical dos franceses. Como se sabe, a intenção deles era para fazer do Rio de Janeiro uma Escola de Cristo, voltada para a tolerância e o bom convívio entre católicos e huguenotes/calvinistas, com o fim de estabelecer um refúgio para todos os que se sentiam perseguidos na Europa em razão das suas crenças. Experiência essa que rendeu dois ensaios que a imortalizaram.

Assim sendo, concentra-se a atenção em dois autores do século XVI que tiveram enorme importância na formação da etnologia e da antropologia brasileira e, mesmo na universal. Os livros que eles escreveram, as idéias que ajudaram a difundir, transcenderam os tempos e ajudaram na formação dos grandes mitos ocidentais: o da possibilidade de alcançar-se a sociedade perfeita e o da bondade natural do ser humano.

Cronologicamente, o primeiro deles a ser publicado foi de Jean de Léry (1534-1611), um jovem missionário calvinista que chegou ao Forte Coligny em 7 de março de 1557, juntamente com 14 colegas de ofício. Depois de uma curta estadia no Brasil, permanência que não chegou a completar um ano, retornou à França carregado de anotações envolvendo-se em seguida na voragem das guerra religiosas, travadas naquele reino a partir de 1562 (com o massacre dos huguenotes em Wassy), estendendo-se por quase 30 anos, até a Reconciliação de Henrique III e Henrique de Navarra, ocorrida em 1589. Dele é a Viagem à terra do Brasil, provavelmente começado em 1563 mas somente publicado em 1578, em La Rochele, a fortaleza dos huguenotes na França.

O outro é apenas um capitulo, o 31º do livro de Ensaios do grande escritor Michel de Montaigne (1533-1592), vindo à luz apenas dois anos depois, em 1580, intitulado Dos Canibais. Logo no prefácio o autor registra o enorme impacto que causou sobre  ele,  o encontro que teve com os índios  tupinambás escrevendo: “Se tivesse nascido entre essa gente de quem se diz viver ainda na doce liberdade das primitivas leis da natureza, asseguro-te que de bom grado me pintaria por inteiro e nu.”( Do autor ao leitor: março de 1580). Montaigne decidira escrever sobre si mesmo e registrar as impressões que o meio circundante e as leituras clássicas lhe causaram.

Os dois livros, portanto, apareceram quase que simultaneamente, sendo que ambos foram um sucesso. Um era de um pastor calvinista, o outro de um filósofo que, sem bem que católico, na verdade era um céptico e um antidogmático.

Nativas confeccionando o cauim
Nativas confeccionando o cauim
Foto: Reprodução

A importância dos dois livros

Tanto o livro de De Léry como o de Montaigne encontram-se entre as melhores narrativas sobre o encontro de dois mundos: o da civilização cristã europeia com os selvagens pagãos do novo mundo, um verdadeiro choque de culturas.

É o registro do cruzamento de dois mundos totalmente estranhos entre si, tão diferentes como se eles fossem, os europeus e os índios, habitantes de planetas diferentes. Mundo esse que De Léry tomou contato pessoalmente, enquanto que Montaigne sobe dele indiretamente, por meio de informações de um empregado seu que estivera na França Antártica e pelo encontro casual que teve com alguns tupinambás, três deles que estavam em Ruão, na França, em 1550, nos tempos de Carlos IX.

A ilha de Villegagnon na baía Henriquina
A ilha de Villegagnon na baía Henriquina
Foto: Reprodução

Se Léry, de certo modo, como tantos outros calvinistas depois dele, coloca os indígenas fora das possibilidade de serem integrados à cristandade, Montaigne os percebe como uma poderosa e ilustrativa antítese da civilização europeia.

Tratava-se de exemplares perfeitos do Mundo Natural, bom e puro, num confronto com o Mundo Civilizado, hipócrita e dissimulado. Nesta sua condescendência para com os índios, o autor chega inclusive a desculpar-lhes  o hábito da antropofagia, visto  não querer condenar uma prática não pior para ele do que a utilização das fogueiras, facilmente acesas durante as guerras religiosas travadas na França contra os inimigos caídos, considerados como hereges.

A projeção ideológica e intelectual do livro de De Léry e do famoso capitulo de Montaigne perdurou pelos séculos. O do calvinista -  e é ninguém menos do que Claude Lévi-Strauss reitera isso - ,  serviu como o “ breviário do etnólogo”, manual a ser seguido por todos os antropólogos que se prezem  ( pode-se até dizer que De Léry foi o primeiro dos antropólogos do Novo Mundo: o inventor da moderna antropologia), visto que o material coletado por ele foi levantando empiricamente na baía da Guanabara quando das suas incursões pelas aldeias dos tupinambás.

O de Montaigne tomou outros rumos. De certo modo suas observações contidas no Dos Canibais reforçou junto aos franceses a descrição da sociedade perfeita descrita anteriormente  por Thomas More na “ Utopia”, obra de 1516, difundindo entre os seus conterrâneos   bem pensantes a possibilidade de  algum dia poder-se reconstruir na Europa, no Velho Mundo tido por decadente, as organizações sociais livres e igualitárias que existiam no Novo Mundo.  Assim, enquanto um fundou uma profissão: a de antropólogo, o outro serviu de farol para todos os reformadores sociais que se seguiram:  como J-J. Rousseau,  G.Babeuf e E. Cabet.

Estrutura do livro de De Léry

O livro de De Léry é dividido em 22 capítulos que pode , com certa liberdade, serem colocados em três blocos mais ou menos separados.

O primeiro deles (do capítulo 1 ao 7) trata das agruras da viagem até a chegada ao forte Coligny, incluindo a prece de Villegagnon onde expõe o seu sonho de um país calvinista.

Em seguida, entre os capítulos 8 e 20, e essa é a parte maior e mais famosa, ele dedica-se a  fazer uma detalhada descrição da vida natural e dos nativos (aspecto físico, alimentos, fauna, os hábitos da guerra, a cerimônia antropofágica, as crenças dos nativos, as núpcias, o sistema de parentesco e a criação dos filhos, encerando com os rituais fúnebres e a inumação dos mortos).

Por último, apenas dois capítulos, o 21 e o 22, são reservados ao rompimento final com Villegagnon e os enormes perigos que passaram ao retornar à França, ancorando enfraquecidos e famintos  no porto de Blavet na Bretanha, em maio de 1558.   

Estrutura do capitulo de Montaigne

O autor assegura que suas primeiras informações sobre o Novo Mundo vieram de um seu servido, homem rude que estivera com Villegagnon. Em seguida,  refere-se as lendas do Continente de Atlântida, sabidas por Sólon e Platão, e ainda Aristóteles que faz menção à “Ilha Fértil”, além das Colunas de Hércules. Nada vê de bárbaro no relato sobre a vida dos nativos do Novo Mundo, celebrando sua forma original, intacta, negando-se a chamá-los de selvagens.

Na verdade, representam a República Perfeita Original, formada por homens que saíram “diretamente das mãos de Deus”. Sociedade sem leis nem regras escritas, perfeitamente adaptada à natureza de um clima suave. Dedica-se então Montaigne a descrever a vida dos nativos, seus hábitos e costumes, todos marcados pela simplicidade. orientados pelos pajés e pelos caciques. Então dá inicio a minimizar a prática do canibalismo, citando em seu socorro Crisipo e Zenão.

Fazem a guerra, disse ele, de “modo nobre e generoso”. A guerra que travam não visa a conquista de território, mas sim apenas obrigar o inimigo a confessar-se vencido.

Elogia-lhes a poligamia pois isso evita os infernos do ciúme. O final do capitulo é dedicado ao encontro do autor com um morubixaba em Ruão, quando o chefe indígena lhe expõe o espanto pela imensa desigualdade social reinante entre os franceses, espantando-se ele pelos infelizes famélicos que ele via por toda a parte não se revoltarem contra aquilo. Encerra tudo com a célebre frase “ Mas que diabos, essa gente não usa calças!”.

Bibliografia

- Léry, Jean de – Viagem pela terra do Brasil, RJ,  Biblioteca do Exército - Editora, 1961.

- Lévi-Strauss – Tristes Trópicos, Lisboa, Edições 70, 1979.

- Montaigne – Ensaios, SP. Editora Abril,  1972.

- Lestringant, Frank – Os Canibais, Brasília, UnB, 1997.

- Ziebell, Zinca – Terra de canibais, Porto Alegre, Editora da Universidade do RGS, 2002.

Fonte: Terra
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