Constituição Americana de 1787: crítica de um historiador
O historiador norte-americano Charles A. Beard publicou em 1913 um livro polêmico que se tornou um clássico da historiografia política. O titulo era “An Economic Interpretation of the Constitution of the Uníted States of America” (Uma Interpretação econômica da Constituição dos Estados Unidos da América). Na minuciosa pesquisa que ele realizara demonstrou que por detrás de cada artigo ou parágrafo da Carta Magna dos americanos, aprovada em 1787, tidos como expressão do idealismo político da nova nação, se escondiam interesses materiais muito concretos.
Os interesses ocultos na Constituição
Para Beard, líder da chamada Progressive School, a Escola Progressista dos historiadores norte-americanos, o grande documento dos Pais Fundadores da República aprovado no Congresso da Filadélfia, em 1787, refletiu antes de tudo o mais os interesses de senhores de escravos, dos grandes comerciantes, de especuladores de terras e dos financistas de um modo geral. Para a opinião pública americana, entretanto, as conclusões dele foram um escândalo. Acostumados a ensinar que os ricos são pessoas despojadas de interesses materiais e que costumam em geral a pensar no bem-comum, os conservadores ficaram irados com a heresia de Beard. Lá se encontrava que os constituintes por várias vezes, ao contrário do altruísmo que deles se esperava, legislaram em causa própria para valorizar suas fortunas pessoais e não em favor do povo recém emancipado.
Beard igualmente inovou a pesquisa sobre as origens dos interesses económicos que estavam por detrás da Constituição ao fazer uma acurada leitura não do texto constitucional em si, mas dos jornais e panfletos da época, principalmente do “O Federalista”, órgão ideológico mais expressivo das forças conservadoras que atuaram nos debates constitucionais. Nele se encontram os textos de Alexander Hamilton, que se tornou secretário do Tesouro (a quem Beard considerou “o gênio colossal do sistema’’), James Madison, advogado e político, filho de um grande proprietário de terras e de escravos, e John Jay. Em sua análise, Beard provou como os autores da Constituição estavam basicamente preocupados em encontrar fórmulas que protegessem a propriedade e ao mesmo tempo garantissem “o espirito e a forma do governo popular”.
Harmonizando ricos e não-proprietários
O problema central enfrentado pelos constituintes era harmonizar a seguinte questão: como evitar que a vontade da maioria dos não-proprietários (e portanto a maioria da população) pudesse afetar os interesses da minoria de ricos sem que o problema geral da legitimidade fosse seriamente abalado? A tentativa de responder ao desafio aparentemente insolúvel de equilibrar os interesses dos pobres e dos ricos dentro do mesmo corpo político republicano, formado por estados de peso e tamanho desiguais, é que revelou o engenho dos principais cabeças da constituinte. O enorme tirocínio deles revelou-se em fazer com que os pobres ou não-proprietários, que perfazem a maioria da população, não despojem os ricos e, ao mesmo tempo, se mantivessem fiéis ao processo eleitoral. Para James Madison só há um caminho que era “ dificu1tar a fusão da maioria num número amplo de interesses e equilibrar uns com os outros”. Isto é, estabelecer uma confusão permanente no campo dos pobres e dos não-proprietários, evitando que eles consigam formar uma frente única que ameaçasse o monopólio do poder dos ricos. O mecanismo legal adequado para isso era pela aprovação de uma Constituição da União, sendo que a “opinião pública” seria refinada e ampliada “através de um corpo seleto de cidadãos” ,exigindo-se dos representantes do povo uma série de pré-requisitos (entre os quais serem proprietários), para que deste modo se impeça a eleição de um autêntico líder da plebe.
Tamanho e confusão
A dimensão que a União deveria ter devia-se a outras razões: quanto mais Estados fizerem parte dela maiores serão os interesses e menores as possibilidades de coesão entre eles. Nas palavras do próprio Madison, “Estenda-se o circulo e ele tomará uma maior variedade de partidos e interesses, tornando menos provável que uma maioria encontre motivos comuns para invadir os direitos dos outros cidadãos; e mesmo existindo motivos comuns, será mais difícil para todos os que senteis descobrir sua força e atuar em conjunto uns com os outros”. E de uma maneira mais simplificadora afirmou: “na extensão apropriada da estrutura da União federal, encontramos remédio republicano para os males frequentes do governo republicano". Quer dizer, ao se encontrarem artifícios para agregar mais e mais interesses na formação da União (quanto mais Estados, mais senadores e portanto gente confiável e rica) neutralizam-se os “males’’ da República (a vontade da maioria dos não-proprietários).
Como, porém, evitar a vontade manifesta da maioria? A resposta é aparentemente muito simples. Fazer com que a base mesma do poder – as instituições republicanas - se encontre dispersa não apenas em estruturas distintas (Poder Executivo, Legislativo e Judiciário), mas que igualmente passem por um processo de eleição diferenciada e com ritmos alternados entre si ( as eleições são marcadas em períodos diferentes para o executivo e para o legislativo).
Câmara, Senado e Corte Suprema
Não se podendo evitar o desejo incontrolável da maioria do povo de querer participar e votar, acolhe-se o sufrágio direto sim mas somente para a escolha da Câmara dos Representantes. Já o Senado, instituição conservadora por excelência, seria escolhido por gente de confiança, através do voto qualificado (somente dos proprietários de terras e dos grandes comerciantes e financistas) estabelecido pelas legislaturas locais. A cabeça da República — a Presidência — também estará longe da vontade direta da maioria, visto que será protegida por um Colégio Eleitoral (composto pelos eleitores escolhidos indiretamente nas legislaturas estaduais). Finalmente chegamos ao Poder Judiciário, cujo processo de escolha e função Beard considera como “a mais original contribuição á ciência política feita pelo governo norte-americano”. Os “Pais Fundadores” instituíram uma Corte Suprema de caráter vitalício escolhida pelo Presidente da República conjuntamente com o Senado, com a função de preservar a Constituição, isto é, evitar que a vontade da maioria pudesse de alguma forma, algum dia, vir a furar as barreiras da necessidade de se obter os 2/3 dos votos no Congresso e fazer aprovar uma lei que desgostasse os interesses dos ricos.
A Câmara Suprema da Justiça era naturalmente composta por juizes selecionados a dedo para evitar “burlas á Constituição’. Desta forma estava armado o mais perfeito edifício de arquitetura política dos tempos contemporâneos.
As eleições, ao serem não só marcadas em datas diferenciadas mas de distintas origens e procedimentos, evitam que “ocorra uma renovação total do governo de um só golpe” de tal maneira que “o mau humor do povo” ficaria impedido de fazer estragos por meio das eleições diretas. Evitava-se assim uma “revolução pelo voto” que atingisse substancialmente os interesses dos grandes proprietários. O povo vota mas não consegue alterar um milímetro sequer o poder daqueles que realmente mandam na república. Esta situação foi que levou Alexis de Tocqueville, meio século depois da aprovação da Constituição americana, a comentar: “As instituições democráticas despertam e incentivam a paixão da igualdade sem jamais poder satisfaze-la inteiramente. Essa igualdade completa foge todos os dias das mãos do povo no momento em que acredita apoderar-se dela, e foge... Numa fuga eterna”.