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Cristianismo antigo e a rejeição ao sexo

26 jan 2017 - 12h57
(atualizado às 12h58)
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Um pouco antes de completar o penúltimo livro da suas Confissões, concluído ao redor do ano 400, Santo Agostinho implorou a Deus que se fosse ele o encarregado de escrever o Gênesis, como anteriormente o fora Moisés, desejaria “receber de vós uma tal arte de expressão que, até aqueles que não podem compreender como é que Deus cria, acreditassem nas minhas palavras”. 

'O pecado original' (Michiel Van Coxcie)
'O pecado original' (Michiel Van Coxcie)
Foto: Divulgação

As Confissões de Santo Agostinho

“Não; a felicidade não é um corpo e por isso não se vê com os olhos” - Santo Agostinho, Confissões, 397-400 d.C.

Pois foi inteiramente atendido. Deus foi pródigo com o grande teólogo, mas sovina com os demais escritores cristãos, tornando Agostinho o maior e quase o único grande literato gerado pelo cristianismo nos seus primeiros tempos, até o surgimento de Pascal e do Padre Vieira, treze séculos depois.

Não satisfeito com o dom das letras e com uma espantosa facilidade de comunicação, que o colocou entre os imortais, ele deu início logo depois, provavelmente em 401, à redação de uma leitura própria, muito sua, do real significado do Gênesis – De Genesi ad Litteram – na qual ainda demorou uns quinze anos. O que já havia esboçado nas Confissões tomou então corpo. Fazia tempo que os primeiros evangelistas vinham hostilizando o sexo, mas foi com Santo Agostinho que a questão se tornou dominante, reveladora da sua idéia do homem e da humanidade, a qual o cristianismo, até os nossos dias, teima em não abandonar.

Impressionados pela liberalidade sexual e pela vocação orgiástica da elite romana, majoritariamente não-cristã, os apologistas cristãos daqueles primeiros tempos fizeram questão de manter uma marcada distância em relação aos deuses e aos ritos pagãos. Inspirados pelos solitários “homens do deserto”, eremitas e anacoretas, dedicaram-se a uma política de radical repúdio ao sexo. Amparados nas epístolas paulinas, acentuaram a prática da abstinência carnal, transformando-a num atrativo tão forte para os novos seguidores como deixar-se sacrificar, imitando Cristo, nas arenas romanas.  

Enquanto os mártires davam suas entranhas para as feras devorarem, outros abandonavam as práticas sexuais para sempre: o martírio e a castidade tornaram-se as faces diferentes da mesma moeda.

Havia muito simbolismo por detrás disso, revela o prof. Peter Brown, autor do clássico The Body and Society (Corpo e Sociedade: O homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo). Não se tratava só da busca da perfeição, do “coração simples”, mas de uma nova visão do ser humano, na qual ele somente poderia manter a frescura com que saiu das mãos do Criador, permanecendo puro ou intocado.

A abstinência sexual e a castidade, seguidas da intensa propaganda a favor do ascetismo, tornaram-se uma forma peculiar de protesto. Por elas, os crentes, os primeiros conversos do cristianismo, manifestavam abertamente seu desprezo pela época em que viviam, dominada pela concupiscência, impiedade, libertinagem e crueldade pagã.

O problema que enfrentavam os evangelistas do cristianismo primitivo dava-se com o casamento: como conseguir manter a retórica da abstinência e da rejeição ao sexo se um dos princípios básicos da nova fé era o “crescei e multiplicai-vos”?

Levado a resolver o conflito, Santo Agostinho, o bispo de Hipona, terminou por expor a sua doutrina sobre o casamento, o sexo e a privação carnal. Donde viria, indagou ele, a miséria que nos cerca, esta corrupção, as heresias e a crassa maldade? A única resposta que ele encontrou é que existia dentro da própria sociedade uma mancha inapagável, resultante do pecado original advindo do impulso sexual que atormentava o homem até a morte. Essa era a maldição que acompanhava Adão e Eva e seus descendentes desde a queda do Paraíso.

Para Santo Agostinho, na vida paradisíaca onde o Homem se encontrou primordialmente, não havia tensão entre o impulso e o ato sexual. Foi a partir da danação dos nossos pais bíblicos que se deu a desgraça. Parecia-lhe que a relação sexual e o Paraíso eram tão incompatíveis como o Paraíso e a Morte. A sexualidade era o indicador da queda do homem, do triste declínio da sua anterior situação angelical, fazendo com que ele deslizasse para a natureza física e dessa para a sepultura.

O sexo melancólico

Mesmo que os casais se preocupassem com a gestação dos filhos, deveriam estar conscientes de que estavam cometendo um ato de rebaixamento, necessário mas humilhante, devendo ser feito num clima de intensa melancolia. Coube, pois, a Agostinho ter semeado entre os cristãos uma nódoa de pecado, de consciência culpada, quando faziam sexo ou tinham sentimentos e impulsos prazerosos.

Santo Agostinho ( 354-430)
Santo Agostinho ( 354-430)
Foto: Divulgação

Essa doutrina sexual lançou sobre todos os lares e leitos conjugais uma sombra maligna, de impureza, perversão e vício, que arruinou a vida de incontáveis casais, para os quais o sexo ficou para sempre associado a um “presente do demônio”, um discordium malum, um princípio de discórdia alojado no interior de cada ser humano desde a Queda. Opôs definitivamente a Carne a Deus!

Penso eu que uma das maneiras de se entender subjetivamente esta sua obsessão em denunciar a sexualidade se deve a ter sido ele num certo momento da sua vida um renegado do erotismo. Como todo aquele que abjura, no caso das suas paixões sensuais pregressas, Agostinho votou intenso ódio ao que, no passado, o atraiu, lamentando ter desperdiçado nele tanta energia. Como ele mesmo não negou, deixou-se dominar na sua juventude por uma intensa voluptuosidade, pela lasciva, ao ponto de, em determinado momento, quando pediu a Deus que o fizesse casto, acrescentou... “mas não ainda”!

Sexo e corrupção

E foi mais longe ainda. A presença do impulso sexual apontou-lhe a corrupção da nossa natureza, como se nascêssemos com uma erva daninha que jamais poderia ser removida. Explicava a maldade como resultado desse tumor dissoluto dentro de nós, provocador de uma desordem crônica nas nossas relações, nos perturbando, com suas poluções, mesmo quando nos encontrávamos a sós. Não havia dieta ou jejum que nos salvasse dele, acompanhando-nos até na velhice e no encarquilhamento, como um vestígio do nosso passado libidinoso e pecador.

Foi contra este fatalismo que se mobilizou seu rival Juliano, o bispo de Eclanum, que, depois de 418, se meteu numa ruidosa polêmica porque se indignou com as acusações de Santo Agostinho ao sexo e ao casamento. Não aceitava, explicou ele, que o ato gerador da vida fosse algo demoníaco e menos ainda terem que praticá-lo sob o véu da vergonha e da culpa.

Afinal eram “impulsos dos corpos feitos por Deus”. O prazer, dizia Juliano, era necessário à reprodução, era a força que fundia as sementes masculinas e femininas num amplo calor genitalis, útil para que ocorresse uma conjunção saudável e feliz. Nada poderia haver de sinistro numa relação sexual bem realizada e completa; ao contrário, via-a como “o instrumento de eleição de qualquer casamento.... merecedor de censura apenas em seus excessos”.

Sexo como transgressão

Santo Agostinho, em várias cartas da sua imensa correspondência, tentou amenizar as objeções do seu confrade Juliano, mostrando-se menos radical do que em seus escritos anteriores. Mas sabe-se que para a posteridade, infelizmente, foi essa visão trágica da existência – de sermos os portadores perpétuos do pecado capital – de origem paulina-agostiniana que irá identificar o cristianismo, ficando o sexo desde então – até o surgimento de Freud – visto como uma transgressão, como uma obscenidade... quiçá um ardil satânico para atormentar infinitamente a existência humana.

Bibliografia

Agostinho – As confissões. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1955, 5ª Ed. .

Brown Peter- Corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990

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Fonte: Especial para Terra
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