Euclides da Cunha na Amazônia
No dia 13 de dezembro de 1904, o escritor Euclides da Cunha, recém-nomeado chefe da Comissão do Alto Purus, embarcou no vapor “Alagoas” rumando do Rio de Janeiro para Manaus. Quem o provera com aquele posto fora o Barão de Rio Branco, ministro das relações exteriores do Brasil, visto as altas qualidades do indicado. A expectativa do Barão e do próprio Euclides, além de fixar a fronteira com o Peru, era de que o escritor produzisse uma nova obra-prima, desta vez não sobre o sertão da Bahia, mas sobre a floresta amazônica.
Euclides da Cunha e Rio Branco
“ a partida para o Alto Purus é ainda o meu maior, o meu mais bela e mais arrojado ideal. Estou pronto á primeira voz. Partirei sem temores...nada me demoverá de um tal propósito”
Euclides da Cunha, Carta de Guarujá, 6/7/1904.
O primeiro encontro dos dois, do escritor Euclides da Cunha e do Barão do Rio Branco, deu-se no palacete Westfália, em Petrópolis, em julho de 1904, local para onde o chanceler se retirava em descanso. Quem levou Euclides da Cunha até a presença dele, do Juca Paranhos como ele era conhecido em moço, foi um outro diplomata, Domício da Gama, por igual um intelectual. Apesar da timidez do escritor frente ao Barão, aquela altura um verdadeiro monumento nacional, os dois conversaram por cinco horas. Euclides só se viu liberado às 2 da madrugada.
Ambos estavam no auge da fama: um pelas galas imediatas que a publicação d´ “Os Sertões”, em 1902, lhe trouxera, projetando-o como um dos maiores das letras nacionais; o outro, o chanceler, pela conclusão do Tratado de Petrópolis, arrancado da Bolívia no ano anterior, em 1903, quando o Brasil ficou com o Acre sem precisar dar um tiro sequer.
Um, Euclides, denunciara a guerra do governo brasileiro contra os caboclos da Bahia, o outro, Rio Branco, evitou que os caboclos do Acre entrassem em guerra contra o governo de la Paz.
Os unia a paixão pela História e pelo Brasil. De resto , eram diferentes em tudo. O Barão descendia do patriciado luso-brasileiro, era filho do Visconde de Rio Branco, homem habituado aos viveres da Europa. Um monarquista que se colocara a serviço da república. Euclides, ao contrário, era “ um bugre”, como ele mesmo dizia. Um indiozinho, um cariri descendente de um avô traficante na Bahia arruinado pela Lei Eusébio de Queirós, de 1850 ( que proibira a importação de escravos). Desde quando jovem aluno da Escola Militar era um republicano, mas, naquelas alturas, passados quinze anos da Proclamação de Deodoro, se decepcionara com o Regime de 1889. Ao contrário do Barão, nunca fez questão de ir conhecer Paris. Queria, isto sim, era desbravar “as paisagens bárbaras”, meter a cara nos assombros do Brasil ainda pouco conhecido.
Atrás do Paraíso Perdido
O Barão, sempre atento aos talentos, o satisfez. Em 9 de agosto de 1904, nomeou-o chefe da Comissão do Alto Purus para ir fixar as longínquas fronteiras com o Peru. O chanceler esperava dele uma outra maravilha literária resultante do contanto de Euclides com as selvas. O próprio escritor estava seduzido em embrenhar-se num outro livro sensacional cujo título seria “Um Paraíso Perdido”, que nunca concluiu.
A Amazônia frustou o escritor. Impressionante sim, ciclópica. Muita água, imensa, barrenta, perigosa, muito mato, muito cipó e muito bicho. Uma “ imensidão deprimida”. De dia silenciosa, de noite um carnaval. A fauna, aos uivos, aos gritos e aos pios, fazia a festa a partir do por do sol. Sentiu-se lá um Adão no jardim paleozóico. Tudo lhe era estranho, fantástico, e muito chato.
Para onde se olhava via-se a desolação, tudo raso e plano. O rio, sempre desbordando, desmoralizava qualquer trabalho sério. A margem de hoje, soçobrava nas correntes do amanhã. Lá, as matas caminham em meio a um tumulto permanente produzido pelas monstruosas leis fisiológicas da região. Parecia haver, lembrou Euclides, pairando sobre os altos da floresta, um artista sobrenatural que pintava uma paisagem num dia e borrava tudo no outro. O homem era um intruso lá. Os moradores, todos pobres, pendurados nas palafitas, afligidos pelas enxurradas, só sobreviviam pelo nomadismo, por uma vida cigana em meio à floresta.
Na Amazônia, excetuando-se a concentração enérgica dos seringueiros bem suceddidos em Manaus, a civilização era impossível. De resto, o caucheiro (“é o homúnculo da civilização”) era vilmente explorado pelos coronéis da barranca. Era um reino sem história. “à margem da História”, como designaram a primeira parte da coletânea de artigos publicada em 1909, depois da morte dele.
Uma guerra absurda, burlesca
Chegado a Manaus em 30 de dezembro de 1904, depois de uma viagem de 17 dias, rumou logo que possível para a sua missão, embarcando em 7 de abril de 1905. Acompanhou-o na flotilha, composta por um batelão e duas lanchas, um capitão peruano, D.Pedro Buenaño. Já navegando no Acre, até por um naufrágio ele passou no baixo Purus. De onde estava e quando podia, informava o Barão. A Amazônia era uma esfinge. Ninguém conseguia abarcá-la. Mal e mal captavam-se facções ínfimas do todo. A amplidão é tal que ofusca o entendimento, acanha a razão, afugenta até mesmo uma “ inteligência heróica”.
Ele que talvez se imaginasse um “ dr. Pasteur das letras” ( a expressão é de Leandro Tocantins), recuou frente aquele laboratório infernal de uma natureza doida, em permanente destravo. Notou, pelos registros de outros naturalistas que por ela percorreram, fosse no século 17, 18 ou 19, que ela era infensa à evolução. Ainda que revolvida pelas enchentes do grande rio, a Amazônia era sempre a mesma.
Antes de findar a expedição que durou um ano ( dezembro de 1904 a dezembro de 1905 ), Euclides, em carta a Domício da Gama, imaginou o ridículo de uma guerra entre o Brasil e o Peru. Seria um confronto burlesco de cabras-cegas, assegurou. Dois países enormes e sem gente a se enfrentarem pela posse de umas selvas longínquas, despovoadas. Tamanha era a vastidão das coisas por lá, pelo Inferno Verde ( titulo do livro de Alberto Rangel, seu amigo, que ele prefaciou, em 1907), que os dois exércitos não se encontrariam. Algo como se dois duelistas, um no alto do Pão de Açúcar e outro no Corcovado, tentassem terçar espadas em meio a um abismo vazio.
Bendita esta viagem de Euclides de cem anos atrás. Ainda que a Amazônia continue rendendo muito pouco, a nossa ensaística enriqueceu-se com as observações dele, ao ponto de, entre tantos outros que escreveram sobre aquela “ Terra sem História”, ninguém até hoje conseguiu deixar, em prosa, um registro superior ao de Euclides.
Referencias:
Euclides da Cunha - A Margem da História, in Obras Completas, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1995, v. I
Leandro Tocantins - Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido, Rio de Janeiro, Record Editora, 1968.
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