I Guerra Mundial
1914
O Suicídio da Europa
Até agosto de 1914, o continente europeu era um lugar invejado no mundo inteiro. Países como a Grã-Bretanha, a França, o Império Alemão e o Reino da Itália concentravam o maior número de invenções e de descobertas feitas até hoje, a maioria delas nos laboratórios onde trabalhavam a maior parte dos cientistas existentes no mundo daquele época, ao tempo em que celebravam a excelência das suas artes e o avanço tecnológico e civilizatório que atingiram. Repentinamente, uma crise na região dos Bálcãs, envolvendo a pequena Sérvia e o Império Austríaco, jogou a Europa inteira nos braços da morte. Declarada a guerra, que logo chamou-se a Grande Guerra, milhões de jovens marcharam para o desastre, como se fizessem parte de um mortífero ritual de suicídio coletivo, sem que ninguém pudesse mais detê-los. Os anônimos (tela de Albin Egger-Linz, 1916).
A contabilidade funesta
"Será razoável supormos que toda a civilização elevada desenvolve tensões implosivas e movimentos de autodestruição? ....Será a fenomenologia do tédio e do anseio pela dissolução violenta uma constante na história das formas sociais e intelectuais a partir do momento em que ultrapassam um certo limiar de complexidade?""
George Steiner - No castelo do barba azul, 1971
"Armistício! Armistício!" A noticia varou o mundo. Os telégrafos enlouqueceram. O marechal Ludendorff, o supremo comandante da Alemanha Imperial, pedira um armistício aos aliados. A Grande Guerra chegara ao término. Em instantes as ruas e praças de Nova Iorque, Paris e Londres, encheram-se com as multidões exultantes com o fim da matança. Quatros anos antes, em 1914, as mesmas multidões atiçaram com clarins marciais, gritos patrióticos e ramadas de flores, os soldados à partir para o fronte. Naquele momento, em novembro de 1918, quando se anunciou que o mundo voltava à paz - contabilizando 8.5 milhões de mortos e um incalculável número de mutilados e feridos - , celebravam a sobrevivência.
Perplexidade
Para os historiadores em geral os do futuro certamente causará assombro a arrogante cegueira demonstrada pelas elites européias, seus estadistas, seus nobres, seus políticos, seus generais e seus diplomatas e empresários, no empenho que tiveram para alcançar a sua autodestruição. Até o malfadado ano de 1914, era inquestionável o domínio europeu sobre o restante do mundo. Na Ásia, na África, na América Latina, na Austrália ou na Polinésia, tudo girava em função das necessidades e lucros dos interesses financeiros e estratégicos sediados no Velho Continente. Nenhuma ponte era erguida, nem um poste era instalado, nem estrada-de-ferro era estendida, nem fábrica inaugurada, que não tivesse nelas interesse de capitais europeus. E, em apenas quatro anos de morticínio, os estadistas europeus conseguiram desbarataram quase tudo. A favor do Império Romano pode-se ainda dizer que a sua dissolução pelo menos deu-se por uma involuntária maré bárbara que vinda de fora, inexorável, transbordou o Danúbio e o Reno, levou tudo de roldão. Mas qual a justificativa deles?
Previsões sombrias
É certo que Marx e, depois dele, Nietzsche, por motivações ideológicas diversas, previam catástrofes para os anos vindouros, épocas onde o "proletariado" ou a "besta-loura" agiriam como o dissolvente "bárbaro interno". E, tal como os dois pensadores, inúmeros outros artistas e poetas espelharam sentimentos incrivelmente destrutivos e ruinosos sobre as possibilidades futuras do Velho Mundo. Ninguém, porém, imaginou que atingissem as dimensões trágicas das batalhas de Verdum (714 mil baixas), de Chemin de Dames, do Somme, de Ypres, de Tannenberg, de Caporetto ou de Galípoli. Somente nas duas primeiras, o exército francês perdeu mais gente do que Napoleão em vinte anos de campanhas! Quase toda a riqueza acumulada em séculos de exploração do globo esvaiu-se num piscar de olhos.
Freud, em Viena, chocado com o entusiasmo que a guerra provocara nos austríacos forçou-se a rever suas teorias da civilização. Percebeu, estarrecido, que por de trás do mais sisudo e empertigado europeu, batia o tantã de um selvagem. A cultura deles pareceu-lhe um falso verniz, bastando arranhá-lo para que a selvageria viesse fosse exposta à vista.
O horror nas trincheiras
O pior ainda estava para surgir. Passada a febre inicial da euforia patrioteira, os soldados foram convencidos a continuar lutando por quatro anos seguidos, enfiados em labirintos de lama, nauseabundos e tifosos, em razão dos generais e dos políticos lhes prometerem que aquela seria a "última das guerras". No entanto, mal as noticias da capitulação alemã, assinada em Compiège em 11 de novembro de 1918, se espalharam, um surdo furor vingativo instalou-se no espirito de muitos dos sobreviventes, do lado dos vitoriosos ou dos derrotados. Entre eles, no estafeta do regimento List, Adolf Hitler que maldizia estar acamado, meio cego, no hospital militar de Pasewal recuperando-se de um envenenamento por gás: no futuro, disse ele, "seremos desumanos, se for preciso!".
O enigma continua
A quem afinal pode-se responsabilizar pelo suicídio daquela civilização? Lenin e outros socialistas apontaram os imperialistas, os capitalistas, os oligopolistas, ou os militaristas, e até mesmo, como fizeram os anti-semitas, os judeus. George Steiner , o grande crítico, percebeu a grande tragédia resultar de uma sensação denunciada anteriormente por Baudelaire: o tédio! Desde o derrota de Napoleão em 1815, os europeus teriam mergulhado numa perigosa mistura de tédio - o "gross langeweile" de Shopenhauer; " l'ennui atroce" de Flaubert; o "spleen" de Baudelaire - com uma paixão nostálgica pela heroicidade, de volúpia pelo desastre, que os conduziu à morte na paisagem lunar de Verdum e de tantos outros campos de guerra.
Seja qual for, todas elas são respostas parciais com marcado compromisso ideológico que pouco satisfazem. Continuará sendo um dos enigmas a desafiar os séculos vindouros porque os Europeus, continente mais civilizado do planeta, entraram em guerra em 1914 e não souberam mais pará-la?
1914: Atentado e Morte em Sarajevo
No dia 28 de junho de 1914, no aprazível verão de Sarajevo, capital da província austríaca da Bósnia-Herzegovina, na região dos Bálcãs, ocorreu um atentado que mudou o destino de milhões de europeus e de boa parte do mundo. O arquiduque Francisco Ferdinando e sua esposa, Sofia Chotek, foram assassinados a tiros por um jovem de origem sérvia, chamado Gavrilov Princip. O terrorista com aqueles disparos demonstrava o repúdio do seu grupo étnico à presença austríaca, num ato que tomou dimensões catastróficas.
Pelas Ruas de Sarajevo
O enorme carro oficial que conduzia Francisco Ferdinando e sua esposa pelas ruas de Sarajevo, naquela manhã de sol do verão balcânico, era antes de tudo uma temeridade. Andava com a capota arriada, e o casal, sob o ponto de vista da segurança, estava completamente exposto a qualquer tipo de atentado, fosse a pistola ou a bomba. Cabrinovic, um dos sete terroristas sérvios-bósnio que estavam em meio à multidão que se postava pelas calçadas, assim que viu o cortejo de seis automóveis passar, lançou o petardo diretamente sobre o que conduzia o arquiduque e sua esposa. Neste nesse primeiro momento do atentado, que desdobrou-se em dois atos ao longo daquele dia fatídico, graças ao motorista ter acelerado a viatura, a explosão deu-se embaixo das rodas de um outro automóvel que vinha atrás, ferindo dois membros da comitiva de Sua Alteza. O arquiduque Ferdinando, furioso com o desleixo e a negligência do pessoal local que lhe devia dar proteção, assim que completou a visita ao prefeito, resolveu novamente se expor. Cismou em fazer uma visita aos feridos no atentado da manhã, recolhidos ao hospital Sarajevo.
Os tiros
"Sopherl! Sopherl! Sterbe nicht! Bleibe am Leben für unsere Kinder!"
(Sofia, Sofia! Não morra! Fique viva para nossos filhos!)
Arquiduque Ferdinando para sua mulher Sofia
Então ocorreu o fado. À tarde, o motorista, não sabendo exatamente onde era o endereço, enviesou-se por uma rua errada. Ao ser advertido pelo governador Potiorek, o hospedeiro do ilustre casal, tratou de dar uma ré, indo parar bem em frente ao café Shiller, onde se encontrava um dos outros terroristas. O jovem Gavrilov Princip nem pôde acreditar quando, como um caçador surpreendido por sua presa, viu suas vítimas a poucos passos dele. Rapidamente adiantou-se para o veículo e de pouca distância disparou diretamente sobre o casal visitante. Encerrava assim o segundo ato do atentado de Sarajevo. Foi o tiro que levou o Mundo à guerra.
O arquiduque foi ferido no pescoço, enquanto sua mulher teve o abdome perfurado. Ele ainda murmurou-lhe algo ante de morrer, mas ela não durou muito mais. Ao serem levados até o palácio governamental, ambos lá chegaram mortos.
Os Motivos da Visita
A visita do herdeiro do trono austro-húngaro à cidade de Sarajevo antes de tudo foi uma operação para demonstrar força e presença naquela parte do império. A Bósnia-Herzegovina, uma pequena região dos Bálcãs, havia sido anexada ao império Habsburgo apenas há seis anos antes, em 1908, quando a Áustria-Hungria aproveitou-se da grave crise que afligia o império otomano (potência nos Bálcãs desde o século XVI), provocada pela ascensão ao poder dos "Jovens Turcos". Com tal medida, o império Habsburgo queria pôr uma pedra definitiva sobre a questão balcânica, afirmando a presença permanente dos seus interesses naquela eternamente conturbada região da Europa. O governador Oskar Potiorek convidara Sua Alteza para que, a título de supervisor dos exércitos imperiais, passasse em revista as tropas e confraternizasse com a população bósnia. Porém tudo se precipitou e o atentado foi o sinal para que a Europa inteira, em questão de semanas, entrasse na mais mortífera das guerras.
A Mão Negra
Desde que soube que a visita do arquiduque estava programada para os finais de junho de 1914, o coronel Dragutin Dimitrijevic, chefe do serviço de segurança do vizinho Reino da Sérvia imaginou um ato espetacular de repúdio a presença do herdeiro. Os sérvios nunca aceitaram a presença dos austríacos nas terras da Bósnia, não só porque 1/3 da população daquela província eram de sérvios, visto que impedia o Reino da Sérvia de chegar ao Mar Adriático. Por abrigar a idéia da formação futura de uma Grande Sérvia, da qual a Bósnia faria parte, a monarquia sérvia colidia abertamente com o império austro-húngaro.
O coronel Dimitrijevic - cujo codinome era Apis - planejou então um atentado. Para agir secretamente em função dos interesses nacionalistas sérvios, ele apoiara, com verba estatal, uma organização denominada Ujedinjenje ili Smrt (União ou Morte), cujo braço armado era o grupo terrorista Crna Ruka, a ‘Mão Negra’. Um mês antes da chegada do príncipe, três dos seus integrantes atravessaram a fronteira da Sérvia em direção a Sarajevo: os jovens Gavrilov Princip, Nedjelko Cabrinovic e Trifko Grabez.
Um Bando de Amadores
Ao chegarem à cidade, os terroristas da Mão Negra arregimentaram mais quatro outros, entre eles um tal de Cubrilovic. A idade deles ia dos 17 aos 27 anos, sendo todos eles amadores e padeciam de tuberculose. Doença fatal na época. Voluntariamente se ofereciam para imolar-se pela pátria sérvia. Os sete postaram-se ao longo da avenida Appel, que margeava o rio Miljacka, que cortava Sarajevo, a espera do momento certo para jogar explosivos ou simplesmente fazer fogo sobre o arquiduque. Quanto a hora chegou, eram 10:10 da manhã, apenas Cabrinovic lançou a sua bomba. Em seguida, como o combinado, ele tomou uma dose de cianeto e jogou-se no rio. Deu tudo errado. A bomba, esquivada do alvo, só causou estragos menores, a poção do veneno que ele ingerira estava vencida, e, para culminar, o lugar em que ele saltara na água era raso, sendo facilmente capturado pela multidão e entregue à polícia. Somente à tarde, e por puro acaso, o atentado se consumou, matando o casal.
A Esquina do Mundo
O terrível episódio teve reflexos imediatos e implicações bélicas devido à região balcânica ser uma das esquinas do mundo. Ali, naquela pequena área da Europa, meio-caminho para a Ásia Menor, conflituavam-se três grandes impérios e três poderosas religiões.
1 - no sul dos Bálcãs, na Macedônia, na Albânia, no Kosovo e na Bósnia (até 1878), havia desde o século XVI a presença do império otomano, de fé muçulmana (que começara a recuar depois das guerras balcânicas de 1913).
2- ao leste, posando como protetor dos irmãos sérvios e búlgaros, havia os interesses do império russo, de confissão cristã ortodoxa, desejoso de poder algum dia pôr a sua esquadra no mar Adriático.
3 - ao norte era o império austro-húngaro, católico, quem ditava as regras nas suas duas províncias balcânicas, a da Eslovênia e a da Croácia (e na Bósnia depois de 1878). Era fatal, pois, que qualquer envolvimento mais grave de um daqueles três impérios com um dos seus vizinhos conduzisse os demais à guerra.
O Ultimato e suas Implicações
O governo austríaco havia sido uns vinte dias antes discretamente avisado pelo embaixador da Sérvia (em conflito com o plano do chefe do serviço secreto), de que um atentado estava sendo tramado contra a visita de Sua Alteza. Porém nenhuma providência maior foi tomada pelos serviços de segurança. Quando a tragédia se deu, as coisas se precipitaram. A chancelaria austríaca de imediato enviou um ultimato ao Reino da Sérvia, responsabilizando-o pela morte do herdeiro do trono imperial e da sua esposa. Na prática era uma declaração de guerra. Quando o czar Nicolau II tomou conhecimento do ultimato, resolveu dar proteção aos sérvios, ordenando a mobilização geral dos exércitos russos. O imenso maquinismo de guerra foi então acionado e nada mais poderia detê-lo. Em agosto de 1914 praticamente toda a Europa, do Atlântico aos Urais, estava em guerra.
Os Tratados e a Guerra
Por uma série de tratados assinados pelas potências européias (Entente Cordiale, entre a França e a Grã-Bretanha; Tríplice Entente, entre a França, a Grã-Bretanha e a Rússia; Tríplice Aliança, entre o império alemão, o austro-húngaro e o reino da Itália), quando uma só delas entrasse em guerra, fatalmente arrastaria as demais para a voragem da batalha. E assim aconteceu. Como que impulsionado por um incontrolável efeito multiplicador, o brutal assassinato do casal de arquiduques ocorrido em 1914, ao longo dos quatro anos seguintes, gerou a morte e ferimentos graves em quase oito milhões de europeus.
Gás! Alarma! Aí vem o gás!
Com o advento da poderosa indústria química no século 19, foi inevitável que a Guerra de 1914-18 usasse o gás venenoso como uma arma de combate. Depois de duas experiências de poucos resultados, feitas no fronte ocidental ainda em 1915, o exército alemão, seguido dos franceses e ingleses, fizeram largo uso do gás de cloro e de mostarda a partir de 1916. Assim, os soldados conheceram mais um abominável instrumento de morte. O pavor dos atingidos foi total. Desde então, nada provocou no homem moderno tamanha fobia do que vir a morrer inalando gás venenoso.
O gás no fronte de batalha
Registra-se o dia 3 de janeiro de 1915 como aquele em que pela primeira vez os alemães lançaram cartuchos de gás venenoso sobre as trincheiras inimigas, operação, diga-se, inutilizada pelas baixas temperaturas. Mas logo que o tempo melhorou, em abril de 1915, a situação foi outra. Nos dias seguintes ao 25, na região de Langemarck, perto de Ypres, uma densa névoa verde-cinza, típica do gás de cloro, expelida de 520 cilindros, começou a soprar em direção às linhas de um regimento franco-argelino que sustentava a posição. Quando eles viram aquele vapor tóxico vindo na direção deles, envolvendo tudo, adentrando por todo os lados, provocando-lhes uma violenta náusea, foi um salve-se quem puder. O pânico fez com que os soldados, deixando as armas e as mochilas, corressem como loucos para as linhas da retaguarda em busca da salvação. Tiveram que improvisar algumas máscaras na hora mas sem grandes resultados. Nas trincheiras e nos campos, jogados ao léu, encolhidos, espumando, ficaram os que não conseguiram escapar. Psicologicamente foi um sucesso. O inimigo desertara em massa. A notícia logo espalhou-se de boca em boca pelos corredores das trincheiras e dos valos onde milhares de homens se encontravam - um diabo em forma de nuvem fétida estava solto nos campos da Europa.
Banalização do uso do gás
Em setembro daquele mesmo ano de 1915, os ingleses deram a sua resposta ao ataque de gás em Ypres, jogando sobre os alemães entrincheirados perto de Loos uma substantiva quantidade de gás de cloro. Se nos começos desse tipo de recorrência ao gás mortífero era costume utilizar-se grandes cilindros para despejar veneno ao sabor da direção em que o vento soprava, em seguida avançou-se para o uso de um cartucho próprio, o The Projetor, capaz de lançar cápsulas de gás venenoso a enorme distância
Foi a partir do ano de 1916, especialmente durante a longa batalha de Verdun, travada entre alemães e franceses, que o gás entrou em cena de vez. E desta feita foi a estréia de novo gás muito mais tenebroso em seus efeitos do que o cloro - o chamado gás de mostarda (dichlorethylsulphide). De cor amarelada forte, ele mostrou-se capaz de devastar as linhas adversárias mesmo em meio às tropas equipadas com máscaras antigases. Em contato direto com qualquer parte da pele da vítima, de imediato, ele levantava bolhas amareladas, atacando em seguida os olhos e as vias respiratórias. Além disso, tinha a capacidade de permanecer fazendo efeito durante um tempo bem superior do que os outros, como o gás lacrimogêneo (lachrymator), não-mortal, e o de cloro, seja ele fosfogênico ou difosgênico.
Deste então, a paisagem da guerra das trincheiras foi toldada pela presença sistemática dos vapores do gás de mostarda que, utilizado por ambos os lados, passou a ser o manto sombrio e enfumaçado que cobria os soldados em seus últimos momentos de vida. Tamanha foi sua presença nas batalhas que no ano final da guerra, em 1918, ¼ dos obuses lançados pela artilharia eram de gás venenoso.
O testemunho de um poeta
Vários escritores testemunharam ou eles mesmos passaram pela terrível experiência do envenenamento por gás durante a Grande Guerra de 1914-18. Uma das descrições mais impressionantes de um ataque por gás contra uma patrulha foi deixada em versos pelo poeta britânico Wilfred Owen, que antes de ser abatido pela metralha alemã uma semana ante do final da guerra, no dia 4 de novembro de 1918 deixou seu testemunho no célebre poema Dulce et decorum est (1917):
Totalmente encurvados como se fossem velhos mendigos em fila, joelhos dobrados, tossindo como bruxas, andávamos sobre a maldita lama/ Até o momento em que os insistentes sinalizadores nos fizessem voltar/ Então, na distância que nos restava percorrer, começamos a nos arrastar/
Alguns marchavam tontos de sono. Muitos deles haviam perdido suas botas, mancando, com os sapatos ensangüentados/ Todos estavam estropiados, todos cegos: Bêbados de fadiga, surdos mesmo aos alarmes de que um cartucho de gás havia estourado ali perto.
Gás!Gás! Rápido rapazes! Num êxtase mal ajeitado, todos tentam colocar a máscara ainda a tempo. Mas alguém continuava gritando alto e tropeçando, como um homem em meio ao fogo ou a lama./ Confuso, como se estive metido numa densa e enevoada vidraça de luz verde, como se estivesse num mar verde, eu o vi se afogando/
Em todo os sonhos que tive depois dessa desamparada cena, ele aparecia precipitando-se sobre mim, derretendo-se, sufocado, afogado/
Não sei se com esses enfumaçados sonhos você também conseguirá ter paz
Atrás do vagão em que o jogamos, atentei para o branco dos olhos dele convulsionando-se no seu rosto/ A sua cara de enforcado, como se fosse um diabo vomitado pelo pecado/ Você podia escutar, a cada solavanco, o sangue saindo, gorgulhante, dos seus pulmões corrompidos/
Obsceno como um câncer, amargo como fel. Quão vil e incuravelmente inflamado em línguas inocentes/ Meu amigo você não vai querer este tipo de prazer elevado/ Tão ardentemente infantil em querer alcançar tal glória desesperada/
É uma velha mentira: Dulce et decorum este Pro patria mori (Quão doce e honrado é morrer pela pátria!)
Uma tela impressionante
Mal terminado o conflito, assinado o Armistício em 11 de novembro de 1918, o Comitê do Memorial da Guerra de Londres encomendou uma tela ao pintor norte-americano John Singer Sargent para vir ilustrar o Hall of Remembrance, o Salão da Recordação, que iriam construir para homenagear os milhares do mortos na Grande Guerra. Sargent, que estivera no fronte, resolveu retornar às linhas abandonadas da França, em 1919, em busca de uma inspiração direta. Então lembrou-se das filas dos soldados atingidos pelo gás venenoso que o impressionaram muito. A partir daí, recorrendo às imagens dos frisos greco-romanos das procissões sagradas, fez uma série de estudos para depois juntá-los num painel, em cor pastel, da desolação humana. O resultado do painel de Sargent foi impressionante, parecendo-se uma atualização da Parábola dos Cegos, tela de Pieter Brueghel, pintada no século 16, um dos maiores flagrantes do desamparo que a cegueira provoca. É significativo de que a cena de sofrimento que mais impressionou aquela geração de combatentes não tenha sido o padecimento e as doenças nas trincheiras, nem a morte estraçalhada pelos obuses da artilharia, nem os ventres abertos pela metralha ou pela baioneta, nem os corpos horrivelmente carbonizados pelo lança-chamas, mas sim a consternação provocada em todos pelos gaseados.
Comentário de uma enfermeira
Os horrores dos ferimentos provocados por um ataque por gás mereceram também o registro da enfermeira Vera Brittain, que, logo em seguida ao término da guerra, deixou também o seu testemunho no A testament of youth, de 1918, de onde retirou-se o seguinte comentário:
"Eu gostaria que uma dessas pessoas que dizem querer levar a guerra até suas conseqüências finais que vissem os soldados envenenados pelo gás de mostarda. Grandes bolhas cor de mostarda, cegos, todos eles agarrando-se uns aos outros, lutando desesperadamente para respirar, com vozes que são um sussurro, dizendo que a garganta deles está se fechando e que logo eles vão sufocar-se."
Tipos de gases
O gás cloro (Cl2) foi a primeira delas. Desde então, muitas outras substâncias já o substituíram e suplantaram. Podemos classificar as armas químicas de acordo com o modo como atuam. Nesse critério, os principais tipos são os seguintes:
Agentes asfixiantes: Atuam nos pulmões, causando-lhes sérias lesões e dificultando a respiração. Podem provocar a morte por asfixia.
Exemplos: Cl2 (gás cloro) COC2 (fosfogênico) Cl3C-NO2 (cloropicrina).
Agentes que atuam no sangue: Também matam por asfixia, mas por meio de outro mecanismo. São substâncias que se combinam com a hemoglobina, tornando-a incapaz de transportar o O2 para as células do organismo.
Exemplos: HCN (gás cianídrico) ClCN (cloreto de cianogênio) BrCN (brometo de cianogênio), usados nas câmaras de gás e nas sentenças de morte ainda hoje nos EUA.
Agentes causadores de feridas: Provocam irritações nos olhos e na pele. Dependendo da quantidade, causam feridas, náuseas e vômitos. A irritação dos pulmões pode matar por asfixia.
Exemplos: Cl-CH2CH2-S-CH2CH2-Cl (gás mostarda) Cl-CH2CH2-N(CH3)-CH2CH2-Cl (mostarda de nitrogênio) ClCLCHAsCl2 (Lewisita).
Agentes lacrimogêneos: Provocam uma forte irritação nos olhos.
Exemplos: H3CCOCH2Cl (cloro-acetona) H3CCOCH2Br (bromo-acetona) H2CCH-COH (acroleína).
Agentes nervosos: Das armas químicas são as mais perigosas. Normalmente não têm cor nem cheiro. Atuam sobre o sistema nervoso, bloqueando a transmissão dos impulsos nervosos de uma célula (neurônio) para outra. Matam em minutos por parada cardíaca ou respiratória.
Exemplos: (H3C)2NPO(CN)OCH2CH2 (tabun) H3CPOFOCHCH3CH3 (Sarin) H3POFOCHCH3CCH3CH3CH3 (agente VX).
Fonte: dados fornecidos pela profª Margot Andras (Mestre-Unicamp)
Baixas provocadas pelo gás na Grande Guerra (1915-18)
Fonte: Gas Death in The First World War
Nota: ainda que o percentual de mortos seja pequeno em relação aos que foram atingidos pelo efeito do gás venenoso (7% do total), é de se observar que a intenção do seu uso era mais provocar o pavor e o pânico coletivo das tropas do que realizar grandes baixas. O gás foi usado para dissolver as linhas de frente da batalha, para provocar um corre-corre geral.
O inferno de Verdun
Durante 10 meses, ao redor de 300 dias, do 21 de fevereiro ao 19 de dezembro de 1916, alemães e franceses protagonizaram na Primeira Guerra Mundial aquela que foi considerada a mais longa, violenta e mortífera, de todas as batalhas que a história militar registrou. Travada ao redor da antiga cidadela de Verdun, em território francês, ela passou a ser, para aqueles que dela participaram, sinônimo de inferno, o Inferno de Verdun. Uma hecatombe que devorou durante o ano de 1916 a vida e a saúde de mais de 700 mil soldados. Cifra de baixas impressionante, tratando-se de um só batalha, mais do que em qualquer outro momento da história.
Bombas e baionetas no primeiro assalto
As 17:15 horas do dia 21 de fevereiro de 1916, um dia frio, cinzento e chuvoso do inverno europeu, no momento em que as mil duzentas e vinte bocas de canhões da artilharia alemã cessaram de disparar, após terem varrido as trincheiras e os fortins franceses com milhares de projéteis, calculou-se que 40 explosões por minuto, foi a vez da infantaria se mexer. Esgueirando-se de dentro das stollen, as galerias subterrâneas que cercavam pelo leste a região de Verdun, milhares de soldados alemães, usando ainda seus capacetes pontiagudos e seus uniformes acinzentados, empunhando um fuzil com baioneta calada, começaram a correr em direção às linhas francesas. A violência do ataque pegou os oficiais franceses de surpresa. Apesar de alguns deles terem alertado o Alto Comando, chefiado pelo generalíssimo Joffre, de que avolumavam-se os sinais de uma ofensiva alemã para qualquer hora, nenhuma providência fora tomada. Assim não foi de espantar que os alemães, nos primeiros dias da batalha, sob o comando direto do general von Knobelsdorf, sob os auspício do Krönprinz, o príncipe herdeiro do Império Alemão, conseguiram conquistar uma boa fatia do território inimigo, ocupando o Bois d´Haumont, o Bois de Caures e o Bois d´Herbebois. A maior vitória, porém, deu-se com ocupação do Forte Douaumont, considerado uma peça chave no sistema defensivo da cidadela de Verdun. Notícia cujo anúncio provocou comoção patriótica na Alemanha inteira, com as igrejas a badalar seus sinos, exultantes, enquanto que sobre a França tomou-se por um sentimento de tristeza e dor. Sensação que inspirou ao poeta Charles Laquièze a escrever os versos; Douaumont! Douaumont! Ce n´est le nom d`un village, c´est el cri de détresse de la Douleur immense (Douaumont! Douaumont! Não é o nome de um aldeia, é o grito angustiado de uma dor imensa).
A cidadela de Verdun
As origens de Verdun perdem-se no tempo. Era uma aldeia celta, bem antes da chegada do romanos que a chamavam de Verdunum. Para os franceses e alemães aquele local estava impregnado de história, e isso pela simples razão da França como a Alemanha terem, por assim dizer, nascido do tratado que lá foi acertado, no ano de 843, entre os três netos de Carlos Magno. Naquela ocasião, 1073 anos antes da terrível batalha, os descendentes do grande imperador ( Carlos o calvo, Lotário e Luís o Germânico), concordaram em dividir a herança e fixar as fronteiras entre eles. De um lado do rio Reno, na sua margem esquerda, ficaram os franceses, e na outra, na da direita, os alemães. Sob o ponto de vista cultural e étnico, separou os latinos dos povos germanos. Partilha que muito iria infelicitar os dois povos e, por conseguinte, a Europa inteira. A cidadela, mais recentemente, começara a ser fortificada com uma rede de fortes, fortins e casamatas, a partir da derrota francesa de 1870, quando os prussianos capturaram Napoleão III em Sedan, em setembro daquele ano. Impressionados com a fragilidade da fronteira francesa, tendo cedido a região da Alsácia-Lorena ao Império Alemão em 1871, as autoridades militares de Paris, a partir de 1875, reforçaram Verdun ao máximo. Para tanto construíram duas linhas de fortes: o cinturão externo era formado por 21 fortes ( entre eles o de Douaumont, Belrupt, Hautainville, Saint Michel, Souville e Vaux), enquanto 20 outros fortins ( Dérmé, Charny, Bezonvaux, Froideterre) faziam a linha interna, completadas por mais 40 casamatas e outras tantas colinas reforçadas ( a 304 e o monte Mort-Homme). Vista de cima, numa foto aérea, a cidadela de Verdum parecia um porco-espinho.
O general Falnkenhayn tem um plano
O fronte ocidental, depois de um ano de sangrento combate entre os invasores alemães e as tropas francesas e suas aliadas inglesas, iniciado com a ofensiva germânica em agosto de 1914, se estabilizara. O número das baixas nas batalhas do Marne e de Ypres fora tão impressionante que os generais decidiram esconder seus soldos dentro de trincheiras para poderem ter algum expectativa de vitória. Impulsionada inicialmente pelo movimento, a guerra logo tornou-se estática, convertendo-se numa dolorosa batalha de posições: numa guerra de trincheiras. Para fugir daquela rotina, não querendo tomar territórios mas abater o máximo de inimigos, provocando um terrível sangramento no exército francês, o generalíssimo alemão Erich von Falkenhayn, escolheu Verdun como palco de uma armadilha. Ele tinha certeza de que se simulasse um pesado ataque sobre aquela antiga cidadela, os franceses, justo pelo simbolismo daqueles veneráveis muros, marchariam às pressas para defendê-los. Para destroçá-los dentro de Verdun, Falkenhayn preparou-lhes uma colossal barragem de fogo. Além dos 1.220 canhões que cuidadosamente concentrou nas proximidades, exigiu a remessa por trem de 13 supercanhões, os Grandes Bertha ( Grosse Bertha), monstros pesando 43 toneladas, com calibre 420 mm, em forma de garrafa de cerveja, capazes de lançar gigantescos obuses a enormes distâncias, na expectativa de desmantelar os fortes franceses com um par de tiros, como acontecera um ano antes em Liège com os dos belgas. O plano era simples na sua concepção: atrair as tropas francesas para Verdum e dizimá-las com incessantes bombardeios de artilharia pesada. Com os seus aliados esmagados por aquele dilúvio de granadas, os ingleses, inferiorizados em número, desistiriam de lutar contra os alemães retirando-se de volta para Grã-Bretanha.
O inferno de Verdun - Eles não passarão!
Von Falkenhayn acertou na previsão. A noticia de que Verdun estava ameaçada tocou os brios da França. O Alto Comando não tardou em enviar reforços para deter a qualquer preço as investidas dos alemães. O general Phillipe Pétain, que heroicamente comandou a resistência nos primeiros tempos, deu lugar depois ao general Robert Nivelle, arauto da doutrina do l´attaque à outrance, e ao seu subalterno o general Charles Mangin, apelidado de Le boucher, “O carniceiro”. Milhares de soldados franceses foram transportados pela chamada Voie Sacrée, a Via Sagrada, única estrada que ligava Verdun ao restante do país. Por ela foram despachados em 12 mil veículos, 50 mil toneladas de alimentos e 90 mil homens por semana ( no total 2 milhões de franceses se fizeram presentes na batalha, o equivalente a 70% do exército). Os alemães tiveram o cuidado de jamais bombardeá-la porque a intenção deles era fazer com que os franceses, trafegando desimpedidos por ela, se amontoassem dentro da cidadela para melhor serem massacrados. Para a França inteira, entretanto, impedir que Verdun caísse virou questão de honra nacional, não importando os custos disto.
Um imenso atoleiro
Com o prolongar dos meses as coisas começaram a tornar-se cada vez mais difíceis para a infantaria alemã. Além das dificuldades de terem que deslocar-se sobre um terreno similar à superfície lunar, escavado por um bombardeio inaudito, a resistência francesa tornou-se sobre-humana. O poilu, o soldado raso francês, determinou-se a cumprir com a promessa do general Nivelle: Ils ne passeront pas! Eles não passarão! Para manterem-nos nas posições , a substituição das tropas era constante. O general Phillipe Pétain e o general Charles Nivelle, adotando o Sistème Noria, tiveram o cuidado de não deixar os seus soldados exaurirem-se nas trincheiras e nos fortes. De tanto em tanto, todos eram removidos e novos regimentos chegavam para assumirem-lhes os postos no fronte. Com tal rotatividade acredita-se que 2 milhões de franceses de algum modo passaram por Verdun. Combates memoráveis foram travados na Colina 304 e no tétrico monte Le Mort-Homme, o sinistro Morte-do-Homem, onde os rivais enfrentaram-se à baionetadas e lutas de mão. Apenas vinte dias depois do primeiro assalto alemão - dilacerados pela artilharia e pelas metralhadoras - as baixas chegaram ao espantoso número de 89 mil franceses e 82 mil alemães mortos, feridos ou desaparecidos. Algo como 8.550 homens perdidos por dia! Foi então que Verdun virou um grande atoleiro com milhares de cadáveres insepultos – o Inferno de Verdun, como os solados passaram a dizer.
A guerra pela guerra
No dia 6 de março de 1916, os alemães retomaram o ímpeto ofensivo, conseguindo ocupar, até o meio de abril, mais quatro fortes (Harcourt, Malancourt, Thiaumont e Vaux). A esta altura Verdun transformara-se numa “guerra pela guerra” porque os objetivos originais de fazer sangrar o exército francês “até a última gota de sangue”, como dissera von Falkenhayn, tinham sido totalmente desvirtuados. Outros elementos, psicológicos, motivados pelo ódio patriótico e pelo recalque de antigas quizilas franco-germânicas, entraram em ação. Sem metas estratégicas definidas, a batalha de Verdun virou um cabo-de-força entre alemães e franceses, uma disputa irracional que abateu inutilmente milhares de soldados. Num confronto onde a artilharia foi a rainha das armas, a tragédia de Verdun ficou conhecida como a que produziu o maior número de vítimas por metro quadrado do que qualquer outra batalha da história. Por isso os alemães chamaram-na de Fleischwolf, o moedor de carnes. Calcula-se que foram jogados sobre os estreitos campos de Verdun 43 milhões de petardos, e que somente contra os fortins os alemães lançaram de uma vez só 110 mil granadas de gás venenoso.
A literatura de Verdun
O horror sem tréguas sofrido pelos soldados no matadouro de Verdun foi indescritível. Milhares de homens, os melhores exemplares de duas das mais civilizadas e cultas sociedades até então conhecidas, foram reduzidos durante meses a fio, em meio à chuva, à lama, à neve, ao gelo e depois ao sol, à uma vida subumana. Como se fossem trogloditas, vergando os corpos como caramujos, passaram intermináveis horas e dias dentro de buracos e de túneis, de fossos e de cavernas, todas elas imundas, fétidas, invadidas por um repulsivo mau cheiro, assustados pelo silvo dos morteiros e pelo atordoante impacto das bombas e estilhaços que, como chuva pesada, não paravam de cair sobre eles. Enlouquecidos pelo troar incessante das canhonadas, ainda assistiam diariamente os estragos que as metralhas e os lança-chamas faziam sobre os corpos mutilados dos seus camaradas. Os bombardeios enterrava e desenterravam os cadáveres. Os miasmas e odores nauseabundos exalados por todos os lados eram tamanhos que os soldados que freqüentavam as latrinas do Forte Vaux usavam máscaras antigazes. Um número considerável de cartas enviadas pelos combatentes à retaguarda, para os seus familiares, amigos ou amadas, compuseram o que pode-se designar como a “ literatura de Verdun”, coletada por pesquisadores e historiadores da correspondência vinda das trincheiras..
Exemplos:
- comentário de um oficial alemão: “ o número de desertores aumentou, os soldados do fronte começaram a ficar insensíveis, apáticos, de tanto verem os corpos sem cabeças, sem pernas, atingidos no estômago, trespassados na testa, com buracos no peito, dificilmente reconhecidos, pálidos e sujos, em meio a lama marrom amarelada que cobre inteiramente o campo de batalha.”
- de um outro soldado alemão: - “ numa única palavra, Verdun. Numerosos rapazes, ainda jovens e cheios de esperanças, deixaram suas vidas aqui – os restos mortais deles estão se decompondo em algum lugar entre as trincheiras, em sepulturas de massa , nos cemitérios..”
- de um soldado francês: - “ durante os meses de verão os vermes e as moscas assolam os corpos e o fedor, aquele horrível cheiro... quando nós cavamos trincheiras colocamos dentes de alho nas narinas.”
- um outro testemunho: - “ lama, calor, sede, sujeira, ratos, o doce cheiro dos corpos, o repugnante cheiro dos excrementos e o terrível medo... sinto que temos que ir para ao ataque, e isso justo quando ninguém tem mais vigor”.
- um soldado francês descreve um bombardeamento: - “ Quando você ouve o sibilo cada vez mais próximo todo o seu corpo encolhe-se preventivamente preparando-se para a enorme explosão. Cada nova explosão é um novo ataque, uma nova fadiga, uma nova aflição. Mesmo os nervos daqueles feitos de aço não são capazes de suportar com tal tipo de pressão. O momento vem quando o sangue explode na sua cabeça, a febre ferve no interior do seu corpo e os nervos, entorpecidos pelo cansaço, não são capazes de reagir a mais nada. É como se você estivesse preso a um poste, amarrado por um homem com um martelo...É difícil até rezar para Deus..”
- um oficial francês observa: - “ Primeiro passam companhias de esqueletos, por vezes comandadas por um oficial ferido, apoiado numa muleta. Todos marcham ou melhor movem-se para frente em ziguezague como drogados. Seus rostos aparentam como se eles tivessem gritando alguma coisa.”
O inferno de Verdun - Os momentos finais
Por fim, no dia 12 de julho de 1916, o general Erich von Falkenhayn ordenou a cessação dos ataques e determinou que as tropas alemãs mantivessem a todo custo suas posições. A conversão mais ou menos repentina de Verdun numa batalha defensiva por parte deles deveu-se ao fato de que os anglo-franceses estavam lançando, a partir do dia 1º de julho, uma enorme ofensiva na região do Somme. Grande e terrível batalha que em pouco tempo revelou-se um matadouro da mesma dimensão do de Verdun ( os ingleses perderam somente no primeiro dia do ataque 58 mil mortos e feridos, totalizando 600 mil baixas quando a batalha encerrou-se). Além disso, os russos , aliados dos ingleses e dos franceses, por insistência dos últimos, sangrados em Verdun, iniciaram a partir do dia 4 de julho um poderoso ataque contra os austro-húngaros no fronte oriental – a ofensiva Brusilov. Investida que, até ser detida no dia 20 de setembro, causou enorme estrago nos aliados dos alemães. Para aumentar ainda mais os dissabores deles, o Reino da Romênia declarou guerra às potências centrais no dia 27 de agosto, obrigando a que o Alto Comando alemão, aquela altura chefiado pelos generais Hindemburg e Ludendorff , começasse a retirar tropas da região de Verdun para tapar os buracos que se abriam em vários outros frontes da guerra. O general Falkenhayn, caído em desgraça, foi enviado para comandar o fronte da Romênia. Encerrado o assédio alemão sobre Verdum, foi a vez dos franceses contra-atacarem. No dia 21 de outubro de 1916, o general Nivelle ordenou que suas tropas retomassem todos os fortes que haviam sido perdidos para os alemães. Assim, um a um, com a retirada das forças do Kaiser, os franceses os recuperaram, dando a hecatombe por encerrada no dia 19 de dezembro de 1916. A última página de bravura naquela matadouro foi propiciada por um oficial alemão, o capitão Prollius que negando-se a evacuar o Forte Douaumont sem oferecer luta, nele plantou-se com 20 voluntários até ser obrigado a render-se. Com tal gesto quase que quixotesco encerrou-se uma das maiores carnificinas da história.
Verdun, símbolo universal da Paz
Dando prosseguimento à política da conciliação entre os dois povos, assumidas pelos franceses e pelos alemães depois da Segunda Guerra Mundial, o presidente da França François Mitterand encontrou-se com Helmuth Kohl, o chanceler da Republica federal alemã, no dia 23 de setembro de 1984, frente ao ossuário existente no Fort Douaumont, erguido em homenagem aos soldados mortos em Verdun, para a troca de um aperto de mãos carregado de emoção. O simbolismo do gesto dos dois estadistas visava enterrar ali - exatamente naquele local em que pereceram milhares de soldados, imolados no altar da rivalidade das suas nações - qualquer possibilidade futura de franceses e alemães vierem novamente a se enfrentar. Quatro anos depois, em 1988, o então secretário-geral da ONU, Javier Perez de Cuellar, esteve naquele campo de morte para transformá-lo no Centro Mundial da Paz e dos Direitos do Homem.
Bibliografia
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Horne, Alistair – Verdun e Somme (in História do século XX, Abril, nº21, SP).
Liddel Hart, Basil – History of the First World War (Pan books, Londres, 1970)
Péricard, Jacques – Verdun 1916 ( Druckerei Moll, Idar-Oberstein, 1994)
Tuchman, Barbara W. - The Guns of August (Ballantine Books, Londres, 1994
Os Richthofen, cavaleiros do céu
Os pilotos de caça da Iª Guerra Mundial, de ambos os lados do conflito, foram vistos na época como os últimos cavaleiros, representantes tardios da ética das ordens guerreiras medievais. Dentro do possível, num combate em terra cruel e impiedoso, no qual crescentemente usou-se a artilharia pesada, a metralhadora, o lança-chamas e o gás venenoso, eles procuram preservar os altos do espaço azul como um local onde ainda poderia praticar-se, sem traições ou perfídias, o bom combate. Entre eles, destacaram-se os irmãos Richthofen, Manfred e Lothar, os cavaleiros do céu.
Lutando no ar
E doravante os dois irmãos [Manfred e Lothar Richthofen] que eram o orgulho da Alemanha encontram-se reunidos no Walhalla.
Coroa funerária no enterro de Lothar von Richthofen, em Shweindnitz, 1922
Recolhido a um hospital militar em Cambrai, na França, em abril de 1918, nos finais da Iª Guerra Mundial, Lothar von Richthofen, irmão mais novo do célebre ás alemão Manfred von Richthofen , recuperava-se de um dos tantos ferimentos que recebera nos seus três últimos anos como audaz piloto de guerra. Por isso ele nada pode fazer quando soube que o seu famoso irmão fora abatido, não longe dali, no vale do Somme no dia 21 de abril. Os irmãos, inseparáveis, tinham entrado praticamente juntos na Luftflotte, a força área do II º Reich alemão, em 1915, vindos do regimento dos Ulanos.
Transferidos para o fronte ocidental, Manfred, um descendente da nobreza prussiana - a casta guerreira dos junkers - , nascido em Breslau em 1892, viu na aviação, força então recém organizada, um legítimo sucedâneo para seu desejo de glória. Trocou o cavalo por um aeroplano: um triplano Albatroz da Fokker.
A aeronáutica, naqueles tempos heróicos, logo tornou-se a arma favorita da juventude aristocrática. Na verdade, repugnava-os a idéia de terem que conviver ombro a ombro com a soldadesca nas trincheiras, em meio à lama e aos excrementos. Pior ainda, horror dos horrores, parecia-lhes morrer anônimos, simples número em meio aquela multidão de cadáveres empilhados ao lado das trincheiras que a guerra estava produzindo em escala industrial. Para aqueles super-homens nietzscheanos que a aviação atraía, era somente nos céus é que se dava a boa luta. Manfred e Lothar, como seus congêneres ingleses, franceses e italianos, acreditavam que os duelos entre os pilotos eram a maneira deles preservarem os honoráveis costumes dos valentes medievais. Os Fokker, os Sopwith Camel, os Havilland, os Nieuport que pilotavam substituíam em definitivo as cavalgaduras. O ronco dos motores faziam com que esquecessem os relinchos. Viam-se versões modernas de Lancelote, de Orlando Furioso ou de Götz von Berlichingen. Era como que cavalgar Pégaso, o ginete alado.
Caçadores implacáveis
Manfred, que logo revelou-se um caçador implacável, para assombrar ainda mais os inimigos - espantando-os ou atraindo-os para a liça - pintou o seu Albatroz de vermelho. Os ingleses, seus adversários mais tenazes, admirando-lhes as façanhas, batizaram-no de o Barão Vermelho. Entre outras razões, por sua ética em combate. Promovido a Rittmeister, a capitão da cavalaria, Richthofen jamais atirava num rival abatido que saltasse de pára-quedas. Incendiado o aparelho ou embicado para o solo, dilacerado, ele não perseguia o piloto. Ferido o cavalo, deixava que o destino cuidasse do cavaleiro. Fez fama de ser leal e generoso adversário.
O registro dos inimigos derrubados por ele quando comandante da Jasta 11 - a esquadrilha apelidada de O Circo Voador - , foi impressionante: em 1916 foram 15 aviões , em 1917 saltou para 46, e, no primeiro trimestre de 1918, até sua morte, mais 17. Ao todo quase 80! A imprensa e o povo alemão idolatraram-no. O Kaiser Guilherme II, encantado, condecorou-o com a Pour le Mérite, a ordem que Frederico o Grande criara para honrar Voltaire. Lothar, cujo Albatroz pintara de amarelo, depois de destruir 40 aeronaves em apenas 70 dias de combate, por igual foi agraciado com a Blaue Max.
Os Richthofen: no reino das nuvens
Por vezes, a dupla era arrastada para a retaguarda, para estarem presentes nas exaltadas cerimônias patrióticas onde eram apontados aos quatro cantos da Alemanha como símbolos nacionais da coragem e da iniciativa. Estiveram a convite do Kaiser presentes em Brest-Litovsk, em março de 1918, para assistir os bolcheviques assinarem a paz com os imperialistas alemães. Estando perto de casa, em Schweidnitz, a propriedade da família na Silésia, recordando os tempos de adolescência, não resistiram a embrenharem-se numa caçada local. Foi a última que fizeram juntos. No mês seguinte Manfred morreria aos 26 anos, e Lothar, o seu escudeiro que o sobreviveu, foi vitima de um acidente aéreo civil em 4 de julho 1922, aos 27 anos. E assim os Richthofen , cavaleiros do céu, foram-se para sempre galopar no reino das nuvens.
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