Itália entre o dólar e o voto
“ – Palavra, Gregório, não carregaremos desaforos! Quero dizer que se nos zangarmos, puxaremos a espada.
Sim porém, procura, enquanto viveres, puxares teu pescoço para fora do nó da forca.”
Shakespeare - Romeu e Julieta, Ato I, Cena I
Em Nápoles, no final da guerra, em meio aquelas antigas vielas sórdidas – é Curzio Malaparte quem relata – mães famintas se esgueiravam com seus filhos para ir alugá-los aos mouros. A cidade estava ocupada por soldados marroquinos trazidos pelos aliados da África e que, pederastas quase todos, só gostavam de meninos. Havia um verdadeiro mercado de carnes vivas por lá, onde o povo, na falta de ter que defender a bandeira nacional, desmoralizada pela derrota, tratou de salvar a própria pele ( titulo da novela de Malaparte).
Desde o desembarque de Patton e Montgomery na Sicília em 1943 - ocasião em que o antigo país virou um ferocíssimo campo de batalha entre os anglo-americanos e os nazistas em recuada - pouca coisa sobrara da bela Itália. A miséria se democratizara. Os cineastas do neorealismo, Rosselini, Visconti, De Sica, De Santis, e outros, ainda tentaram extrair sentimentos de dignidade em meio aquele mar de ruínas e desespero , tendo Anna Magnani como a musa dos esfarrapados e estropiados.
O pais, politicamente, dividira-se entre os partisans comunistas, os guerrilheiros do PC que pegaram em armas para lutar contra os alemães ocupantes e grupos sobrantes do fascismo, e os moderados da democracia-cristã, renascida com o fim de Mussolini. Ainda conseguiram marchar juntos no referendo de 2 de junho de 1946, o que repudiou a monarquia, instaurando a republica italiana, mas, em seguida, as relações se deterioraram. Nas eleições para a formação da constituinte, a Democracia Cristã fez 35% dos votos enquanto a esquerda atingiu 39,7%: divididos, porém, entre o Partido Socialista ( com 20,7%) e o Partido Comunista ( com 19%). Todavia, um governo de conciliação liderado por Alcide De Gasperi, da DC, foi levado adiante pelos menos até 1947.
O enquadramento de forças
De um lado, com a Democracia-Cristã, estavam a Igreja e os filoamericanos, do outro, com os esquerdistas, alinhavam-se os pró-soviéticos ( situação de enfrentamento que foi satirizada na hilariante série cinematográfica de Don Camilo e o Camarada Peppone, na qual um pároco do vilarejo de Bassa, interpretado pelo cômico Fernandel, num momento impagável, mete-se em conspirações sem fim contra o prefeito comunista local, representado por Gino Cervi, ao tempo em que fazem alianças secretas, o padre e o comunista, para o bem estar de todos, especialmente no que toca as coisas do amor – era a versão italiana da Guerra Fria ).
Americanos e soviéticos, os aliados de ontem, rosnavam um para o outro. Stalin, de defensor da liberdade, tornou-se o seu ogre. Não tardou para que a corrida nuclear se acelerasse. Na Itália, como em boa parte do mundo, a aliança de centro-esquerda soçobrou. Atrás dos milhões de dólares do Plano Marshall, anunciado em 5 de junho daquele ano de 1947 , Alcide De Gasperi rompeu com a esquerda. Palmiro Togliatti, o líder dos comunistas, que até ali fora o primeiro Ministro da Justiça da republica italiana ( aliás, extremamente tolerante, um pacificador nato) , renunciou. Foi um pandemônio. Greves e tumultos cobriram a Itália da Calábria à Lombardia. Entrementes, a constituição, democrática e antifascista, ficou pronta.
Era, bem ao gosto nacional, um monumento à confusão, mas como disse o jurista Piero Calamandrei, em certa ocasião: “ Quanto sangue, quanto dor para chegar até ela, jovens que caíram em combate, os enforcados, os torturados, os mortos de fome nos campos de concentração na Russia, na África, os mortos na estrada de Milão...os que deram a vida pela liberdade..”
Veio então a histórica eleição de 18 de abril de 1948, as primeiras sob a égide da nova constituição. Um rumor cada vez mais audível circulou pela Itália inteira. Os americanos haviam avisado: se votarem na esquerda, nos socialista e comunistas, nada de dólares. Estes ainda tentaram compor-se no antigo modelo dos Frontes Populares dos anos trinta. Não adiantou. A democracia-cristã arrasou, arrebanhando 48% das urnas. Alcançando folgadíssima maioria no parlamento, orientou o país, fugindo dos extremismos, no rumo ao europeísmo sob hegemonia norte-americana.
Consta, como cúmulo do pragmatismo, que o próprio Palmiro Togliatti teria - à voz pequena, escutando o ronco dos famintos - , desestimulado o voto nos vermelhos pois sabia que a URSS, destroçada pela guerra, jamais poderia mandar um centavo sequer para fazer a sua pátria “ tirar o nó da forca”, erguendo-se dos devastamentos de 1945. Sem outros impedimentos, o voto casou-se com o dólar, e a Itália voltou a rir de suas boas comédias - deu-se então o Reino de Totó.