Marcuse, o apóstolo da Grande Recusa
Na filosofia política, tal como no Cosmo, por igual existem cometas. Herbert Marcuse foi um deles. Em astronomia poderiam equipara-lo a um astro elíptico, um corpo celestial de fôlego curto. Reflete um brilho intenso, cintilante, porém, em seguida, perdemo-lo de vista, desaparecido na escuridão cósmica. Mesmo assim configurá-lo como um fenômeno de circunstância é injusto. Marcuse teve a rara felicidade de, ainda em vida, assistir e sentir os efeitos do que teorizou: “A Revolução Inesperada”, a grande revolta estudantil de 1968, pegou-o quando tinha 70, fazendo dele o patrocinador teórico das Kinder der Revolution, das “ Crianças da “Revolução”.
Na Escola de Frankfurt
Na Alemanha dos anos vinte, na República de Weimar, Herbert Marcuse fora um dos integrantes do Frankfurt Institut für Sozialforshung, o Instituto de Pesquisas Sociais, instituição que celebrizou-se como a Escola de Frankfurt, formada por um seleto grupo de intelectuais filomarxistas (Felix Weil, Theodor Adorno, Max Horkheimer, etc..). Em alentados ensaios publicados desde 1932 na sua revista, a Zeitschrift für Sozialforschung, tentaram explicar através do que denominaram de Teoria Crítica, como o capitalismo ocidental conseguira sobreviver e preserva-se dos tumultos das revoluções de 1971-1919 e qual o papel desempenhado pela cultura como um poderoso elemento de dominação e conformismo.
Com a ascensão dos nazistas, em 1933, Herbert Marcuse, que antes, em 1929, fora até Freiburg para ser orientado por Heidegger numa tese doutoral sobre Hegel, embarcou para o exílio nos Estados Unidos. É bem possível que esse europeu da gema, um berlinenses de origem judaica, nascido em 19 de julho de 1898, jamais tenha conseguido aclimatar-se na América. Depois de peregrinar pelas Universidade de Columbia, Harvard e Brandeis, chegou por fim à Califórnia, fixando-se na Universidade de San Diego.
Marx e Freud
Só se tornou conhecido fora dos círculos acadêmicos e das seitas esquerdistas a partir do seu ensaio Eros and Civilization, (Eros e Civilização, 1955). Retomando a mesma estrada antes percorrida por marxistas como W. Reich, Erich Fromm, e outros companheiros da Kulturkritik, exilados como ele na América, Marcuse , descontente com a pachorrenta e conformista sociedade de consumo americana, socorreu-se da psicanálise para acenar com a possibilidade de Eros, o prazer, espraiando-se num panerotismo, ao contrário do que Freud dizia ( o psicanalista sustentara que o prazer e o erotismo opunham-se à civilização), vir algum dia a harmonizar-se com a civilização, com a contenção e até com a disciplina em geral.
Eros amansado
Nesse novo mundo previsto por ele, reconciliado e pacificado, no qual Eros já não representava mais uma ameaça à configuração geral da sociedade burguesa, o mitológico Prometeu, o dominador da natureza, cederia lugar o seu lugar aos “ heróis da não-repressão”, a Orfeu e a Narciso. Defendeu então uma “liberação funcional” oposta à qualquer possível manipulação, abrindo caminho para uma proposta da emergência futura de uma civilização mais elevada – que se efetivou na atual Era da Permissividade - do que até então se conhecia, pois mesmo na América democrática existiam estruturas repressivas.
E, por mencionar-se a democracia, ele, como muitos pensadores esquerdistas da sua geração, desconsideravam-na. Entendeu-a apenas como um instrumento mais sofisticado da dominação burguesa, no qual “ os servos escolhiam livremente os seus senhores”. Um processo político cujos reais controladores escondiam-se atrás de um “ véu tecnológico” e de uma (ir)racionalidade administrativa que impedia o povo de ver quem realmente mandava.
Escrita em pleno clima da Guerra Fria, essa aberta crítica ao sistema vigente nos Estados Unidos poderia fazer parecer com que Marcuse devotasse alguma simpatia pelo inimigo dos americanos: a URSS. Talvez tenha sido por isso mesmo, para livrar-se desta suspeita, que ele publicou Soviet Marxism (O Marxismo Soviético, 1958), uma elaborada e contundente crítica à filosofia oficial do estado comunista, acusando o partido monolítico e suas lideranças de “ serem as únicas autoridades de interpretarem a dialética”, tornado-a numa força mecânica anódina e legitimadora da suas políticas autoritárias.
Crítica à sociedade afluente
Porém, foi a sociedade afluente ocidental, o portento industrial-consumista norte-americano, que atraiu o peso da sua contundência e da sua crítica maior. Em 1964, publicou seu famoso libelo : One-Dimentional Mann ( A ideologia da Sociedade Industrial), que tornou-se uma espécie de manifesto da New Left, da Nova Esquerda americana. Nele defendeu a tese que também a sociedade americana tinha marcados traços totalitários.
A existência da liberdade partidária e do direito de livre expressão não afastavam, no entender dele, a evidência de que na América todos viviam controlados por uma (ir)racionalidade produtiva. A fabricação em série, o consumo articulado com a publicidade, erigiram a mais perfeita forma de controle social e de imbecilização em massa até então conhecida.
Ela, a sociedade afluente que expandia-se nos Estados Unidos, superava o conflito pela assimilação do que lhe era oposto: nela o Capital absorvera o Trabalho; a Patronal eclipsara o Sindicato, enquanto o Contestador submergia, reduzido à impotência ou cooptado pela eficácia do Sistema. No que tocava à psicanálise, a Terapia, conservadora e adaptadora, neutralizava a corrosiva Teoria Freudiana, que ele entendia doutrina revolucionária, capaz de emancipar homens e mulheres das sanções repressivas. Nesse universo social dominado pelo capitalismo consumista desconhecia-se a contradição, enquanto impedia-se qualquer transcendência. O positivismo era sua expressão máxima. Na América tudo tinha uma só dimensão.
Marcuse, todavia, negava-se a deixar-se abater. Não aceitava que a sociedade de consumo fosse um fim em si mesmo, que não haveria no horizonte dela nenhum outro devenir. Abandonou, no entanto, o dogma marxista, de que o agente revolucionário era a classe operária. Nos Estados Unidos, como ele constatara, o proletariado era quem menos deseja destruir o capitalismo. Muito menos ainda a classe média ketchupiana que tem acesso a praticamente a todas as boas coisas da vida.
Estimulando a Grande Recusa
Neste quadro desalentador para um pensador neomarxista que aferrava-se à tese da superação histórica do capitalismo, ele procurou encontrar outros “ agentes da transformação social” que não fossem as massas revolucionárias. Isso fez com que ele, ainda esperançoso, se voltasse para os estudantes radicais e para os outsiders do sistema: os hippies, os beatniks, e para todos os que optavam pela Grande Recusa. Isto é, os que rejeitavam os apelos de consumo e integração da sociedade capitalista moderna.
Marcuse viu, ainda que com certa cautela, naquele “ substrato de párias e estranhos, de explorados e perseguidos”, que se somavam aos guerrilheiros do terceiro-mundistas, uma possível esperança do sistema capaz de atenuar “ seu pessimismo revolucionário.”
Contentes ou não, pareciam-lhed os únicos capazes de tirar os afluentes da acomodação, de sacudirem a sua falsa “ consciência unidimensional”. Eram “ uma força elementar que viola as regras do jogo” e ocuparam o papel de “ povo eleito” no messianismo de Marcuse.
Reclamou em favor de um novo principio da realidade assentado em outras formas produtivas que não aquelas que imperavam então nos Estados Unidos e defendeu uma sexualidade polimórfica que não utilizasse da descompressão da libido como um ardil. Marcuse tinha certeza de que a progressiva liberação sexual dos anos 60 era uma artimanha soporífera do sistema capitalista para tornar a juventude conformista e acomodada com a vida. O sexo, assim como era entendido naquela ocasião, era o ópio da juventude afluente.
A utopia dessublimada
Acreditou, por fim, ser possível chegar-se à utopia. Não alcançada essa, a ampliação da tecnologia trazia em si, pela sua exigência excessiva de racionalidade, um enorme potencial totalitário. O avanço tecnologico, mesmo que pervertido pelos sucessivos governos para gerar desperdício, consumo conspícuo e armamentos, poderia ser resgatado para a construção de uma nova utopia. Uma sociedade harmoniosa habitada por gente feliz, saudável, dessublimada das opressões viciosas que a cercavam, estava no fim do horizonte histórico dele.
Passados muitos anos dessas profecias e “ utopias sexuais”, e desde a sua morte, ocorrida em 29 de julho de 1979, Marcuse, maldosamente entendido por alguns como “ guru surrealista” ou “ pai da nova esquerda” ( ele, ironicamente, chamou-se de Mahatma marxista), eclipsou-se. Ao invés da esperada Grande Recusa, da rejeição ao consumismo e ao capitalismo afluente, deu-se o contrário. As massas, por todos os lados, acotovelam-se e empurram-se atrás de bugigangas, enquanto o poder de fogo dos outsiders para alterar o sistema revelou-se pífio. O Establishment capitalista liberal-democrático continuou a amortecer e assimilar tudo o que era jogado contra ele, confirmando a lógica da derrota do protesto. Che Guevara, por anos símbolo vivo da rebeldia e do inconformismo, é hoje grife e marca de cerveja!
Uma das imagens fortes que restaram de Marcuse é da sua participação numa assembléia de estudantes rebeldes no Audimax em Berlim, em 1967, na qual sua presença ilumina o ambiente enfumaçado e anáquico com sua poderosa cabeça branca. Mas parece que, apesar do esforço da concentração dos presentes, não o entendiam. O apostolo da Grande Recusa terminou por formar um exército de um homem só.
Obras de Herbert Marcuse
- Reason and Revolution, 1941 (Razão e revolução, Paz e terra, RJ)
- Eros and Civilization, 1955 (Eros e Civilização, Zahar Editores, Rio de Janeiro)
- Soviet Marxism, 1958 (El marxismo soviético, Alianza Editorial, Madri)
- One-Dimensional Man, 1964 (Ideologia da Sociedade Industrial, Editora Zahar, Rio de Janeiro)
- Das ende der Utopie, 1967 (O fim da Utopia, Editora Civilização brasileira, RJ)
- Psychoanalyse und Politik, 1968 (Psicoanálises y politica, Ediciones, Península, Barcelona)
- Towards a Critical Theory of Society, 1969 (Ideias sobre uma Teoria Crítica da Sociedade, Zahar Editores, RJ)
- Counter-revolution and Revolution, 1972 (Contra-revolução e revolução, Zahar, RJ, 1973)