Nietzsche como anticristo
“O cristianismo tomou partido de tudo o que é fraco, baixo, malogrado, transformou em ideal aquilo que contraria os instintos de conservação da vida forte" (Nietzsche - O anticristo, 1887)
As medidas a serem tomadas para evitar o assalto destrutivo e vandálico das massas (como ocorrera na Comuna de Paris, 1871) teriam que ser extraordinárias. Requereriam medidas sem contemplação, sem tergiversação, sem protelação. Mas como adotá-las se o clima cristão, piedoso e excessivamente tolerante, que perdurava na sociedade européia do fim do século XIX, ainda não havia se evaporado?
Pensador da superestrutura, o ataque direto que Nietzsche desencadeou contra o cristianismo radicalizou-se com o seu Der Antichrist (O Anticristo), mas a essência do seu ataque foi inicialmente exposto na Zur Genealogie der Moral (A genealogia da moral, 1887). Argumentou que a ética cristã era uma moral de escravos, de gente fraca e vil, que havia, através do cristianismo, desvirilizado o espírito senhorial e dominante dos aristocratas.
A origem desse processo corrosivo de solapamento feito por séculos de pregação cristã foi o enfraquecimento das energias vivificantes da sociedade ocidental, especialmente das suas elites, na medida em que o “doentio moralismo ensinou o homem a envergonhar-se de todos os seus instintos”.
A rebelião dos escravos
A rebelião dos escravos derivou da impotência dos cativos em destruírem a escravidão ou o seu sustentáculo, o poder romano. A nova religião – o cristianismo – tornou-se o instrumento deles para canalizar o seu ódio estéril, um “ódio que tinha a contentar-se com uma vingança imaginária”. Nada mais emblemático disso do que celebrarem um deus pregado numa cruz, com uma coroa de espinhos à cabeça. O produto desse ressentimento foi fazer com que a “raça inferior e baixa” transformasse tudo aquilo que fosse digno e nobre em algo pecaminoso. Ela fez da prostração e da pobreza uma virtude. A abjeta covardia de dar o outro lado da face em caso de uma agressão foi defendida por ela como um ato sublime de perdão.
O corpo humano, por sua vez, a única fonte do vigor do espírito, foi apontado pelos pregadores cristãos como uma posta de carne pecaminosa, cujas exigências naturais envergonhavam um verdadeiro homem de bem. Portanto, para aplacá-las, era preciso supliciá-lo com castigos, com cilícios e com jejuns, por um nada passar-se fome e sede. Vilipendiar a carne, enxovalhar o corpo, flagelar-se, sofrer, abster-se, rezar, pensavam os sacerdotes, era aplacar as fúrias de Deus.
Via, pois, o cristianismo, com suas “paixões tristes”, como uma doença maligna, de ordem moral, que havia atacado o Império Romano, contribuindo para que ele sucumbisse vitimado pelos bárbaros, corroído previamente por uma espécie de febre das catacumbas. E, pior ainda, “a mentalidade aristocrática” fora minada por ele até o mais profundo de si própria pela mentira da igualdade das almas. Logo, a crença na perigosa e antinatural prerrogativa das maiorias, tão difundida pelos democratas e pelos socialistas, é tributária do cristianismo. São os juízos de valor cristãos que qualquer revolução procura transformar em crime e em sangue. “O cristianismo é a insurreição do que rasteja contra o que tem elevação: o Evangelho dos pequenos tornado baixo”.
De volta às energias aristocráticas
Portanto, os conceitos de bem e de mal, que nortearam a civilização ocidental nos últimos dois mil anos, eram estratagemas dos derrotados, que fizeram a façanha de substituir o ethos da nobreza pela moral da gente vil e fraca. Dessa forma, a adesão ao cristianismo retirou da nobreza européia, enternecendo-a com rogos de piedade, a seiva necessária para aplicar uma política de mão firme para conter o moderno movimento neobárbaro, cuja carantonha havia emergido na Comuna de Paris de 1871.
O socialismo não passava de um “cristianismo degenerado [...] O anarquista e o cristão vêm da mesma cepa [...]”. Era preciso, pois, primeiro, expurgar de si esta moral de gente covarde. Retornar às fontes de energia aristocráticas, aplicar, ao livrar-se do vício da compaixão, uma política da impiedade, onde somente o mais nobre e o mais viril fosse tomado em consideração.
“Deus está morto!” Foi sua mais célebre proclamação. Como conseqüência, os homens deveriam buscar valores que transcendessem a moral convencional divulgada pelo cristianismo; um retorno “à ordem de castas, à ordem hierárquica [...] para a conservação da sociedade, para que sejam possíveis tipos mais elevados, tipos superiores – a desigualdade dos direitos é a condição necessária para que haja direitos”. Concluiu dizendo: “Quais são aqueles que mais odeio no meio da canalha dos nossos dias? A canalha socialista, os apóstolos [...] mirando o instinto, o prazer, o contentamento do trabalhador no seu pequeno mundo – fazem dele um invejoso, lhe ensinam a vingança [...]; a injustiça nunca reside na desigualdade dos direitos, ela está na reivindicação de direitos iguais”. Estas afirmações colocaram Nietzsche de uma maneira irrevogável ao campo da contra-revolução.