O Big Brother de George Orwell: o martírio de um homem comum
O intento do cidadão Winston Smith de se rebelar contra o todo-poderoso sistema em que ele vivia fracassara de maneira lamentável. Preso, torturado de um modo muito especial (ele era fóbico a ratos, justamente com quem o fizeram compartilhar uma gaiola), ele não resistiu. Reciclado pelo regime, reduzido ao anonimato, Winston voltou a ser um servo da ordem totalitária. Este, em essência, é o enredo da novela de terror 1984, de George Orwell, aparecida em 1949. Livro que assinalou o rompimento definitivo do escritor com qualquer causa de esquerda.
De certa forma, pode-se considerá-lo como o epílogo do seu crônico desentendimento com os comunistas-stalinistas, drama que se arrastava fazia mais de 10 anos, desde os tempos da Guerra Civil espanhola (1936-1939).
Como tantos intelectuais da sua geração, a crise dos anos 30, seguida da espantosa ascensão do nazi-fascismo, quando ditadores como Hitler, Mussolini e Franco passaram a servir de exemplo e inspiração para tantos outros candidatos à tirania, Orwell inclinou-se pela resistência a eles. Nunca, entretanto, foi um militante comunista. Considerava-se um independente, um companheiro de viagem. E assim o foi. O caldo entornou de vez quando o escritor, durante a Guerra Civil espanhola, apresentando-se como voluntário nas Brigadas Internacionais, lutava ao lado dos milicianos do POUM.
Este era um agrupamento pró-trotsquista liderado por Andrés Nin que, em junho de 1937, foi colocado na ilegalidade e suprimido pelos comunistas espanhóis, supervisionados pela GPU de Stalin. Ainda que seriamente ferido, consideraram-no um fora-da-lei.
Abalado, Orwell, retornando à Grã-Bretanha naquele ano mesmo, arquitetou um acerto de contas com os stalinistas. Primeiro foi a sátira Animal Farm (A fazenda dos animais), publicado em 1945, no qual, à moda de La Fontaine, que se socorria das fábulas de bichos para expor os homens, fez uma devastadora crítica à sociedade soviética.
Em seguida, em 1949, um ano antes de morrer tuberculoso, editou o Nineteen Eighty-Four (1984), o grande clássico da desilusão de um esquerdista, e obra-prima da distopia. Inspirado na pouco conhecida novela Nós, de Eugênio Zamiatin, de 1920/1921, Orwell colocou o regime do ditador soviético sob execração. Batizou-o de Big Brother, o Grande Irmão, que tudo via, tudo sabia e tudo previa - o invisível senhor de uma engrenagem totalitária que movia guerra ao mundo e aos seus poucos opositores. Retratou o regime da URSS como um monstro onisciente e onipotente que tornava o Leviatã, de Thomas Hobbes, uma peça infantil.
Tendo o controle absoluto das comunicações, fazendo da onipresente televisão um olho policial perscrutador e invasor, o Grande Irmão dobrava todos à sua vontade. O lema do regime era Big Brother is Watching You, o Grande Irmão te vigia. Nada, portanto, lhe escapava. Invertendo a lógica do aparelho televisor, obrigatoriamente ligado, sem alternativas de programas, era por meio do tubo que ele controlava os cidadãos, rebaixados a uma massa de servos dóceis e obedientes.
Lá fora, além do perímetro da Oceania, como Orwell designou aquele paraíso da repressão, o regime enfrentava os seus inimigos eternos na Eurásia e na Eastasia numa guerra que não tinha fim. Tudo justificado pela invenção de uma nova linguagem: a novilíngua. Este idioma totalitário, obra-prima dos filólogos a serviço do Grande Irmão - parente próximo do politicamente correto dos nossos dias -, tinha o dom de transmudar em outra coisa todas as palavras desagradáveis aos ouvidos do regime. Guerra era Paz.
Não satisfeito, o tirano ainda promovia sessões de ódio nas quais, numa tela gigante, para ser xingado, aparecia a imagem do principal inimigo dele. Situações essas intercaladas com outras cenas enternecedoras onde os súditos, perfeitamente lubrificados pela eficaz e condicionante engrenagem da propaganda, exaltados, lançavam juras e agradecimentos mil ao Grande Irmão.
Orwell, pessimista, viu o futuro desesperançado. O estado moderno, particularmente os de regime socialista, o do impessoal Grande Irmão, desenvolvera tamanha capacitação de controle do coração e da mente dos indivíduos que era impossível pô-lo abaixo. É de se supor que ele jamais poderia prever que aquele regime da "perfeita opressão" terminasse, no final das contas, por ser demolido pelas massas trabalhadoras. Foram eles afinal, os filhos diletos do Grande Irmão, como os acontecimentos de 1989 demonstraram, quem saíram às ruas de Gdansk, de Varsóvia, de Berlim, de Praga, de Moscou mesmo, para por um basta naquilo tudo.
Como certamente não poderia imaginar que os Estados Unidos, campeão da causa da democracia e da liberdade individual, fosse, por igual, nos começos do século 21, erigir o seu próprio Big Brother, submetendo ao seu controle invisível milhões de cidadãos do seu próprio país de parte considerável do restante do mundo.