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O corpo: no paganismo e no cristianismo

30 set 2020 - 18h17
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“...quando o espírito se move a querer marchar e caminhar, imediatamente toca na substância da alma que está disseminada em todo o corpo pelos membros e pelos órgãos: o que é fácil, visto que as duas substâncias são ligadas. A alma por seu turno toca no corpo e assim, pouco a pouco, toda a massa avança e caminha,”

Lucrécio – Da Natureza, Livro IV, séc. I

Apolo, a exaltação do corpo
Apolo, a exaltação do corpo
Foto: Reprodução

Em qualquer cidade da Hélade no tempos do paganismo, por todo o lado em que o passante olhasse só veria a nudeza. Nos pedestais lá estavam eles, os deuses ou  deusas, esculpidos no estado da natureza. Quando não assim, como no caso das Vênus e das Afrodites, um  diáfano véu as cobria sem mascarar-lhes as exuberâncias físicas. Se fosse um Marte ou um Hércules, um elmo ou um escudo só bastavam. Quanto aos atletas, nem isso. Toda nudez deles lá estava à vista. Reproduziam-nos com harmonia geométrica e na extensão plena da sua beleza. Inclusive as intricadas nervuras, a intensa rede de veias e de tendões que lhes davam vida podiam ser vistas de mais perto.

São Paulo e a idolatria ao corpo

São Paulo, o apóstolo,  quando visitou Atenas, ainda que por poucos dias – estima-se que ao redor dos anos 50-55 - horrorizou-se. Não só por aquela descarada exposição de paganismo em céu aberto, pela quantidade incrível de ídolos de mármore e de bronze, mas porque eles estavam assim como Deus os criara. Homem da dura e áspera Palestina, onde senhores ou servos, velhos ou jovens, homens ou mulheres, açoitados por areias escaldantes, ocultavam-se atrás de turbantes e camisolões até os pés, acreditou que Atenas era uma cidade da perdição, uma Sodoma.

O Evangelista viu naquela  exposição, naquela escancarada idolatria ao corpo humano feita pelos atenienses,  a prova viva da existência do reino de satã. Pouco depois,  quando arengou ao seleto público do areópago, pregou sem sucesso para que os atenienses se desfizessem das estátuas porque o verdadeiro Deus, do qual ele era o arauto, não podia ser copiado ou imitado por mãos profanas.

E isso que, segundo se sabe, ele não freqüentou um estádio onde os atletas se reuniam, que não lhe mostraram nenhum ginásio. Como não sairia chocado! Naqueles locais, centenas de efebos e atletas mais experientes, andavam exercitando-se para lá e para cá sem abrigo nenhum (aliás gymna, significa nu em grego). O máximo que se permitia entre eles era portar um strigil, uma espécie de raspadeira que, durante o banho, usavam para remover a camada dos óleos com que besuntavam seus corpos ( ato que o escultor Policleto imortalizou numa célebre estatua em homenagem a um vencedor dos jogos). Desconhecia-se entre os gregos a vergonha do físico, do corpo humano.

O corpo no paganismo

Ao contrário, o corpo era para ele uma prova da criatividade dos deuses Estava ali para ser exibido, adestrado, treinado, perfumado e reverenciado, pronto a arrancar olhares de admiração e inveja dos demais mortais. Se as divindades não deram um belo físico a todos não significava que os agraciados  tivessem que, por isso, escondê-lo.

Mas não se tratava apenas de narcisismo, de paixão desmedida por si mesmo. Os corpos não existiam apenas para mostrar-se, para gabar-se. Ao contrário, eles eram os instrumentos do agón, do combate. Tudo na Natureza era luta, era obstáculo a ser transposto, era espaço ou terra a conquistar. A vida, diziam os deuses deles, não era uma graça e sim dom a ser mantido como toda energia possível. Para tanto os Olímpicos lhes deram techné, a técnica, adequada para que exercitassem a arete, a virtude. As corridas, os saltos, os halteres, os discos, os dardos, os carros, era as provas que as divindades  exigiam deles para que se mostrassem dignos por terem sido premiados com uma vigorosa, saudável e bela compleição.

Era a oposição, o conflito, ensinara o mestre Heráclito, quem trazia a concórdia. Quando um Fídias ou um Praxíteles desentranhavam do mármore um deus ou um atleta qualquer, era para que o povo procurasse imitar-lhe o porte, o físico e o censo de grandeza. Os deuses pagãos, afinal, não passavam de seres humanos melhorados, imortais,  eram a excelência do que era possível alcançar pelos homens e pelas mulheres.

A vergonha do corpo

Mas então o cristianismo venceu. Significativamente foi um homem das areias, um morador da beira do deserto, Santo Agostinho, o bispo de Hipona, na Tunísia de hoje, quem lançou o mais pesado manto de condenação sobre a nudez do paganismo agonizante. Perante o deus cristão, o deus que estava por tudo, os homens e as mulheres deviam sempre ocultar o corpo às vistas do Todo-Poderoso. Nem entre os casais, na intimidade, ele deveria ser inteiramente desvelado. O pecado rondava tudo porque o Homem nascera em pecado e só encontraria sua remissão abdicando do sexo (atividade restrita apenas à reprodução da espécie).

Tirante o rosto, nada deveria ser mostrado em público. A pele exposta passou a ser uma afronta, até um braço nu podia parecer  uma perdição. O corpo, prisão da alma, era o principal suspeito de por um cristão a perder. Então, durante os mil e quinhentos anos seguintes - do decreto de Teodósio suprimindo em 393 com os jogos olímpicos até sua restauração pelo Barão de Coubertin em 1896 -, o Ocidente, vexado de si mesmo, carregado de culpas por ser feito de carne e de sexo, assaltado por pudores, encobriu com capas e panos os seus membros e os seus músculos.

Agora, com o declínio final da corporação  dos sacerdotes no Ocidente,  o corpo renasce, encontra sua redenção e volta a procurar o seu esplendor. Um neopaganismo ressurge, e a carne, intensa, ativa, ainda carregando as cicatrizes do estigma, volta a reclamar, como nos tempos do paganismo sua soberania na Cultura Ocidental. Quer mostrar-se, exibir-se. Cobra do mundo os séculos em que a confinou, e a infamou. Vinga-se esvaziando os templos e as igrejas lotando as academias e os estádios. O corpo agora, recuperando seu papel central na Cultura Ocidental,  quer ouro, quer prata, e até o modesto bronze lhe serve.   

Fonte: Especial para Terra
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