O sonho de Martin Luther King
O vento frio de novembro espalhou as palavras do discurso. Um atento testemunho do evento disse que podia ver, lá no alto do palanque, os lábios do presidente Abraham Lincoln se moverem, mas que seus ouvidos só acolheram uma coisa ou outra. Entendeu, num certo momento, quando o orador mencionou "uma nova nação, concebida em liberdade, e dedicada à ideia de que todos os homens são iguais".
Era uma fala curta, de minutos, em que o chefe da nação, dilacerada ainda pela Guerra de Secessão de 1861-1865, mostrou aos cidadãos ali presentes que o conflito era muito maior do que se imaginava. Não se tratava somente dos direitos dos estados confederados do Sul de se separarem da União norte-americana. O que estava em jogo, na luta entre o Norte anti-escravista e o Sul escravagista, era a possibilidade, ou não, de uma sociedade estabelecida nos princípios da igualdade, de poder sobreviver na terra.
O local era um triste campo de mortos tornado Cemitério Nacional. Ali, em Gettysburg, 7 mil sepulturas de nortistas abatidos, três meses e meio antes, nos dias 1º e 3 de julho de 1863, atestavam a violência da batalha e a determinação dos beligerantes. Lincoln desesperava-se - a guerra ainda arrastou-se por 16 meses - com a possibilidade daqueles jovens terem dado a vida por nada, fazendo votos de que "o governo do povo, pelo povo e para o povo" não perecesse.
Em 20 linhas, aquele imenso homem feioso, de enganadora aparência caipira, compôra um libelo universal pela liberdade e igualdade. No início daquele mesmo ano de 1863, em 1º de janeiro, ele assinara a Proclamação de Emancipação, o primeiro documento determinando uma parcial abolição da escravidão nos Estados Unidos, e fundamento da 13ª Emenda.
Cem anos depois do Gettysburg's Address, em 23 de agosto de 1963, à sombra do Memorial de Lincoln em Washington, o reverendo Martin Luther King Jr. vinha cobrar a conta. Na sua frente, uma multidão de mais de 250 mil pessoas formava a maior concentração até então vista no país a favor dos Direitos Civis.
Os negros, disse ele, receberam promessas de igualdade, mas a América ainda não as honrara. Pagara-os com um cheque sem fundo. Em meio a uma estonteante prosperidade de um país riquíssimo, os afro-americanos viviam isolados em ilhas de miséria, em guetos urbanos, atormentados pela segregação e pela brutalidade policial.
Mas, alertou o dr. King, eles estavam fartos. O verão do descontentamento chegara. A América só teria paz se os negros tivessem garantido seus direitos civis. Quando fossem realmente integrados à sociedade mais pujante da terra. Voltando-se para a sua comunidade, King alertou-lhes que de maneira nenhuma permitissem abrigar em seus corações ódio e amargura contra os brancos.
Admirador de Gandhi, King encontrara o caminho da não violência. O discurso aproximava-se do clímax. Um profeta encarnara no reverendo. Acometia-o um sonho. Disse: "I have a dream!". A cena eletrizou o país. Atrás dele, como num velho blues, um coral informal de militantes negros repetiam suas palavras finais.
O reverendo tinha um sonho, repetiu. Que algum dia, mesmo na racista Georgia, os filhos de escravos e o dos senhores se sentariam à mesa da fraternidade, e que até o Mississipi viraria um oásis de irmandade. Que ninguém mais seria julgado pela sua cor e sim pelo seu caráter. Que por toda a América, num anunciado futuro, em suas montanhas, vales, planícies, aldeias ou cidades, se ouviria o clarim da liberdade. Todos então, independente da raça, sexo ou religião se dariam as mãos e, em júbilo, repetiriam as palavras de um velho spiritual negro:
Ao encerrar, a multidão percebeu o acontecimento extraordinário. Martin Luther King Jr fizera um dos mais belos salmos políticos da língua inglesa. Mataram-no a tiros anos depois, em Memphis, em 4 de abril de 1968.
Como estará o sonho do dr. King hoje?