Peste negra: A Grande Peste - Primeira Fase
Os sintomas não deixavam dúvida a ninguém. Atacada por um febrão de 40°, a vítima sentia crescer na virilha ou na sua axila um forte inchaço que logo assumia a forma de um doloroso furúnculo do tamanho de um ovo ou de uma maçã. Insônia e delírios pavorosos complementavam o mal, fazendo com que o infeliz temesse tanto o sono como o despertar. No segundo ou no terceiro dia da incubação da peste, com o corpo tomado por bubões e caroços, sua pele assemelhava-se a de um leopardo com manchas pretas espalhadas por todo o corpo. Daí chamarem a epidemia de Peste Negra ou Peste Bubônica. Ardendo como um condenado aos tormentos, ele sentia-se como se “ na ante-sala dos fogos do inferno”.
O aspecto do desgraçado então tornava-o repelente. Os olhos inchados pela conjuntivite e os membros cobertos pelas pústulas, escarrando sangue e esvaindo-se em fezes enegrecidas, deixavam claro que a sua hora chegara e ninguém no mundo o salvaria. Neste momento de agonia, nos estertores de uma tremedeira sem-fim, ninguém mais se aproximava dele. Nem pai, nem mãe, nem irmão ou seu melhor amigo. Todos apavorados, debandavam, sumidos em fuga. Morria então só e pagão, pois mesmo os homens de Deus negavam-lhe a extrema unção por medo da contaminação. Com algumas variações, foi assim que 25 milhões de europeus, 1/3 da população total, pereceram abatidos pela Peste Negra de 1347-1351.
As origens da Peste Negra
Tudo começara na Ásia. A pandemia da peste bubônica, talvez seguindo a Rota da Seda que cruzava a Eurásia inteira, fora trazida para a Europa por uma pequena esquadra genovesa que tinha negócios na península da Criméia, no Mar Negro.
Os registros indicam que o pequeno porto de Kaffa ( a atual Feodossia), uma das feitorias comerciais dos italianos naquele mar estivera, no mesmo ano de 1347, submetido a um sítio pelos mongóis da Horda de Ouro, que então dominava boa parte da Rússia. Impacientes com a resistência dos habitantes, os sitiantes furiosos teriam catapultado para dentro dos muros da cidade os cadáveres putrefatos de alguns dos seus mortos. Não demorou a dar resultados o que alguns historiadores apontam ter sido um dos primeiros ataques - ainda que embrionário e primitivo - , da guerra bacteriológica. Os moradores de Kaffa começaram a cair nas ruas como se foram moscas. Naquelas circunstâncias, sem terem consciência de que podiam estar infectados por aquele estranho mal que enegrecia a pele dos caídos, os marinheiros genoveses alçaram as velas para retornar à Itália. Ancoraram primeiro em Constantinopla e, em seguida, já abalados pelo efeito epidêmico, rumaram para o porto de Messina na Sicília. Foi então que deu-se o desembarque maldito.
Cada um dos ratos de bordo trazia oculto nos pelos uma impressionante carga de pulgas (Xenopsylla Cheopis), as principais assassinas, portadoras do bacilo mortal, (cuja identificação somente ocorreu, 550 anos depois, em 1894, graças ao pesquisador suíço, o dr. Alexandre Yersin, chamando-se desde então de bacilo de Yersin). O bacilo, aclimatando-se tanto no estômago da pulga, como nas veias do rato, era transmitido aos humanos ou aos animais tanto pela picada de um, como pela mordida do outro.
O que gerou aquela espantosa matança foi o infeliz encontro de dois tipos de epidemia, a bubônica com a pneumônica. A primeira expandia-se pelo sangue, gerando os bubões nas ínguas e as ulcerações pelo corpo, a outra invadia os pulmões, destruindo-os, provocando a expectoração sangrenta, sufocando a vítima no seu próprio catarro. O verão era a estação preferida da bubônica, o inverno era-o da pneumônica. Sob o sol era a vez do bulbo matar, na névoa fria era a hora dos lobos pulmonares dissolverem-se.
Atravessado o estreito de Messina, a peste fez então sua sinistra festa por todo o sul da Itália. Aquelas coisinhas insignificantes, agindo em conjunto - o Rattus rattus associados às pulgas, insetos quase invisíveis, pondo de joelhos o orgulho dos humanos - , iriam matar mais gente do que todas as guerras até então travadas entre os europeus.
Os dois gumes da Peste Negra
As pandemias, naturalmente, não eram desconhecidas na Europa. Anteriores à Peste Negra do século XIV, ocorreram duas outras: uma delas devastou a Itália na época da queda do Império Romano, em 442, e a outra, dita a “peste justiniana” ( do imperador Justiniano), vinda da Etiópia em outubro de 541, alongou-se, com idas e vindas, até o ano de 750. Porém, quando a Bubônica atacou, fazia seis séculos que nada similar e tão devastador tinha ocorrido.
A enorme foice da Morte Negra afiou dois gumes para o grande abate: um deles, com o fio voltado para o norte da África, partindo da Sicília ou de Constantinopla, dedicou-se a decepar os habitantes de Alexandria, do Cairo, de Túnis, de Argel, de Oram, de Tânger, e do Marrocos, saltando dali para as ilhas de Maiorca e, pelo estreito de Gibraltar, para dentro da península Ibérica. Trajeto esse todo ele descrito pelo grande historiador árabe Ibn Kaldun, que tinha 17 anos na ocasião em que a Praga matou-lhe os pais.
O sul da Espanha foi então devastado: de Córdoba na Andaluzia, até Barcelona tudo ficou de pernas para o ar. O reino da Catalunha perdeu quase todo o seu Conseil de Cent, a assembléia dos cem, e quatro dos cinco consellers, os seus principais magistrados. Indica ainda J.A. García de Cortázar, entre os anos de 1300 a 1480, o sumiço, apenas na área de Barcelona, de uns 290 mil habitantes.
O outro dos seus gumes, empunhado pela mão descarnada da morte, foi levado Europa adentro por duas outras vias, provocando idêntica dizimação. Enquanto uma delas assolava o caminho de Calábria à Roma, e desta para Florença, onde ela começou a servir-se na primavera de 1348, a outra, partindo de Marselha, no sul da França ( que ingenuamente deixara os barcos pestíferos ancorarem no seu cais, no dia 1º de novembro de 1347, ironicamente dedicado à Festa dos Mortos), rumou para o interior do pais mais povoado da cristandade.
O reino da França, já naquela época, graças aos seus ricos trigais alimentava de 18 a 24 milhões de habitantes. Partindo, pois, de Messina na Sicília e de Marselha no sul da França, em apenas um ano a pestilência , subindo para o norte, disseminou-se por grande parte da Europa.
As danadas das pulgas, sempre seguindo as rotas comerciais, terrestres ou marítimas, democraticamente espalharam a desgraça da qual eram portadoras. Foi por mar que a Praga chegou no porto de Bordeaux, na costa atlântica da França, de onde, num só fôlego, atingiu mais ao norte as terras dos reis Plantagenetas na Normandia, no Calais e na Inglaterra.
Nas ilhas britânicas, a Black Death , a Morte Negra, fez sua adentrada tétrica pelo dique de Weymouth, no dia 7 de julho de 1348, indo liquidar com meio mundo em Londres. Insaciável, também por mar ela chegou ao porto de Bristol, então a segunda maior cidade do reino, matando 10 mil habitantes, alastrando-se em seguida para Gales, Escócia e Irlanda, onde a pestilência reinou soberana até 1350.
Robert de Avesbury registrou na ocasião: “Aos que foram marcados não foram permitidos mais do que três ou quatro dias de vida. Ela não fez favor a ninguém , a não ser a punhado de ricos. Num só dia 20,40, 60 corpos, em muitas ocasiões, eram enterrados todos juntos no mesmo fosso.”
Naquela altura do ano, o número de vitimados era tão impressionante, tão atordoante, que os sinos das igrejas e das capelas se calaram. Em muitos lugares, para não abalar ainda mais o moral, as autoridades simplesmente proibiram o dobre de finados. Em Siena, na Itália, ordenaram que ninguém perambulasse em trajes negros ou com um fumo de luto preso nos braços. Enquanto no alto das torres e dos frontões, nos castelos ou nas cidades, onde antes via-se as flâmulas ou os brasões coloridos dos barões e dos duques, avistava-se flutuando apenas uma solitária bandeira preta anunciando o luto coletivo de uma cristandade perplexa, atemorizada e em pânico. Nunca se vira nada igual aquilo.
O médico do Papa, o doutor Guy de Chauliac, que passou seis semanas em coma vitimado pelo mal, procurando explicar a Clemente VI as diferenças entre as doenças epidêmicas em geral com a Peste Negra, disse: “ Essas não ocupam senão uma só região, aquela espalha-se pelo mundo inteiro; essas são remediáveis a qualquer um, aquelas não...todo os doentes morrem, exceto alguns que conseguem recuperar-se quando os bubões se abrem.”