Polanyi e Hayek: as duas faces do mercado
Karl Polanyi e Friedrich Hayek, dois intelectuais austríacos, nascidos no fim do século 19, viveram num circuito cultural e ideológico mais ou menos próximo, tanto em Viena como depois em Londres, na década de 1930.
A obra deles, porém, os dois importantíssimos livros que eles publicaram em 1944, sem que tivessem conhecimento das suas respectivas teses, eram francamente opostos, marcando posições bem definidas quando a visão que eles tinham da história e da importância do mercado na sociedade contemporânea.
Mesma geração
Ainda que mais de 10 anos separassem o nascimento de Karl Polanyi do de Friedrich von Hayek, em Viena, um em 1886 e outro em 1899, pode-se dizer que ambos fizeram parte da mesma geração daqueles pensadores sociais austríacos que deitaram fama no mundo. Os dois, um de descendência judaica e o outro católico, além de terem a melhor das formações, serviram no exército do império Austro-húngaro durante a 1ª Guerra Mundial, experiência da qual guardaram poucas boas lembranças.
Enquanto Polanyi frequentou os grupos radicais, encontrando-se com George Lukács e Karl Mannheim, Hayek logo abandonou suas inclinações de socialista moderado ao ser escolhido para trabalhar com Ludwig von Mises, um dos mais célebres teóricos da chamada Escola Austríaca.
Em Londres e em Vermont
Por motivos diversos, eles terminaram por emigrar para a Grã-Bretanha nos anos 1930. Ao tempo em que Polanyi mostrou-se arredio a levar uma vida acadêmica regular, empregando-se como tutor, Hayek logo se integrou no alto staff da elite pensante da Inglaterra. Quando a London School of Economics, onde ele era conferencista desde 1931, emigrou em 1940 para Cambridge, escapando das bombas de Hitler, coube a John M. Keynes abrir-lhe as portas para acomodá-lo. Os americanos, por sua volta, sempre atentos e generosos com os talentos que vagavam pelo mundo, não tardaram em convidar Polanyi para uma estada em Vermont, onde o Bennington College ofereceu-lhe a preciosa tranquilidade para que ele escrevesse.
Enquanto isso, lá na Inglaterra, Hayek também se mobilizava. Em 1944, os dois, sem saberem um do outro, lançaram dois livros seminais para a nossa época: o The Great Transformation (A Grande Transformação), de Polanyi, e o Road to Serfdom (O Caminho para a Servidão), de Hayek. Dificilmente dois intelectuais que viviam mais ou menos no mesmo circuito, o austro-anglo-saxão, aspirando mais ou menos o mesmo clima cultural e ideológico, chegaram a conclusões tão divergentes.
O moinho satânico
No entender de Polanyi - ao fazer a reconstrução da expansão da economia de mercado na Grã-Bretanha do século 19 -, um novo tipo de sociedade havia emergido, distinta de tudo o que se conhecera até então. Nos sistemas produtivos anteriores à Revolução Industrial, os interesses econômicos eram mínimos, imperando as relações sociais e familiares.
Com a expansão do sistema fabril e os altos custos da sua implantação, foi preciso transformar a sociedade por inteiro, tornando-a um imenso mercado regido pelo interesse e pelo lucro, sendo o trabalho entendido como um negócio tal outro qualquer. Num levantamento detalhado das leis inglesas daquela época (a privatização das terras, a Lei dos Pobres de 1834, a Lei da Reforma de 1831, que deu enorme poder aos empregadores, a Lei do Trigo em 1846, o estimulo a imigração ou a ampliação do sistema prisional), Polanyi mostrou como o Estado, a serviço dos empreendedores, mobilizou-se para criar as condições em que a sociedade fosse submetida ao mercado. Não só isso, gerou-se um novo sistema social - a Grande Transformação - onde todos os indivíduos tornaram-se "átomos dispensáveis", uma engrenagem que era de fato "uma máquina... para qual o homem estava condenado a servir". Para Polanyi, deixá-la solta, sem maiores impedimentos e regulações, como pregavam os liberais, era excitá-la a ser um moedor de carne ou um "moinho satânico", como ele preferiu, destruindo todas as relações sociais.
A semente do totalitarismo
Hayek, por sua vez, percebeu tudo ao contrário. Para ele, contemporâneo das engenharias burocráticas do nazismo e do comunismo russo, eficientes opressoras dos indivíduos tornados peões dos macroplanejamentos econômicos, só via a solução em promover ainda mais o mercado. Mesmo o mais róseo dos programas socialistas, assegurou, era portador de sementes totalitárias. Planejar, para ele, era sufocar, era inibir, era constranger, era amestrar.
Até mesmo o pacífico Welfare State, o Estado de Bem-estar Social, bandeira dos trabalhistas ingleses do após-guerra, parecia-lhe uma temeridade, um risco permanente às liberdades maiores (o que era um tanto irônico, pois a London School of Economics, da qual ele participava, fora fundada pelo casal Webb, uma dupla de socialistas fabianos).
Não era só a liberdade que se via ameaçada com a subordinação dos cidadãos aos quesitos do superburocrata. O clima criado pelo controle econômico pareceu-lhe tão nocivo quanto à submissão às regulamentações. Era a inventiva humana quem se via ameaçada, tolhida, bloqueada, senão castrada, pelas ingerências do Estado Interventor.
Destaque-se a coragem moral dos dois. Polanyi execrou o mercado vivendo num país, os Estados Unidos, em que ele era quase uma divindade. Hayek celebrou-o exatamente no momento em que a Grã-Bretanha, com a vitória de Clement Attle e dos trabalhistas, em 1945, se encaminhava para uma longa experiência de estatizações e programas sociais distributivistas. Hayek, Prêmio Nobel em 1974, foi visto como profeta depois da débâcle soviética e da crise do Estado de Bem-estar Social europeu.
Polanyi, por sua vez, voltou recentemente a ser lembrado devido aos impasses, limitações e decepções causadas pelas atuais políticas neoliberais, predominantes depois da débâcle da URSS. Mais de meio século depois e os dois vienenses continuam em trincheiras opostas.