Tocqueville e o fascínio da democracia
Nascido em Paris no dia 29 de julho de 1805, em meio à aristocracia francesa, Aléxis de Tocqueville, quando decidiu empunhar a pena, não se refugiou em nenhum tipo de nostalgia, lamentando-se da perda de prestígio da sua casta social por obra da Revolução de 1789. Ao contrário, desde que viajou para os Estados Unidos, entre 1831-32, para realizar uma pesquisa sobre o sistema prisional norte-americano, impressionou-se pela eficácia do regime democrático que lá vivenciou por nove meses. Desta experiência na América ele extraiu material suficiente para escrever um dos maiores clássicos da sociologia política moderna: A Democracia na América, surgido em 1835. Livro que o promoveu a posição de ser um dos profetas mais perspicazes dos tempos modernos.
"O povo reina sobre o mundo político americano como Deus sobre o universo. É ele a causa e o fim de todas as coisas, tudo sai do seu seio, e tudo se absorve nele”. A. de Tocqueville – Democracia na América, vol. I, 1835.
Mal desembarcando no cais de Nova York, em 10 maio de 1831, Aléxis de Tocqueville teve que refazer o referencial teórico em que se formara. O que ele e seu colega, o jurista Gustave de Beaumont, viram nos Estados Unidos não constava em nenhuma obra conhecida. Não se tratava da democracia grega, que ele estudara nos clássicos quando aluno do College Royal, em Metz, ou no Liceu de Direito, em Paris, na qual somente uma minoria era cidadã ativa. Naquela nova terra que ele se dispôs a desbravar, um inédito tipo de regime estava em formação, algo até então inexistente nos anais da humanidade.
Chegando na época da presidência do populista Andrew Jackson, por lá parecia que o povo era mesmo o dono das coisas. Todos se julgavam iguais e, por conseguinte, o governo era de todos. Era uma sociedade oposta a européia. Os americanos desconheciam títulos de nobreza, direitos corporativos, guildas, ordens ou privilégios hereditários. Os proprietários tinham seus bens conquistados pelo trabalho e não em razão de um antepassado nobre tê-los legado em testamento. Na América, além da presença do Estado ser ínfima, não havia uma casta de aristocratas nem uma corporação sacerdotal poderosa.
Ainda que os cidadãos fossem extremamente individualistas, ávidos por alcançar o bem-estar, curiosamente o “egoísmo materialista” deles não se traduzia num estorvo para a coletividade. Na hora do aperto eles se ajudavam e se mostravam solidários frente ao perigo comum. Se um vizinho estivesse em precisão, o pessoal ao redor prestava-lhe socorro. E por tudo ser feito às escancaras, por terem liberdades desconhecidas em outros ares, pelas associações políticas serem legais e livres (sendo que a imprensa beirava ao desaforo), nos Estados Unidos não prosperavam as sociedades secretas nem as seitas conspirativas. Exceção feita aos Estados sulistas escravistas, eles viviam numa sociedade aberta.
Aléxis que nascera em Paris, em 29 de julho de 1805, em meio a uma família de sangue azul da Normandia, os Clérel de Tocqueville, (era bisneto de Malesherbes, advogado de Luís XVI), indicado como juiz-adjunto em Versalhes quando tinha apenas 21 anos, fora parar na América a pretexto de estudar o sistema penitenciário norte-americano, tido como o mais avançado da época. A política, todavia, dominou-lhe a atenção. Seguia assim a trilha antes aberta por um outro aristocrata liberal francês, o marquês de Lafayette que, meio século antes, alugando um navio trazendo munições e soldados, viera ajudar o general Washington a lutar contra o domínio britânico e a fundar uma república.
Armado apenas com seus cadernos de anotações e sua inteligência, Tocqueville preencheu centenas de páginas com suas observações e entrevistas feitas ao longo dos nove meses em que percorreu 17 dos Estados e 2 dos territórios norte-americanos (na época eles eram 24, com 13 milhões de habitantes). Padecendo inúmeros perigos ao percorrer um território ainda selvagem, foi de Nova York a Nova Orleans, retornando pelas Carolinas e Virginia até reembarcar são e salvo de volta à Paris, em 3 de fevereiro de 1832.
Tão fascinado ficou com a experiência que se licenciou da magistratura para logo se pôr a redigir aquele que se tornou um dos maiores clássicos da política contemporânea: De la Démocracie in Amérique (“A Democracia na América”, cujo 1º volume apareceu em 1835. Tratou-se do olhar de um iluminista sobre os Estados Unidos e a sociedade norte-americana.
A crítica logo o colocou ao lado do “Espírito das Leis”, celebrando o surgimento de uma nova poderosa cabeça na história do pensamento e da sociologia francesa - “o Montesquieu do século 19”. De fato, “A Democracia...” é um livraço. Não somente pela dimensão (o original tinha mais de mil páginas), mas por tratar de tudo o que se possa imaginar existente numa sociedade. A boa acolhida e os elogios que recebeu – que o conduziram à Academia francesa de Letras - estimulou-o a que ele editasse um segundo volume mais tarde, em 1840.
Além disso, suas previsões em grande parte se confirmaram (tal como a futura e inevitável abolição da escravidão ameaçar dividir o país em duas hostes inimigas ou ainda quando assegurou que, mais tarde ou mais cedo, a América e a Rússia dividiriam o mundo entre si). Quanto aos eventos da época, quando parlamentar e homem público comportou-se como um liberal clássico, opondo-se às massas durante a revolução de 1848 e, em seguida, contra Luís Napoleão quando este, rompendo com a legalidade pelo golpe de estado de 2 de dezembro de 1851, tornou-se príncipe-presidente e depois imperador da França.
Oposto à tirania das massas e à do imperador Napoleão III
Mesmo ao diagnosticarem a gravidade da sua doença (morreu em Cannes de tuberculose em 16 de abril de 1859), ele não deixou de lançar-se num outro desafio intelectual: o criativo ensaio sobre L´Ancien Règime et la Révolution (“O Antigo Regime e a Revolução”), publicado em 1856. Livro que se tornou a inspiração para os historiadores liberais dos eventos de 1789, tal como François Furet ou como Arno Mayer.
Há, sem dúvida, ao longo da suas considerações, um sentimento de pesar. Ao ver a nova sociedade na América, Tocqueville conscientizou-se em definitivo que o tempo da nobreza havia passado, que a sua classe nada mais tinha a dizer ao futuro.“Formamos parte de um mundo que se despede”, escreveu ele à mulher, “... não somos senão que restos de uma sociedade que está se convertendo em pó e que logo não deixará vestígios”.
A França, seduzida pelos “ismos” do século 20, por largo tempo o desconsiderou. Foi preciso que Tocqueville reaparecesse no cenário intelectual parisiense pela lembrança de Raymond Aron (“As etapas do pensamento sociológico”, 1967) que recuperou-lhe as reflexões sobre a democracia como um antídoto ao estado soviético e à presença do marxismo que então atraía as atenções dos bem pensantes franceses.
A falência das ditaduras pelo mundo inteiro fez com que ele, ainda que discretamente, como, aliás, era do seu feitio, começasse a ser entronado como o verdadeiro profeta da nossa época.