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Victor Hugo e a morte da Notre Dame de Paris

17 abr 2019 - 18h06
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Claudio Follio guardião da Catedral de Notre-Dame, ao visitar uma impressora de livros em frente às obras da igreja diz, ao ver um volume pronto:"ceci tuera cela" , ou traduzindo. isto, o livro, vai destruir aquilo lá, a Notre-Dame. Foi uma dito iluminista usado por Victor Hugo ("Nossa Senhora de Paris", romance de 1831).prevendo o fim da influência da igreja e sua substituição pelo conhecimento e pela ciência ( presentes no livro). Mas não precisava exagerar na sua profecia.    

Catedral de Notre-Dame : Albert Lebourg
Catedral de Notre-Dame : Albert Lebourg
Foto: Reprodução

No mês de fevereiro de 2002, a França inteira prestou homenagens ao seu maior poeta: Victor Hugo ( pai ficcional do popularíssimo Quasímodo, o corcunda de Notre-Dame, da cigana Esmeralda e do ex-convicto Jean Valjean, nascido dois séculos antes,, no dia 26 de fevereiro de 1802. Ele teve a merecida sorte de ver-se consagrado em vida, situação que talvez somente Voltaire, outro titã das letras francesas, morto em 1778,  conheceu antes dele. A obra de Hugo é um oceano, abrigando todos os gêneros conhecidos, da poesia ao ensaio cultural, da novela ao panfleto político, do romance ao teatro, nada desconheceu. A produção dele, que se estendeu por 70  anos ininterruptos, até quase a sua morte em 1885, foi impressionante. Dizem que escreveu mais de “ um milhão de versos”, além de engajar-se de corpo e alma nas lutas políticas e ideológicas do século XIX. Victor Hugo, acima de tudo, foi um colosso moderno.

O retorno à pátria

“Dante uma vez fez um Inferno com a poesia, e eu escrevo sobre o Inferno que é a vida real de nossa época.”

Victor Hugo

Viram-no emocionado com a passagem de volta a Paris na mão. No dia 4 de setembro de 1870,  Victor Hugo, o gigante das letras francesas que passara quase vinte anos exilado nas ilhas de Jersey e Guernesey , após ter recebido um telegrama em código, retornava à pátria. Nove anos antes, em 1861,  ele desprezara a anistia que o imperador Napoleão III ( que ele, sarcástico, chamara de Napoleón le petit) oferecera  aos que fizeram-lhe  oposição à época do golpe de 2 de dezembro de 1851. Mas agora Napoleão III , derrotado, sitiado pelos prussianos em Sedan,  no dia 2 de setembro de 1870,    entregara a espada. O Segundo Império se fora e o poeta sentira-se liberto do juramento de só por os pés na pátria quando a liberdade tivesse sido plenamente reconquistada: Quand la liberté rentrera, je rentrerai!

O César das letras francesas

No dia seguinte,  5 de setembro,  uma multidão o aguardava na estação Gare du Nord, a que acolhia os trens que vinham da Bélgica. Foi uma loucura. O carro aberto em que ele estava foi imediatamente cercado. Eufórico, o povo gritava “Viva a República!”, “ Viva Victor Hugo!”. Em minutos desatrelaram os cavalos e centenas de mãos uniram-se para levar o coche dele a diante. Em pé, emocionado, ele abanava para os transeuntes. Caído o imperador em Sedan, o César das letras francesas recebia os louros nas ruas de Paris. Morto o rei, viva o rei! A sua aparência, mesmo aos 69 anos,   impressionava. Victor Hugo era um homem vigoroso, de apetites  sensuais e gastronômicos impressionantes. O cabelo e a barba totalmente brancos ressaltavam-lhe ainda mais o olhar e o fronte inteligente. Naquela jornada apoteótica, estimam, ele apertou umas seis mil mãos. Dias depois arrumaram-lhe um escritório nas Tulherias, onde ele, como se fora um deus Olimpo vindo do exílio, recebia as homenagens de Paris inteira. Tratavam-no de père Hugo, pai Hugo!

O clima porém não era bom. A França rendera-se. Oitocentos mil alemães, comandados por von Molke,  marchavam para Paris. O governo provisório nas mãos do Comitê de Defesa Nacional, tendo León Gambetta à frente, tentava detê-los. Mas com quem? Paris, por sua vez, agitava-se. O que se ouvia pelas ruas era de que a cidade não iria capitular. A Guarda Nacional, a milícia civil,  estava disposta a dar armas ao povo. Victor Hugo, eleito para a assembléia nacional,  não demorou a renunciar porque não podia por sua assinatura  junto a de Thiers, o ministro provisório que ajustara um tratado de submissão. Entrementes morre-lhe Charles, o filho mais velho. Exausto, Victor Hugo retira-se para Bruxelas. Então deu-se a catástrofe. As tropas do governo de Versalhes, nas mãos de Thiers, receberam ordens no dia 18 de março de 1871 de  entrar em Paris e desarmar a multidão. Foi mexer num vespeiro. 

A Comuna de Paris

Proclamação da Comuna de Paris, 21 de março de 1871
Proclamação da Comuna de Paris, 21 de março de 1871
Foto: Reprodução

Durante 73 dias a cidade sitiada, dominada pela Comuna mobilizada para a guerra, enfrentou o exército. Brigadas de operários e suas mulheres, as petroleuses, numa resistência desesperada,  deslocavam-se pelas avenidas e ruas incendiando os prédios públicos. Num repente, os miseráveis, que Victor Hugo imortalizara no seu gigantesco romance (Les misèrables, 3 volumes com 2.800 páginas, que, desde 1862 , vendera sete milhões de exemplares!), rebelados, tentavam “ tomar o céu de assalto”. Milhares de Jeans Valjeans, na companhia das Fantines e das pequenas Cosettes, assistidas pelo moleque Gavroche, um minúsculo herói das barricadas -  personagens da grande epopéia literária do proletariado francês - , haviam ocupado as ruas de Paris preparando-se para o embate final.    O poeta, ainda na Bélgica, impotente,  deprimiu-se. Logo ele que tanto apostara nos Estados Unidos da Europa. Não só alemães lutaram contra franceses, como esses, agora,  brigavam entre si.

Brutal repressão

Casal burguês faz mofa do communard morto
Casal burguês faz mofa do communard morto
Foto: Reprodução

Acampados nos arredores da capital, estupefatos, os soldados prussianos viam o abrasar dos casarões e dos palácios ao som surdo das canhonadas e dos gritos de horror dos fuzilados. A repressão do exército francês foi brutal. Do dia 22 ao 28 de maio, a matança começada em Montmarte, tão acertadamente chamado de o Monte dos Mártires,  e encerrando-se no muro dos federados do cemitério père Lachaise, fizera com que   30 mil corpos de trabalhadores fossem trespassados pelas balas dos subordinados do general Mac-Mahon. Nesse holocausto feito em nome da ordem social,  juntaram-se às tropas e aos burgueses, levas de tipos criminosos que saíram dos bueiros para virem apedrejar e mofar dos caídos. Em Bruxelas,  Victor Hugo agiu para que acolhessem os desgraçados que sobreviveram aos massacres e aos desterros, do que ele chamou de L´année terrible. As autoridades locais, ignorando seus apelos por tolerância para com os communards,  fizeram com que ele fugisse  para o pequeno Luxemburgo. Clemência que ele continuou reclamando quando do seu retorno á França e indicado para a Câmara Alta, em 1873.

Glória  imorredoura

Por estas e outras é que 700 mil pessoas desfilaram em frente a sua residência na avenida Eylau ( hoje Victor Hugo) quando ele completou 79 anos. em 26 de fevereiro de 1881. Nem Napoleão I vira tanta gente assim do seu palanque. A sua casa tornou-se local de romaria de gente do mundo inteiro. Até um poema sobre o Brasil ele compôs para o Imperador D.Pedro II. 

Nada, em matéria de multidão, equiparou-se ao seu enterro quando, no dia 31 de maio de 1885 ( ele falecera no dia 22),  partindo do Arco do Triunfo  onde seu modesto ataúde estava exposto,  um milhão de franceses se irmanaram pelos Campos Elísios para levar o féretro de Père Hugo até o Panteão. 

Nos seus 70 anos de atividade ele fizera de tudo: foi par da França, membro da Academia de Letras, deputado, exilado político, militante anti-bonapartista, integrante do senado e o escritor mais famoso e mais popular das letras francesas em todos os tempos. Além de célebre defensor da abolição da pena capital e emérito ativista das causas populares. Dizem que no delírio que antecedeu a morte, ele gritou “ esta é a luta entre o dia e a noite”. Pode ter sido a chegada da noite para ele, mas para a França, que agora celebra o bicentenário do nascimento do seu maior poeta, ocorrido em Besançon em 26 de fevereiro de 1802,  Victor Hugo vai ser sempre a luz do dia.       

A exaltação ao poder do espírito

L'histoire véridique, l'histoire vraie, l'histoire définitive, [...]

tiendra moins compte des grands coups de sabre que des grands coups d'idée. (...)

Pythagore sera un plus grand événement que Sésostris. (...) étant donnée, comme résultante,

l'augmentation de l'esprit humain, Dante importe plus que Charlemagne,

et Shakespeare importe plus que Charles-Quint.

Victor Hugo, William Shakespeare, 1864.

(A história verídica, a verdadeira história, a história definitiva, dará menos importância aos grandes golpes da espada do que aos grandes lances das idéias. Pitágoras será um acontecimento mais importante do que Sesóstres. ... tendo como resultante o aumento do espírito humano, Dante importa mais do que Carlos Magno, e Shakespeare importa mais do Carlos Quinto).

Victor Hugo, William Shakespeare, 1864. 

Fonte: Especial para Terra
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