'Mais do que verba para a ciência, temos que devolver alma para o Brasil', diz ex-ministro da Educação
Em entrevista ao Terra, Renato Janine Ribeiro faz uma análise política sobre a retomada de investimentos à ciência frente a anos de cortes
Para recompor os últimos anos de cortes na pesquisa, assim como superar narrativas negacionistas, o ex-ministro da Educação e atual presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Renato Janine Ribeiro, acredita que além de devolver a verba à ciência, é preciso que o Brasil retome sua alma.
Em entrevista exclusiva ao Terra, o político, acadêmico e doutor em Filosofia - entre outras atribuições - tece análises sobre os erros e acertos dos últimos dez anos com relação ao fomento à ciência, comenta sobre uma retomada de diálogo entre a comunidade científica e o governo brasileiro, bem como reflete sobre próximos passos.
Com um olhar de que sem ciência não há futuro, Renato Janine Ribeiro avalia que, agora, é preciso dar foco às áreas que deem mais resultados positivos, que aumentem a renda da população e que proporcione vidas mais dignas.
"A prioridade tem que ser isso. [Pensar] de que maneira nós podemos fazer não só a economia se recuperar, mas dar um salto para frente. Isso passa muito pela preservação do meio ambiente, mas passa, antes de mais nada, pelo respeito ao ser humano", pontua.
Leia a entrevista completa a seguir.
Terra: Qual é a atuação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência [SBPC]. O que vocês defendem?
Ribeiro: A SBPC é a maior entidade científica da América Latina. Ela é o que nós chamamos o braço político, não partidário, das sociedades científicas brasileiras. Nós temos cerca de 170 sociedades científicas afiliadas à SBPC e defendemos os interesses comuns à ciência. Ou seja, como a ciência pode ocupar o espaço que lhe é devido na sociedade.
A gente luta por mais investimentos, por verbas mais significativas para a ciência, não para o bem do cientista. Mas porque sabemos que a ciência traz resultados muito positivos para a sociedade como um todo. Sem ciência hoje você não tem futuro. A ciência traz elementos importantes para melhorar a vida das pessoas.
A SBPC é uma entidade de direito privado, ela não pertence ao governo, ela não tem verbas, não financia pesquisas. O que nós fazemos com CNPq, Capes, FINEP? A gente discute com eles, leva os pleitos da comunidade científica bem elaborados, sempre deixando claro que nós somos tão pouco um sindicato. Nós trabalhamos juntos e também questionamos quando achamos que alguma coisa está errada. Com esse governo, temos uma visão bastante positiva, porque ele se construiu por uma aliança contra o negacionismo do governo anterior.
Achamos muito positivo o reajuste das bolsas da Capes e CNPq, mas achamos que deveria ter sido maior, que não chegou a cobrir todo o corte, em termos reais, que ocorreu de 2013 até 2023. Nós sabemos também da dificuldade de dinheiro. Mas colocamos as questões que tem que ser colocadas, negociamos e conversamos
Atualização de valores
• Mestrado: de R$ 1.500 para R$ 2.100 (40%)
• Doutorado: de R$ 2.200 para R$ 3.100 (40%)
• Pós-Doutorado: de R$ 4.100 para R$ 5.200 (27%)
Terra: Sobre essa questão do reajuste das bolsas, qual seria o valor ideal? Há alguma estimativa?
Ribeiro: Na maior parte dos casos o reajuste foi de 40% nas bolsas. Já os cálculos feitos pelas associações de bolsistas e de estudantes de pós-graduação apontavam [como aumento ideal] 70%. Penso que essa seria, basicamente, a inflação do período de 10 anos. Então uns 21% acima desse valor já ajustado é o que nós entendemos que ainda falta.
Há um compromisso assumido pelo professor Galvão [Ricardo Galvão, presidente do CNPq] de, a partir do ano que vem, reajustar o valor das bolsas pela inflação. Nós achamos muito bom. Mas nós não queremos que esse corte que sofremos no último ano seja esquecido. Esse valor que ainda está aquém do de 10 anos atrás é importante. É importante ter esse olhar de que não é uma questão de generosidade, é uma questão de justiça.
Nós queremos pessoas que estejam em um trabalho digno, que se sintam remuneradas dignamente pelo seu trabalho. Pessoas que possam trabalhar sem ter que colocar dinheiro do bolso na pesquisa. Porque isso acaba sempre acontecendo.
Terra: No momento, quais são outras demandas que a comunidade científica tem reivindicado como emergenciais e que ainda não foram efetivadas?
Ribeiro: Não saberia listas especificamente quais. Mas, veja, nós temos antes que mais nada recompor recursos de pesquisa que foram absolutamente cortados. Você tem laboratórios, bibliotecas que ficaram à míngua. Então esses valores têm que ser repostos de uma forma emergencial.
Segundo ponto. O governo passado, com o corte de bolsas, tanto do valor das bolsas quanto do número de bolsas, deixou muitos talentos fora do mundo da pesquisa. Talentos, pessoas formadas, pessoas que poderiam estar fazendo um bom doutorado, poderiam depois de ter feito o doutorado estarem empregada.
Nós queremos que toda essa matéria cinzenta, todo esse poder do cérebro que está sendo pouco utilizado, seja realmente utilizado e acolhido pelo governo. Precisamos também que os brasileiros que foram para fora por falta de condições de trabalho aqui, tenham a possibilidade de voltar.
Terra: O ano com maior orçamento da Capes foi em 2017, chegando aos R$ 7 bilhões. O destaque foi o investimento para o Ciências sem Fronteiras, que agora não existe mais. Queria saber se, para você, a amplitude do programa atrai mais investimentos para a educação e ciência? Avalia que um projeto como esse pode voltar a existir?
Ribeiro: Eu fui ministro da Educação bem no final do Ciência sem Fronteiras, em 2015 [durante o governo de Dilma Rousseff]. Fico contente com esse dado, de o topo do financiamento da Capes, que é subordinada ao MEC, ter sido no ano em que eu estava posto.
O Ciência sem Fronteiras foi uma bela ideia porque era a ideia de você pegar os jovens e dar a eles uma formação de ponta, mandar pros melhores centros do Mundo para terminar a graduação, muitas vezes para fazer mestrado, doutorado… Foi feito uma coisa que é muito respeitada hoje na ciência, a internacionalização. A presidente Dilma achou também que era importante focar nas áreas que poderiam aumentar o PIB [Produto Interno Bruto].
O Ciência sem Fronteiras foi uma boa maneira de investir dinheiro em um momento em que nós tínhamos recursos. Hoje não temos. Se você tem dinheiro em caixa, não faz sentido você manter na caixa o dinheiro. Você tem que usar no que produz mais resultados, ciência é uma dessas coisas.
Mas eu penso que hoje nós temos que utilizar recursos desse dessa ordem, antes de mais nada, para recompor o sistema brasileiro de educação e pesquisa. E para ver como ele pode realmente atingir essas metas que estão inclusive na constituição. Uma sociedade próspera, justa e solidária. Isso significa erradicar não só a miséria, mas a pobreza; respeitar o meio ambiente; utilizar as nossas riquezas ambientais, mas também culturais, para o Brasil ficar melhor.
Terra: Com relação a essa recomposição, qual você acredita ser o foco do momento? Em entrevista ao Terra, por exemplo, o presidente do CNPq apontou a reestruturação dos laboratórios. Já para a Capes o intuito é fomentar as bolsas. Já no caso da SBPC, qual é o direcionamento que vocês avaliam como principal, no momento?
Ribeiro: Quando eu concorri à presidência da SBPC, há dois anos, eu insisti muito que nós tínhamos, por um lado, que lutar para defender a ciência que estava sob séria ameaça naquele governo. Mas não podíamos só ficar na defensiva, tínhamos também que ser propositivos. Eu creio que as duas metas que você falou das agências são muito importantes e que as duas representam o resgate do que foi destruído. Mas eu iria além.
Eu acho que além do resgate do que foi destruído nós temos que ver quais são as áreas em que a gente traz mais resultados positivos. Que áreas permitem, por exemplo, aumentar a renda dos cidadãos pobres brasileiros para que eles possam superar a fome, superar a miséria, ter vidas mais dignas. Então, quais são as pesquisas que a gente pode fazer no âmbito da ciência exata, biológica e humana que possam trazer como resultados uma vida melhor.
Terra: E essa questão da agenda ambiental e climática, que inclusive tem sido uma das bandeiras do governo Lula, você avalia que a comunidade está encarando como uma prioridade? Ou ainda é algo que precisa ser melhor alinhado?
Ribeiro: Está sendo encarada como prioridade. Eu acho que dez anos atrás o próprio governo não dava tanta prioridade a isso. Tanto que, no passado, a então senadora Marina Silva deixou o governo Lula por uma discordância sobre a priorização da questão ambiental - que também foi um ponto de conflito entre ela e a presidente Dilma.
Agora, hoje, está claro que não dá pra ser de outro jeito. Mundialmente isso ficou muito claro e, no Brasil, a triste experiência do governo Bolsonaro no ataque às florestas amazônicas também deixou claro que nós não podemos ficar sem isso. Na comunidade científica há praticamente um consenso dessa importância.
Terra: Refletindo sobre esses últimos dez anos, quais são suas considerações sobre erros e acertos? O que precisa ser feito?
Ribeiro: Eu fui ministro numa fase muito difícil. Seis meses durante o ano de 2015. A Dilma tinha sido reeleita e imediatamente depois de reeleita, ela mudou a política econômica, portanto a política social, e isso descontentou uma parte da base dela. Ao mesmo tempo, o candidato derrotado começou a namorar a extrema-direita para dar um golpe, conseguiu tirar a presidente do cargo e isso trouxe o estrago todo que a gente viu. Foi uma avalanche montanha abaixo.
Recebemos um país agora com muitas coisas destroçadas. Está com a economia em péssimas condições e está com a alma seriamente machucada. Eu acho que devemos pensar nisso. O que é a alma de um país? A alma de um país é um sentimento de pertencer, é o pertencimento. Nós somos brasileiros, somos todos seres humanos, fazemos parte do mesmo mundo.
Mas quando você tem um país colocado um contra outro, quando você tem um governo que promete ser o governo do ódio - como foi o governo passado -, é muito. Você não tem o futuro numa situação dessas. O Brasil precisa de uma cura muito grande agora. E essa cura não passa necessariamente por ficar acusando um ou outro. O que passou tem que ser considerado o passado. Mas para crimes, como os crimes contra a democracia de 8 de janeiro, como outros, não tem que haver anistia, tem que haver um tratamento sério e rigoroso disso tudo.
E ao mesmo tempo nós temos que preparar o país para voltar a ter diálogo. Quando você tem uma parte da população que acredita que a Terra é plana, que vacinas fazem mal, que acreditam na mentira, fica muito difícil dialogar. Para eu dialogar com você é preciso ter um consenso sobre fatos. Nós podemos discordar da interpretação dos fatos. Mas os fatos, eu e você temos de concordar. Não é uma questão de opinião. Então é isso que a gente tem que recompor.
A gente tem muito mais do que, digamos, devolver verba pra ciência, a gente tem que devolver alma para o Brasil.
Terra: E qual você acredita ser o caminho para que essa situação melhore? Existem pessoas negacionistas. Qual foi a "falha" que fez com que os fatos, o caminho científico não fossem encarados como a verdade?
Ribeiro: Eu não sei te dizer uma, definitivamente. Mas eu diria, antes de mais nada, que mais do que uma falha da educação, foi uma habilidade dos negacionistas. Os negacionistas usaram as paixões das pessoas das maneiras mais negativas possíveis para disseminar a dúvida, o ódio.
Como a gente pode virar o jogo? Eu acho que antes de mais nada mostrando como a ciência, como a verdade, produz efeitos positivos na vida das pessoas. [...] Eu penso que se a gente pegar pelos resultados, pelos benefícios na vida cotidiana que a ciência proporciona, a gente consegue ajudar a retomar essa confiança. Confiança que, na verdade, que está seriamente prejudicada pela campanha de mentiras dos últimos anos.
Terra: E essa recomposição deve levar quanto tempo?
Ribeiro: Não sei. Não sei porque a gente vê que a mentira continua muito forte, viu? E também porque a aliança que tirou o Bolsonaro do poder foi uma aliança de gente muito semelhante entre si, que quer coisas diferentes, e está sendo difícil juntar tudo isso.
A esquerda tem mais votos do que essa direita que foi apoiar o Lula. Mas de qualquer forma todos votos foram necessários para a gente tirar a barbárie do poder. Então tá difícil, tá precisando muita habilidade pra conseguir equilibrar tudo isso, é quase um jogo de equilibrista, é muito difícil.
Terra: Mas no geral, como presidente da SBPC, você considera que esse é um ano de retomada do diálogo da comunidade científica com o governo? Vocês se sentem mais ouvidos agora? Quais são as expectativas?
Ribeiro: São positivas. Nós realmente temos agora interlocutores, nós somos escutados, disputamos esse lugar de escuta com muitas demandas represadas. Como o estrago foi muito grande, tem muita gente se queixando dos problemas que houve, das coisas que aconteceram e que precisam ser recompostas. Se nós não fizermos isto, o Brasil vai continuar para trás. Nós temos encontrado ouvidos. Ouvidos atentos. Isso é muito bom.