O que é o 'imposto do pecado' e o que fica mais caro se ele for aprovado
Acusado de interferir na autonomia dos indivíduos e incentivar mercado ilegal, o imposto previsto na reforma tributária vem causando polêmica
Há mais de 40 anos se discute no Brasil a chamada reforma tributária - e, em dezembro de 2023, ela enfim foi aprovada. Os principais objetivos por trás da mudança são a simplificação do sistema tributário, assim como uma melhor redistribuição dos encargos. A ideia é que a renda do indivíduo e quantidade de impostos que ele paga sejam mais equivalentes. Outra novidade, no entanto, tem causado polêmica: é a implementação do Imposto Seletivo Federal (IS), que ficou mais conhecido como " imposto do pecado".
Se, logo de cara, você já imaginou algum tipo de imposto relacionado aos dogmas religiosos, calma que não é bem por aí. O Imposto Seletivo Federal, como o próprio nome indica, seria um novo tipo de imposto cobrado em uma seleção determinada de itens. Mais especificamente, produtos que são prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. Entre os produtos, estariam bebidas alcoólicas, derivados de tabaco, refrigerantes açucarados, alimentos ultraprocessados, produtos com agrotóxicos e combustíveis fósseis.
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"É uma medida de intervenção do Estado", afirma Ana Laura Pereira Barbosa, professora de Direito da ESPM. "Ele exerce uma função extrafiscal na qual justamente tenta criar incentivos ou desincentivos para o comportamento dos indivíduos a partir da tributação."
Atualmente, a tática já é implementada em outros países, sendo os Estados Unidos o principal precursor. Por lá, o "sin tax" ("imposto do pecado", em inglês) não é novidade: a prática já havia sido usada diversas vezes no passado sob outro nome, imposto especial de consumo. Hoje é utilizada como taxa não somente em itens nocivos à saúde, como também em práticas de apostas, drogas (legalizadas), loterias e armas de fogo.
Aqui no Brasil, a expectativa é que a reforma tributária, assim como o novo Imposto Seletivo, seja regulamentada ainda em 2024, com expectativa de entrar em vigor oficialmente em 2027. Neste texto, o GUIA DO ESTUDANTE te explica o que é o imposto do pecado, as motivações por trás da legislação e de que maneira ele pretende funcionar no Brasil.
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Imposto do pecado?
Para entender como funciona a tributação de um país, vamos recorrer a uma analogia bem simplista, mas que ajuda a visualizar o cenário. Podemos enxergar o Estado como um amigo que está organizando um churrasco. Imagine que os principais serviços do país (hospitais, escolas, investimento em segurança, entre outros) sejam como os itens essenciais para a festa: carne, carvão, bebidas, farofa, pão etc. Uma maneira de comprar todos os produtos é propondo uma vaquinha com todos os convidados. E quem cobra o valor de cada um e, assim, compra os produtos e faz a festa acontecer? O amigo organizador!
Ou seja, é do governo a responsabilidade de coletar impostos da população e reverter o dinheiro em mantimentos para os setores públicos - que serão depois usufruídos por todos. Os impostos são coletados de inúmeras formas: além das cobranças diretas (como o IPTU e o IPVA), estão diluídos nos preços finais de todo e qualquer item comprado pela população - basta dar uma olhada em qualquer nota fiscal. E é aqui que começa a discussão envolvendo o imposto do pecado.
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Entre os impostos cobrados em itens de consumo - que vão desde um isqueiro até um computador -, há o entendimento de que alguns produtos são mais essenciais para a sobrevivência do que outros. No atual sistema tributário, o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), previsto na Constituição de 1988, não é aplicado em alimentos ou medicamentos, por exemplo. Em contrapartida, é aplicado a 330% no valor de um cigarro.
Na reforma tributária, o novo Imposto Seletivo Federal aparece como um substituto de parte do IPI. A fama de "imposto do pecado" vem justamente da adição dessa nova calibragem na seleção dos itens, que irá julgar um produto para além da sua essencialidade, mas considerando também o seu caráter nocivo à saúde humana e/ou ao meio ambiente.
Uma das justificativas do texto seria o próprio custo que o consumo desses itens provoca no setor de saúde. "Há implicações para coletividade, ao passo que o sistema de saúde público e privado vai ter que lidar com as consequências do uso desses itens, demandando mais recursos, leitos e força médica", explica a professora de Direito. A nova taxa, portanto, seria também compensatória.
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Dois coelhos com uma cajadada
Assim, como medida em prol da saúde, a nova proposta soluciona dois problemas em uma única tacada. Ao mesmo tempo que desencoraja o consumo pela população, aumenta a alíquota que recairá sobre o produto. Por fim, torna maior o valor coletado pelo Governo Federal, que, teoricamente, pode ser revertido em investimentos no setor da saúde.
No papel, a proposta é ideal, promovendo ganhos dos dois lados. Aumentar a carga tributária acarreta diretamente no aumento do preço final. O que, consequentemente, afasta uma boa quantidade de consumidores, e diminui o consumo de itens nocivos à saúde. Será mesmo?
Se tratando dos itens maléficos à saúde, a maioria é associada a algum tipo de vício ou dependência. Vejamos o cigarro, o álcool e os alimentos ultraprocessados, por exemplo: todos são famosos por proporcionar uma sensação de bem-estar ao cérebro. Característica esta que facilmente induz ao vício, o que torna a discussão ainda mais complexa e paralela à crise narcótica enfrentada pela sociedade.
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Sendo assim, uma das principais críticas a essa nova calibragem é a possibilidade do aumento da carga tributária não diminuir o consumo da população, mas sim incentivar meios ilegais de compra. "Há a hipótese do fortalecimento de um mercado paralelo de produtos que são lícitos, mas que apesar de serem lícitos, são mais caros no mercado oficial", diz a professora. Basta pensar nos famosos "cigarros do Paraguai", versões falsificadas de marcas famosas vendidas clandestinamente.
Outro argumento seria o próprio cenário atual. As cargas tributárias de bebidas alcoólicas e cigarros já são conhecidas por serem altas. De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), a média do valor pago em impostos ao comprar cervejas e vinhos nacionais é de 43% do valor total. Ainda assim, o país enfrenta uma verdadeira onda no crescimento do consumo abusivo de álcool.
"Há a discussão a respeito desse tributo que tem relação a questão moral, se faz sentido esse tipo de interferência na autonomia dos indivíduos", afirma. A discussão, dessa forma, envolveria a autonomia e a dignidade do indivíduo, e o papel do Estado na seletividade desses itens.
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Impasses
Inicialmente, armas e munições também entrariam na mira do imposto do pecado, mas a proposta foi barrada pela Câmara dos Deputados. Outras alterações também devem acontecer no texto, que passa agora pelo Senado, uma vez que inclui a tributação de itens como gasolina, gás de cozinha e óleo diesel. Tudo indica que, pela complexidade e sensibilidade do tema, os casos deverão ser tratados individualmente.
Segundo nota do Ministério da Fazenda, os setores possivelmente afetados pela proposta terão a oportunidade de esclarecer suas particularidades e fazer adequações. Em países com a legislação ativa, observa-se que algumas indústrias promoveram a reformulação de receitas para escapar do tributo, diminuindo a quantidade de açúcar, por exemplo.
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Para completar, especialistas do tema entram em consenso quando afirmam que a proposta pode ter uma resposta diferente no Brasil, se tratando de um país com tantas desigualdades. Aumentar o preço de um pacote de salgadinho não implicaria automaticamente na compra de um cacho de bananas, por exemplo. Assim, caso aprovado, a legislação precisaria vir acompanhada de outras políticas públicas para alcançar a sua eficácia desejada.
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