De qual professor a escola precisa na era digital?
Formar docentes para o uso da tecnologia deve ser parte de uma ampla estratégia nacional, em colaboração com as redes de ensino
Passado mais de um semestre de novos governos, tanto no nível federal quanto nos estados, uma série de políticas e estratégias relevantes vem sendo discutidas para o avanço da qualidade e equidade na educação pública. Tivemos o lançamento de políticas nos campos da alfabetização, ensino integral e educação profissional e tecnológica, além de expectativas com a área de tecnologia. Para que, de fato, evoluam e se reflitam em melhoria da aprendizagem, todas essas áreas têm em comum a importância de garantir que os professores estejam preparados e tenham as condições adequadas para colocá-las em prática em todas as etapas.
Diversas pesquisas apontam que a qualidade de um sistema educacional não será superior à qualidade de seus professores, seja estudando os achados do professor Hanushek, de Stanford, seja entendendo relatórios globais da McKinsey ou ensinamentos de Paulo Freire. No entanto, ao passo que a essência da centralidade do professor não muda, a função do profissional requerida hoje pela sociedade é muito diferente do que necessitávamos antes.
Vivemos em uma sociedade digital, em constante e rápida transformação. Com os avanços da Inteligência Artificial, as definições do papel e das aspirações dos seres humanos mudarão, como descrito em um livro recente chamado “A era da IA e o nosso futuro como seres humanos”, de Eric Schmidt, Daniel Huttenlocher e Henry Kissinger. Tudo indica que essas mudanças serão cada vez mais velozes, disruptivas e menos previsíveis. Isso acontece ao mesmo tempo em que ainda existe uma enorme desigualdade social e econômica no Brasil e no mundo. É nesse ambiente tão complexo quanto repleto de oportunidades que educaremos as nossas crianças e jovens.
Diante da incorporação urgente do ensino remoto pela pandemia de covid-19, os docentes se reinventaram e foram capazes, onde havia infraestrutura, de utilizar a tecnologia principalmente para manter o vínculo dos alunos com a escola. Também vimos que passaram a enxergá-la como uma aliada, como mostram levantamentos realizados pelo Instituto Península e pela Nova Escola ao longo daquele período.
No entanto, experimentamos, na maior parte, a digitalização de processos de ensino analógicos, mas não a inserção qualificada da tecnologia, com todas as suas possibilidades. O período emergencial tornou evidente o quanto a conexão por si só é insuficiente para explorarmos o seu potencial em sala de aula. Sem a devida capacitação digital de estudantes e educadores, é possível criar até mesmo uma resistência ao uso das ferramentas, o que limita os recursos pedagógicos e dificulta ainda mais o exercício da cidadania.
O relatório Diagnóstico do Nível de Adoção de Tecnologia nas Escolas Públicas Brasileiras (2022), realizado pelo Centro de Inovação para a Educação Brasileira (Cieb), a partir do Guia Edutec e participação de docentes de 104 mil escolas, mostrou que, em uma escala de letramento digital para fins pedagógicos – considerando 5 o nível mais alto e 1 o mais baixo –, os professores consultados se identificam com o nível 2, mesmo após a pandemia.
Isso significa que, apesar de identificarem a relevância dos recursos digitais como suporte ao ensino, os docentes ainda estão em um estágio inicial de conhecimento, acesso e aplicação das tecnologias para seu desenvolvimento profissional, para inovações nas práticas pedagógicas, bem como na abordagem de temas sobre cidadania digital com seus alunos.
Evidentemente, a precariedade da infraestrutura tecnológica nas escolas e a baixa implementação do ensino sobre tecnologia e computação nos currículos no Ensino Fundamental, na contramão das diretrizes da Base Nacional Comum Curricular, são fatores que pesam nesse contexto. Contudo, na minha visão, o maior desafio passa pela formação e apoio aos educadores, para que consigam fazer um uso intencional e envolver os alunos na aprendizagem, extraindo tudo de mais vigoroso que as ferramentas digitais têm a oferecer.
O investimento em formações específicas para os professores da rede pública foi, inclusive, apontado como ação prioritária pela pesquisa Tecnologias Digitais nas escolas municipais do Brasil: cenário e recomendações, feita em parceria entre a Fundação Telefônica Vivo, o Cieb e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). Também foi pauta central nas discussões do Global Education Monitoring Report, da Unesco, realizado no Uruguai, com a presença de ministros de estado, especialistas e educadores do mundo todo.
Formar docentes para o uso da tecnologia deve ser parte de uma ampla estratégia nacional, em colaboração com as redes de ensino de todo o país. Além disso, é importante passar pela complexa discussão sobre uma reformulação da formação inicial que articule teoria e prática, considerando também o contexto de digitalização pelo qual passamos. Um plano nacional à dimensão humana de ressignificação da formação dos professores para um novo contexto, certamente, terá um impacto muito maior com o potencial que a transformação digital pode aportar na vida dos alunos brasileiros.