Script = https://s1.trrsf.com/update-1731943257/fe/zaz-ui-t360/_js/transition.min.js
PUBLICIDADE

Pressão por inclusão faz escolas de elite buscarem alunos e professores negros

Diante da demanda dos pais pela pauta antirracista, colégios particulares de São Paulo reformam currículos, formam docentes e incluem novos autores e pesquisadores não brancos

21 ago 2021 - 19h02
(atualizado em 22/9/2021 às 13h21)
Compartilhar
Exibir comentários

A demanda dos pais por uma educação antirracista pode levar a uma das maiores mudanças na história recente das escolas particulares de elite de São Paulo. Já há reformulação de currículos, não só na forma como se fala dos negros e indígenas na aula de História, mas com novos autores e pesquisadores não brancos. Elas também passaram a dar preferência para contratar professores negros - superando a ideia de que eles são sempre o porteiro ou a faxineira. E ainda abriram bolsas para alunos negros e indígenas, com mensalidade, material, transporte e passeios pagos pela escola e pelas famílias, com doações que chegam a R$ 4 milhões.

Projetos parecidos surgiram em 2020 e 2021 em colégios como Santa Cruz, Vera Cruz, Oswald de Andrade, Escola da Vila, Gracinha, Equipe, entre outros. O caminho para a mudança não é fácil e causa questionamentos pessoais e institucionais, admitem diretores e professores ouvidos pela reportagem. Eles falam da deficiência na própria formação, baseada também em currículos eurocêntricos e brancos. E ainda existe a dificuldade em lidar com situações de racismo, considerado muitas vezes um tabu, ou com dúvidas das crianças sobre raça e cor.

Para ajudar no chamado letramento racial, as escolas procuraram assessorias que analisam materiais, abordagem dos docentes e falam da importância de se cuidar também da relação entre negros e brancos no ambiente escolar. "Não é pra trazê-los para 'o mundo encantado do Alto de Pinheiros', e, sim, criar um novo lugar", diz a advogada Roberta di Ricco Loria, mãe de três filhos na Escola Vera Cruz e diretora da associação criada pelos pais, o Projeto Travessias. "O racismo é complexo. Se não houver sensibilização de toda a comunidade escolar, não funciona."

Em 2020, o Vera Cruz recebeu 18 alunos negros ou indígenas no último ano da educação infantil - são três bolsistas por sala. A mensalidade é dividida entre a escola e a associação de pais, que já arrecadou R$ 4 milhões. A intenção é garantir 18 bolsistas anualmente e que todos possam ficar até o fim do ensino médio na escola.

Uma delas é Fernanda, de 6 anos, filha da massagista Norma Oliveira da Luz. Entre os requisitos do processo seletivo, que já está aberto para 2022, estão raça, renda e morar, no máximo, a 12 quilômetros da escola. No ano passado, a direção entrevistou cerca de 50 famílias das 270 que se inscreveram. Segundo Regina Scarpa, diretora da escola, a ideia era encontrar famílias "que estavam dispostas a entrar nesse desafio junto com a gente".

Norma fala da alegria quando soube que a filha, que estudava numa escola pública, tinha conseguido a vaga. Ela veio do interior da Bahia com o pai e boa parte dos 21 irmãos, já foi babá, empregada doméstica e hoje sustenta Fernanda sozinha. "Eu não pude, mas minha filha vai poder sonhar."

A pressão das famílias por uma educação antirracista ganhou força no ano passado depois do assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos. Em meio à pandemia, surgiram grupos no WhatsApp para discutir a inclusão nas escolas. Alguns pais e mães formaram a Liga Interescolas por Equidade Racial, que intermediou o acesso dos colégios a especialistas.

A inclusão de negros na educação havia ganhado força no País em 2012, quando foi aprovada a lei de cotas, que estabelece reserva de vagas nas universidades federais para jovens pobres, com recortes por raça. A Universidade de São Paulo (USP) também adotou ações afirmativas recentemente, amparada em estudos sobre o bom desempenho de cotistas. Antes disso, em 2003, uma lei determinou que os currículos das escolas incluíssem a história e a cultura afro-brasileira, mas pouco foi feito na rede privada.

"Não tem mais como a gente não reconhecer o racismo estrutural e não contribuir para eliminá-lo. A escola é uma instituição importante porque participa da educação da sociedade", diz a diretora pedagógica do Colégio Santa Cruz, Débora Vaz. A escola contratou professores negros, está mexendo no currículo e anuncia, em um evento na segunda-feira, bolsas para negros e indígenas para 2022. Serão 12 vagas para não pagantes e 10 para pagantes, um lugar de honra no concorrido processo seletivo do Santa Cruz.

Mirian Ferreira dos Santos, de 27 anos, foi contratada este ano como professora assistente na escola. Nas séries iniciais do fundamental, onde dá aulas, é a única negra. Certa vez, ela substituiu uma outra professora numa sala onde há uma aluna negra. "Eu vi a diferença no olhar dela, o sorriso, ela me viu como uma profissional que estava em um lugar de reconhecimento e se parecia com ela."

Currículo

Em vez de apresentar o negro pela primeira vez na escola como o escravo, falar de Martin Luther King - esse é um exemplo de educação antirracista. Ou aprender sobre os povos indígenas antes de falar sobre a chegada dos portugueses ao Brasil. E não ter apenas bonecas brancas na educação infantil. "O currículo às vezes é muito engessado e conteudista. Os professores têm dificuldade na literatura, usam só os cânones em seus planos de aula", diz Suelem Lima Benício, consultora de educação em relações étnico raciais do Colégio Oswald de Andrade.

Ela fez formação dos professores e dos funcionários administrativos e analisou o projeto pedagógico. "Se queremos formar jovens transformadores, a escola precisa estar incomodada e se mexer", diz a diretora pedagógica do Oswald, Andrea Andreucci. O cientista político Cássio França, pai de duas filhas na escola e membro do grupo antirracista, diz que o colégio "já é outro". A leitura de férias da filha adolescente incluiu O quarto do despejo, de Carolina Maria de Jesus, o diário da catadora de papel que vivia numa favela. "Com o fim da pandemia o projeto deve acelerar mais."

Para Sheilla André, contratada como coordenadora pedagógica no Oswald este ano, um colégio que se diz humanista precisa buscar a igualdade. "No meu currículo não dizia que eu era negra, mas percebi que era importante para a escola nas entrevistas." O colégio também deve lançar um programa de bolsas para alunos em setembro. Sheilla diz que temeu a reação dos pais na escola de elite, mas acabou se sentindo acolhida.

"Nosso desafio é que não seja uma coisa pontual, um evento, para ter um selinho antirracista", diz a coordenadora da Ação Educativa, Denise Carreira. Ela é autora de um documento sobre relações raciais na escola, feito em 2013 com o Unicef e o Ministério da Educação, mas abandonado pelo governo federal hoje. Denise usa o material com as escolas particulares e diz que a abordagem tem de ser multidimensional. "Precisamos educar crianças e adolescentes brancos para construir uma cultura democrática. A situação dramática atual do País é em parte responsabilidade de uma elite segregada em seu mundo."

'A gente está fazendo isso por todos nós', diz professora

Especialistas, educadores e pais que buscam uma educação antirrascista deixam claro que a intenção não é a de "ajudar o negro". E, sim, de transformar a sociedade, começando pela escola. "A gente está fazendo isso por todos nós", diz a professora do Vera Cruz Beatriz Olival, que tem três bolsistas na sala de 13 alunos.

"Não se pode apenas promover o acesso, com bolsa e contratações, é preciso dar qualidade para a permanência dessas pessoas negras. Senão, vai trazer só essa ideia de 'colorimos o espaço' ou de aliviar uma culpa", diz Juliana de Paula Costa, assessora para relações étnico-raciais. "O racismo está tão entranhado que ele escapa. Ele é horrível para as pessoas negras, mas também deforma o olhar do branco."

Por isso as escolas precisam ampliar suas referências, diz ela, conhecer autores africanos, asiáticos, sul-americanos. Fazer um censo racial da escola também é essencial para conhecer a comunidade. No Colégio Gracinha, essa foi uma das primeiras medidas. Depois de pronto, os alunos vão trabalhar os resultados e discuti-los.

"Soubemos que escolas estavam com projetos antirracistas e entendemos que também tínhamos de fazer algo. Da noite para o dia já tinham mais de 70 pais querendo contribuir", conta Roberta Raffaelli, mãe de alunas do Gracinha. O diretor Wagner Borja fala que teve inicialmente dificuldade em encontrar profissionais não brancos para contratar, até que uma professora criou um banco de currículos para ajudar as escolas. O Gracinha também deve ter um novo programa de bolsas.

"É algo potente e positivo. Há muita divergência em como fazer, mas faz parte. É rico para o debate, todos têm a perfeita clareza que isso precisa acontecer", completa a diretora do Colégio Equipe, Luciana Fevorin. A escola também está analisando currículo e discutindo o tema com pais e professores. Há também debates iniciados em Bandeirantes, Móbile e Avenues.

A diretora pedagógica da Escola da Vila, Fernanda Flores, acredita que esse movimento dos colégios de elite felizmente deve se alastrar para muitos outros da rede privada. "Isso muda gerações e demora menos tempo quanto mais ágeis forem as escolas."

Quanto mais cara e melhor no Enem, menos negros

Quanto mais cara e melhor colocada no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) é uma escola, menor o porcentual de negros entre alunos e professores, concluiu um estudo feito em 2020 por pesquisadores da Universidade Estadual do Rio (Uerj). A pesquisa também mostrou que as escolas mais bem posicionadas no Enem têm menos de 10% de autodeclarados pretos e pardos.

Para o responsável pelo estudo, Luiz Augusto Campos, do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), esse debate está chegando anos atrasado nas escolas privadas. "Medidas pedagógicas antirracistas são importantes, mas precisam vir acompanhadas da inclusão efetiva de alunos negros nesses espaços."

Elisângela Evangelista da Silva, mãe de Maria Manoela, de 6 anos, disse que só ficou tranquila em inscrever a filha na seleção do Vera Cruz quando soube que a inclusão era uma demanda dos pais. "Tive medo da convivência com as famílias, mas me sinto muito acolhida."

Estadão
Compartilhar
Publicidade
Seu Terra












Publicidade