Primeiro Livro: desafio de empreender um projeto em educação
Professor buscou ajuda através do financiamento coletivo para ajudar crianças de escolas públicas a publicarem seus próprios livros
À frente do projeto Primeiro Livro, o professor Luis Junqueira tem uma missão peculiar: ajudar crianças a publicarem seus próprios livros. Segundo ele, a proposta é simples: fazer com que cada aluno vivencie a experiência intensa de autoria que é escrever um livro. “Eles vão bolar tudo: seu herói, os conflitos, o gênero, como vai ser a capa, as ilustrações, o design”, explica. Para isso, promove oficinas literárias que ajudam os estudantes a navegar por temas como construção do personagem, estilo e gênero.
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A prática de iniciar os alunos na criação literária já ocorria em uma pequena escola que Luis trabalhava, mas foi ele que decidiu empreender e sonhar grande. Estruturado como projeto independente, o Primeiro Livro tem atingido cada vez mais pessoas. De 2009 para cá, foram mais de 300 alunos da Escola Castanheiras, em Alphaville, que toparam a ideia e publicaram seus livros e, neste ano, são 300 alunos de escolas públicas em dois centros da Fundação Casa, locais onde adolescentes infratores cumprem medidas socioeducativas de internação, e em cinco escolas municipais em São Paulo e Alagoas. Hoje, Luis trabalha com uma equipe de outros quatro professores e tem convicção na escalabilidade do negócio.
Até o começo de novembro, ele estipulou levantar 50 mil reais para imprimir 7,5 mil livros por meio de um projeto de crowdfunding. A iniciativa foi um sucesso e, por meio de apoio financeiro, o projeto levantou mais de 55 mil reais, gerando recompensas aos apoiadores - desde livros digitais até bibliotecas completas com os livros dos estudantes.
A seguir, veja a entrevista com o professor Luis Junqueira sobre o desafio de empreender um projeto de educação:
Como você se envolveu com educação?
Comecei a dar aula ainda cursando Economia, na Unicamp. Quando pisei em sala de aula, como educador, em 2002, em um assentamento perto da universidade, vislumbrei meu futuro. Larguei Economia e fui para Letras. Desde então, dei aulas em supletivo para adultos, para adolescentes no Ensino Médio, tanto para alunos de escola pública quanto privada, avancei para o Fundamental II, abandonei a profissão de professor de uma única escola, abri uma empresa e agora empreendo com educação. Hoje, faço educação com alunos de escola pública, desde o Fundamental I até o Ensino Médio. Meu propósito de vida se relaciona com a expansão da linguagem. O Primeiro Livro é um canal para que isso aconteça com nossos estudantes.
Como surgiu a ideia do projeto Primeiro Livro?
A ideia recente surgiu quando eu cursava o terceiro ano de Letras na Unicamp, em 2006, e pude estagiar na Escola do Sítio, onde a professora Davina Marques, de Língua Portuguesa, acreditava na prática de escrever livros como forma de mobilizar os alunos para produção literária. Na escola, esta ideia começou na década de 80. Mas a origem remota do Primeiro Livro está mesmo em um ensaio belíssimo do ano de 1862 de Liev Tolstói chamado ‘Quem deve aprender a escrever com quem, as crianças camponesas conosco ou nós com as crianças camponesas?’. Ali, confiante na autonomia e na liberdade como propulsoras da criatividade humana, Tolstói relata o acompanhamento didático que fez de algumas crianças que escreveram seus próprios textos fictícios. Ele percebia como crianças, independente de sua posição social, podiam ser comparadas a Goethe ou Shakespeare na maneira como escolhiam cada passagem, cada cena, cada palavra.
O que é ensino híbrido e como isso se relaciona com o projeto?
Ensino híbrido é um nome novo para uma prática antiga. É a diversificação de estratégias e práticas de aprendizagem para além da aula expositiva do professor. O ensino híbrido se tornou um conceito na boca dos professores com o desenvolvimento da internet, dos computadores e celulares. No entanto, ele é uma prática antiga porque, por exemplo, ler um livro em casa é uma técnica de aprendizagem complementar à sala de aula. Da mesma forma, desenvolver debates em sala de aula, promover construções em grupo também são híbridas à pratica tradicional da lousa do professor até o caderno do aluno. No Primeiro Livro, a prática mobiliza a teoria. A prática do aluno mobiliza nossas estratégias. De acordo com a realidade textual de cada um, tentamos personalizar a aprendizagem, com videoaulas, aulas expositivas, sugestões de livros, de filmes, mesclamos escrita em um livro em branco, escrita no computador, enfim, quem indica os caminhos é a realidade textual dos estudantes. É a partir desta realidade que nos mobilizamos a ensinar. Não raro, esta aprendizagem sai da sala de aula, vai até o computador no quarto do aluno e dúvidas aparecem na minha caixa de mensagem no Facebook.
Como foi a experiência de estruturar um projeto no setor de educação?
É uma experiência dificílima, especialmente se a gente vai em direção ao setor público. Muros do tamanho do infinito surgem na nossa frente, em várias etapas. O jeito é confiar e procurar as frestas que aparecem neste muro e, com a ajuda de outras pessoas engajadas no mesmo propósito, criar janelas e portas para que mais pessoas possam encontrá-las e atravessá-las.
Quais foram as principais dificuldades e desafios enfrentados ao longo do projeto?
Lidar com liberdade de expressão com alunos menores de idade é, talvez, o maior desafio. Muitos adultos, conscientes ou não, irão intervir na autoria dos estudantes. Definir o tema para eles, interromper uma sequência muito violenta ou muito erótica, induzir a dedicatória ou um final feliz, proibir o politicamente incorreto, ameaçar uma pena, caso o jovem autor continue em uma determinada linha. Nestes anos, já pude presenciar muitas proibições e censuras, provenientes de nós, adultos.
Como você fez para contorná-los? O que aprendeu?
Princípio é princípio. Liberdade de expressão é liberdade de expressão. O autor se responsabiliza pelo que escreve ou deixa de escrever. O ato da escrita é autoral. Quando um adulto interfere diretamente na história do aluno, este perde sua autoria e o livro ganha uma nova identidade. Com o tempo, fui aprendendo a lidar com este princípio e perceber que eu mesmo podia atrapalhar no processo de construção de um livro. Hoje o aluno escreve independente de uma nota dada pelo professor, decide publicar um livro com a quantidade de palavras que desejar e decide se quer ou não participar da festa de autógrafos.
Você ouviu muitos ‘nãos’? Como foi isso?
Muitos “nãos”. Muitos mesmo. “Nãos” surgem em todas as paradas. Se você quer fazer uma parceria com uma escola, já bati e voltei na porta da escola com o segurança, na conversa com professor, na reunião com a coordenação, no skype com a diretora. “Nãos”. Na conversa com o governo, já parei na catraca, no assessor e no secretário. Por onde desejamos fazer parcerias, muitos “nãos” irão aparecer. A grande diferença está no detalhe do “sim”. É este que abre portas.
Você teve alguma dificuldade em fazer o contato com as escolas? Qual era sua estratégia?
A estratégia é aperfeiçoar com base nos feedbacks negativos. A escola é um setor exigente, quer conhecer suas práticas, saber a substância da sua metodologia. Então, é vital comunicar: desenhar metodologia, avaliar como os alunos avançam, filmar, fotografar os processos, construir um portfólio e uma forma eficiente de comunicá-lo. Afinar o discurso é uma parte muito importante para fazer parceria com escolas. Uma vez dentro, a parte essencial é colocar o discurso em prática e fazer acontecer.
Você começou a ideia em colégios particulares e, agora, está avançando no setor público. Qual a diferença?
Do ponto de vista dos princípios, encontro o mesmo problema. Liberdade de expressão e autonomia são difíceis de serem defendidos nas duas esferas. Agora com relação à prática escrita, é urgente que nos mobilizemos para dar oportunidades de aprendizagem aos alunos de escola pública. A diferença é grande e a escrita é um motor essencial para ampliar nossas percepções de mundo. O aluno de escola pública necessita, urgentemente, ampliar suas capacidades de ação e de escolhas.
Muito se fala sobre a dificuldade de levar projetos inovadores para as escolas públicas, principalmente por questões burocráticas. Você passou por isso?
Sim, passamos por isso hoje. Até agora não fechamos nenhum contrato de prestação de serviços com as esferas do governo. Utilizamos seu espaço e infraestrutura para fazer educação. Nossa estratégia neste ano é desempenhar uma experiência de alta qualidade com alunos de escola pública e mostrar para a população que é possível. E é. É possível fazer educação de alta qualidade na escola pública. Este é o nosso primeiro passo para discutir formas de parceria com o Governo.
Depois de ter ocorrido em escolas particulares, o projeto foi implementado em regiões carentes da cidade de São Paulo. Como tem sido essa experiência?
É imprescindível trabalhar com alunos em regiões carentes. Quanto mais conheço os alunos da Fundação Casa, quanto mais conheço a realidade dos alunos de Heliópolis, mais acredito que a educação é o caminho. Presenciamos diariamente violência, ataques psicológicos mútuos, desrespeito, gritaria dentro da escola. É menos comum ver abraços entre os alunos, atos de solidariedade e de autoria, eles existem, mas a liderança está do lado do desrespeito e da depreciação. Ao lado do desrespeito está a impossibilidade de escolha. Se o aluno não tem boas possibilidades de escolha, continuará à margem da decisão, assim como suas gerações anteriores. Precisamos encontrar um caminho para mudar este paradigma.
Como foi feita a articulação de parceiros para o projeto, como a Fundação Lemann?
A Lemann é muito parceira. Entrei em contato pela primeira vez no programa Start-ed de aceleração de empresas e ideias em 2013. Desde então, foi uma sequência enorme de contribuição. Temos ajuda financeira, ajuda de ideias, conexão com pessoas e instituições. A partir da Lemann, fechamos parceria com o Instituto Inspirare e a lógica de solidariedade continua em um ciclo que só cresce. A partir da Inspirare, conseguimos entrar em São Miguel dos Campos, em Alagoas. A partir de lá já temos parcerias formadas e em gestação para o ano que vem. Lemann e Inspirare são fundações alinhadas para melhorar a educação do Brasil. Se você tem uma ideia ou uma prática de qualidade, estas instituições são caminhos para que o “sim” comece a acontecer.
Por que você apostou na estratégia de crowdfunding para financiar o projeto? Pensou em outras alternativas?
Quando começamos a articular o Primeiro Livro na Escola Castanheiras, desde 2009, encontramos uma facilidade na produção dos livros. Os pais financiavam as 20, 25 cópias dos filhos, que vendiam na noite de autógrafos para os convidados. A realidade da educação pública não é esta. As famílias não têm condições financeiras e o crowdfunding é uma prática para qualquer pessoa presentear os alunos de escola pública com a publicação de 25 exemplares. A alternativa é um projeto via Lei Rouanet que aprovamos, mas estamos ainda na fase de “não” para a captação de recursos.
Como foi criar uma campanha de arrecadação crowdfunding? Como chegou ao valor, às recompensas? Como fez a divulgação?
A campanha foi um desafio enorme. Calculamos quantos alunos de escola pública participam neste ano, em torno de 300 alunos, orçamos nas gráficas quanto custa a publicação de cada livro e definimos que 25 cópias para cada um é um presente muito bonito. As recompensas giram em torno da produção dos alunos. Temos livros de poesia, de quadrinhos, de terror, ficção científica, romances, todos eles são excelentes recompensas. Também fechamos parceria com escritores que doaram livros para a campanha: Ziraldo, Milton Hatoum, Clara Averbuck, Ferréz, Marcelino Freire, Ondjaki, Elvira Vigna, Paulo Scott, Daniel Pellizzari, Ivana Arruda Leite. O tronco da campanha aconteceu via nossa fanpage no Facebook.