Quase 100 mil alunos ainda não voltaram às aulas presenciais em escolas públicas de SP
São 23 cidades paulistas que mantêm ensino remoto, mas comércio e serviços estão funcionando normalmente; especialistas alertam para efeitos negativos na aprendizagem
A três meses do fim do ano, 23 municípios de São Paulo ainda não voltaram às aulas presenciais, mesmo com autorização do Estado desde fevereiro. São quase 100 mil crianças e jovens das redes estadual e municipal que estão sem ir à escola desde o início da pandemia, em março de 2020. Nessas cidades, a rede particular está aberta, aprofundando as desigualdades já existentes na educação. Bares, restaurantes, comércio também estão funcionando normalmente.
Entre as justificativas das prefeituras, que têm autonomia para decidir a abertura durante a pandemia, estão uma eventual transmissão da variante Delta e a espera pela vacinação completa dos professores, que acabou em setembro. O número de casos e mortes no Estado está em queda e as UTIs estão com cerca de 30% de ocupação. Mesmo assim, São Roque, por exemplo, depois de anunciar o retorno para setembro, voltou atrás e marcou a volta só para 2022.
Em nota, a gestão informou que o prefeito Guto Issa (Podemos) recebeu pedidos de vereadores para que o retorno fosse adiado, que está entregando kits de alimentação e que tomou a decisão por causa da "perspectiva de aumento significativo de casos de contaminação do coronavírus devido à variante Delta". Segundo o boletim mais recente da prefeitura, havia sete casos positivos de covid em São Roque e três pessoas internadas nos hospitais.
Entre os municípios com maior número de alunos que ainda não voltaram, segundo levantamento realizado pelo Estadão com informações do governo estadual e do movimento Escolas Abertas, estão ainda Tupã, Ibiúna, Mairinque, Embu-Guaçu, Cajuru, Alumínio e Pereira Barreto. Parte desses municípios - como Tupã, Ibiúna e Embu - preveem o retorno à sala de aula este mês.
"Perdi 30% do amor e da felicidade que eu tinha de ir à escola. Eu gostava de ir até com chuva, agora desacostumei", conta Yuri, de 11 anos, morador de Mairinque, cidade vizinha a São Roque, que até hoje também não voltou ao presencial. Ele vê crianças de escolas particulares de uniforme pela rua e não entende por que não pode ir também. "São sortudas", diz. Desde fevereiro, a permissão para aulas presenciais no Estado só foi interrompida entre março e abril, diante da 2ª onda da pandemia.
A mãe, a cabeleireira Maria Silvia Soares, conta que ele e o irmão de 7 anos, estavam na expectativa de voltar no dia 27, mas outro comunicado adiou a decisão. "Na escola ninguém sabe nada, não dizem as razões. Eu estava com esperança de que alguém ia olhar para as nossas crianças, mas ninguém está nem aí", diz. Procurada, a gestão do prefeito Toninho Gemente (PSD) não respondeu. Mas em nota divulgada no site, a prefeitura informou que adiou a volta por causa do "afastamento de mais de 200 funcionários" que serão imunizados "com a dose adicional" da vacina contra covid-19.
A reclamação sobre a falta de comunicação nas cidades que proibiram o retorno é constante nas famílias ouvidas pela reportagem. "A gente só sabe das decisões porque é uma cidade pequena e acaba chegando", conta a auxiliar de escritório Maria de Fátima Nunes Prates, de 50 anos, moradora de Cajuru, na região de Ribeirão Preto. A filha de 7 anos, que está no 2º ano do ensino fundamental, nunca teve aula online nesses quase dois anos e recebe lições pelo Whatsapp da professora. "Agora que ela está aprendendo a ler alguma coisa, está bem atrasada."
Segundo ela, a escola está do mesmo jeito que em março de 2020 e não houve qualquer adaptação para receber os alunos durante a pandemia. Com a necessidade de distanciamento e ventilação para evitar a transmissão do novo coronavírus, especialistas têm indicado reformas e compra de itens de higiene no retorno presencial. Procurada, a gestão de Alberto Morettini (PSDB), prefeito de Cajuru, não respondeu à reportagem.
Segundo dados do Tribunal de Contas do Estado, todas as cidades investiram os 25% do orçamento obrigatório em educação este ano, mas 11 das 23 cidades não destinaram nenhum recurso do montante para enfrentamento da covid em 2021 para mitigação dos impactos da aprendizagem. É o caso de Embu-Guaçu, onde um decreto do prefeito Zé Antônio (MDB), em agosto, já autorizava o atendimento presencial de estabelecimentos e serviços essenciais e não essenciais sem restrição de horário e com 100% da capacidade, mas não as escolas municipais e estaduais. Procurada, a prefeitura informou que as aulas devem voltar no dia 4, mas o decreto ainda não havia sido publicado.
A artesã Simone Silva, de 48 anos, tem filha em uma escola estadual de Embu-Guaçu que foi reformada e adaptada para receber as crianças com distanciamento e outros protocolos, mas continua vazia. A menina tinha acabado de entrar no 4º ano quando a pandemia começou e agora está prestes a ir para o 6º ano, em outra escola, e ainda não voltou. "Queria que ao menos a escola a recebesse nesses dois meses para prepará-la para o ano que vem, quando ela vai ter mais professores, estará no fundamental 2 (ciclo do 6º ao 9º ano)", diz a mãe.
O secretário estadual de Educação, Rossieli Soares, tem se reunido com prefeitos das cidades que ainda não voltaram para tentar mudar a decisão. "Não há justificativa técnica ou sanitária para a escola não estar aberta hoje", disse Rossieli ao Estadão. Segundo a secretaria, a maioria das 10 cidades com ensino ainda fechado na região de Tupã, no oeste do Estado, deve abrir as escolas entre 4 e 8 outubro. Mas nem todos os sites das prefeituras informam as datas.
Em Tupã, um decreto determina que as escolas estaduais podem retornar nesta sexta-feira, 1º, mas as municipais apenas no dia 8. Em Quatá, há um plano de ação para a volta na segunda-feira, 4. No site da prefeitura de Queiroz, há a informação de que crianças de 4 e 5 anos, da educação infantil, retornaram no dia 4 em esquema de rodízio, com 50% do atendimento. Não há nada sobre alunos mais velhos. Pelas regras estaduais, já é permitido que 100% dos estudantes voltem às escolas presencialmente, desde que respeitando 1 metro de distanciamento.
'Está tudo funcionando: a gente ouve até balada', critica mãe
"A revolta maior é essa: está tudo funcionado, a gente ouve até balada", diz uma mãe da rede municipal de Ibiúna, que pediu para não ter seu nome publicado. Ela se mudou para a zona rural da cidade durante a pandemia e até agora seu filho de 7 anos não pôde ir para a escola em que foi matriculado. A Secretaria de Educação de Ibiúna informou que a volta será no dia 25 por causa da vacina dos professores e pela "manutenção das unidades pelo longo tempo que ficaram fechadas".
No Brasil, Estados do Norte e Nordeste têm maior porcentagem de municípios que ainda não voltaram ao presencial, segundo estimativa da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). No Pará, que tem o maior índice, estima-se que 70% das cidades não abriram as escolas até hoje. Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Pernambuco também têm ainda muitas cidades sem aula presencial. "Muitas vezes há dirigentes não técnicos na gestão, que não se prepararam para a volta", diz o presidente da Undime, Luiz Miguel Garcia. Segundo ele, a grande luta da entidade era a vacinação dos profissionais da educação, o que já ocorreu.
"Tivemos quase dois anos para preparar as escolas. Não tem sentido não estar aberta agora, é muito preocupante", diz a educadora Anna Helena Altenfelder, presidente do conselho do Cenpec. Ela afirma que os mais afetados são os alunos da zona rural, com internet precária e os mais pobres. "É um tempo precioso que está se perdendo, é preciso ter senso de urgência."
Estudos nacionais e internacionais têm mostrado a grande perda de aprendizagem de crianças no período da pandemia por causa das escolas fechadas, principalmente das mais vulneráveis. O governo de São Paulo já estimou em 11 anos o tempo para recuperar o que se perdeu em Matemática, por exemplo. O Brasil foi um dos países que mais demoraram para voltar ao presencial no mundo. Há ainda o alto risco de abandono da escola pelas crianças e jovens, que perdem o vínculo ou que tiveram de trabalhar no período.
Anna Helena lembra ainda que um plano de volta deveria ter envolvido toda a comunidade e o fato de as famílias não terem nenhuma informação mostra que isso não ocorreu. "A gente naturaliza as desigualdades educacionais, a evasão, não estar alfabetizado no 4º ano. Mas isso vai contra o direito de crianças e jovens, é um fenômeno muito perverso porque prejudica as mais vulneráveis", afirma.
Diretora geral do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV, Claudia Costin diz que, nas cidades menores, a decisão de abertura acaba ficando com o prefeito e não com o secretário de educação. Para ela, não era necessário esperar nem as duas doses da vacina dos professores para a volta, como fizeram outros países. "Isso mostra o quanto se prioriza a educação no discurso e prática."