'Queremos uma cultura do cuidado', diz professor à frente de grupo de saúde mental na USP
Pró-reitoria recém-criada busca produzir nos ingressantes via cotas uma sensação de pertencimento
Com 88 anos de história, a instituição de ensino superior brasileira mais bem classificada nos principais rankings internacionais de ensino e pesquisa tem um objetivo audacioso: criar uma política institucional que combata o caráter elitista e ajude a produzir nos ingressantes via cotas uma sensação de pertencimento.
"A inclusão não se resume a promover a entrada, mas a garantir a permanência estudantil. A educação é indissociável do cuidado com o outro. Só isso pode mudar o panorama da universidade, transformá-la em um ambiente menos hostil e muito mais acolhedor", afirma Ricardo Rodrigues Teixeira, docente da Faculdade de Medicina e responsável pela área de Saúde Mental e Bem-Estar Social da recém-criada Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da Universidade de São Paulo (USP).
A criação da pró-reitoria atende ao cenário trazido pela implementação das cotas?
A USP não criava uma pró-reitoria havia décadas - existiam as quatro clássicas: graduação, pós-graduação, pesquisa, e extensão. É nítido que esse timing tem relação estreita com o aumento da participação de estudantes de escolas públicas. Com as cotas, a USP, com sua tradição elitista, tem sua base demográfica alterada. O perfil discente se alterou radicalmente. Eles conseguiram entrar, mas como ficar? Responder a essa questão envolve considerar as questões socioeconômicas, como sustentabidade financeira, mas também repensar o ambiente universitário, ainda hostil aos de classe econômica mais baixa, mas preponderantemente hostil aos negros, indígenas e população LGBT.
E como enfrentar essa hostilidade?
Com uma política de saúde mental que ajude a produzir nos ingressantes via cotas uma sensação de pertencimento. Hoje, apesar de metade dos calouros serem oriundos de escolas públicas, um porcentual que não é pequeno, esses estudantes seguem com uma sensação adoecedora e estressante de que aquele não é seu lugar, não se sentem bem-vindos ali. A política de cotas é promissora no sentido de promover uma transformação estrutural na sociedade, mas precisamos garantir que a experiência de cada universitário reflita isso.
Afinal, devia ser um momento de êxito, não é? Acabaram de ser aprovados em um vestibular concorrido.
Exatamente. A maioria dos alunos vem de um processo de anos de investimento em estudos. A entrada da universidade coroa esse esforço e, no início, é motivo de muita alegria e de euforia. Mas, daí, vem a realidade e começa a bifurcar dois grandes tipos de experiência: para uma parte, aquilo é a entrada em um lugar que continua um espaço de convivência social; a outra parcela de alunos, que a partir das cotas não é mais marginal, recebe um grande choque. Nesse momento, cai a ficha de quanto a formação no ensino médio e fundamental foi fraca e insuficiente. Você entra numa sala de aula, o professor bota um vídeo em inglês, sem legenda. Metade entende e outra metade não entende nada. E poucos professores percebem. Porque a mentalidade ainda não mudou…
Mas já deveria ter mudado, não é?
Pois é. A universidade deixa transparecer as brutais desigualdades da sociedade brasileira. É preciso mudar esse caráter elitista e, ao mesmo tempo, cuidar para criar políticas que cuidem do público que conseguiu furar a bolha, mas que segue em sofrimento.
Como fazer isso?
A maior parte das federais e das estaduais tardiamente passou a ter políticas para lidar com esse sofrimento. Institucionalmente, surgiram canais de apoio socioeconômicos - como bolsas de auxílio-moradia, alimentação etc. Ao mesmo tempo, a gente vê multiplicar iniciativas dos estudantes, de coletivos que procuram investir na diminuição do vácuo de aprendizado. Os estudos mostram que o calouro via cotas está bastante aquém no primeiro ano. Mas se iguala no decorrer do tempo e, ao fim do curso, todos saem pareados. O problema é que esse vácuo no início tende a ser visto como fracasso pessoal, e afeta demais a saúde mental. Nosso desafio é ajudar o aluno a entender que não se pode tomar isso como derrota pessoal. É reflexo de uma desigualdade social e coletiva.
Como a USP tem feito isso?
A pró-reitoria foi criada há três meses, e uma iniciativa imediata está sendo estruturar um serviço de escuta e acolhimento em saúde mental. Nao é um espaço de oferta de tratamento, mas de garantia de acesso ao cuidado. Ninguém fica sem escuta. Saúde mental é uma questão de calamidade pública, especialmente na população jovem. O suicídio é a segunda causa de morte entre pessoas de 20 a 29 anos. É exatamente a população da universidade. Vamos atuar em um espaço físico no campus do Butantã - com psicólogos, assistentes sociais e enfermeiros com especialização em saúde mental. Não focamos apenas em patologias ou adoecimento com diagnóstico. A questão da saúde mental não pode ser reduzida ao atendimento com especialista. Para muitas pessoas, a conversa é resolutiva.
Entretanto, nos dias de hoje, a prática da escuta é praticamente uma contracultura, não é?
Sim. Mas queremos produzir uma cultura do cuidado na universidade. Estamos pesquisando modos de trabalhar nessa questão, empenhados em construir coletivos de jovens escutadores/acolhedores. Podemos, por exemplo, oferecer bolsas a estudantes que possam ser pontos de referência a outros colegas. A saúde mental coletiva melhora se a gente vive em ambientes em que nos preocupamos com quem está do lado. Há uma potência curativa em cuidar do outro. A educação é indissociável do cuidado.