RJ: professores conversam sobre problemas pessoais em aula
Estudante sai da escola como uma pessoa autônoma e mais participativa, dizem especialistas; principal destaque do método o protagonismo do aluno
Já imaginou um colégio onde os professores conversam com seus alunos sobre questões da sociedade e até mesmo sobre problemas pessoais? Onde cada aluno tem suas dificuldades e habilidade tratadas individualmente e tem espaço para desenvolver competências como extroversão, amabilidade, responsabilidade e controle de humor?
Essa escola existe e é brasileira. É o Colégio Estadual Chico Anysio (CECA), na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, onde cerca de 180 alunos já podem sentir na prática o impacto que o desenvolvimento das habilidades não cognitivas pode causar no desempenho escolar.
Inaugurado em dezembro de 2012, fruto de uma parceria entre o Instituto Ayrton Senna, que ofereceu a experiência no método e a capacitação dos professores, e a Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro, o colégio conta com 90% das vagas destinadas a alunos oriundos de escolas públicas e tem seu currículo estruturado em uma carga horária integral, de quatro dimensões: trabalho, convívio, aprendizagem ao longo da vida e a formação para a autonomia do aluno.
Para a coordenadora do Programa Dupla Escola, da Seeduc do Rio e do qual faz parte o CECA, Maria Aparecida Jacomelli Pombo Freitas, foi construído um modelo cujo principal objetivo é formar o aluno para o mercado de trabalho e para a vida. “A preocupação com a formação integral do aluno é muito grande. O conteúdo das disciplinas da base nacional comum é ministrado de forma integrada, se articulando entre si, além das atividades de núcleo que trabalham as questões socioemocionais. No CECA, temos 16 tempos para elas”, conta.
Nesses tempos, um dos projetos trabalhados é o Projeto de Vida, onde os alunos se dividem em grupos com a supervisão de um professor, que não se repete ao longo do curso, e discutem assuntos que aparecem na mídia ou elementos da realidade em que vivem. O trabalho é feito para gerar reflexões sobre o papel do estudante na família, na escola e na sociedade. Os alunos se sentem tão à vontade que, muitas vezes, discutem até problemas familiares nos grupos.
Além disso, como a carga horária é integral, existe um momento de autogestão, em que os alunos fazem as atividades e deveres de casa no colégio mesmo, com orientação de professores. Outra atividade desenvolvida no colégio é de intervenção e pesquisa, que trabalha as percepções socioemocionais, pois os alunos são levados a pesquisar e gerar conclusões acerca de assuntos variados, escolhidos por eles. “As habilidades também são reforçadas nas aulas integradas, onde, por exemplo, na aula de literatura, se estuda o romantismo ao mesmo tempo em que se aprende o mesmo período em história e artes, com o enfoque de cada disciplina”, explica.
Maria considera o principal destaque do método o protagonismo do aluno, que sai da escola como uma pessoa autônoma e mais participativa. “O senso crítico é desenvolvido. Quando o aluno vê uma notícia no jornal, ele raciocina sobre aquilo. É uma formação profissional e pessoal”.
O direitor do CECA, Willmann Silva Costa, conta que as aulas são desmontadas, com as classes colocadas em círculos ou outros formatos, fazendo com que o professor consiga detectar melhor os problemas de cada aluno. “O professor conhece todo mundo e tem uma preocupação mais individual. Estamos provando que é possível tratar o indivíduo, não apenas como um todo, mas com suas próprias carências e habilidades.” Para que o método funcione, cada sala de aula comporta no máximo 30 alunos. “Eles aprendem a lidar com o outro, aprendem a ser ouvidos e a ouvir, interagindo mais no grupo”, argumenta.
Costa, que já trabalha com educação há 18 anos e está na direção de escolas há três, explica que ainda é preciso melhorar a forma de avaliar as competências não cognitivas. “O professor precisa ser treinado para perceber mais o aluno como indivíduo, que não é 100% em tudo. Ele pode ser melhor em uma habilidade. No próprio modelo utilizado no CECA, o estudante descobre em que ele é bom. O ensino médio é exatamente para isso. Não precisa saber tudo para passar. O professor não recrimina o não saber, mas valoriza o que o aluno sabe nas atividades de núcleo”, conta.
Maior proximidade com professor é sentida pelo aluno
A aluna do primeiro ano Karina Madruga, de 16 anos, saiu de um colégio de ensino mais tradicional e já notou a diferença. “Já consigo perceber melhor as relações entre as disciplinas. Uma matéria tem um ponto de vista que pode ajudar a entender outra. Pego o conteúdo mais rapidamente e sinto a integração entre aluno e professor maior. Mesmo entre os alunos”.
O projeto que Karina mais gosta é o Projeto de Vida, pois é onde a menina sente maior proximidade com o professor. “É onde posso contar as dificuldades que tenho em aula e me aproximar dos colegas. Conversamos também sobre o que queremos na vida. Eu quero cursar Direito, e os professores nos ajudam a entender melhor o que são essas funções”.
Mesmo com o horário integral, a caloura não sente o tempo passar, pois as aulas integradas são descontraídas, além de serem intercaladas com as atividades de núcleo. Além disso, Karina destaca que o ambiente escolar, a forma como a sala de aula está disposta, é mais aconchegante.
Estudo se baseou em características como extroversão, autoestima e controle emocional
A ideia surgiu de um estudo realizado pelo Instituto Ayrton Senna em parceria com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (que é responsável pelo PISA), com cerca de 50 mil alunos do 5º ano do fundamental e do 1º e 3º ano do ensino médio da rede pública do Rio de Janeiro. Habilidades socioemocionais como extroversão, autoestima, cooperação, organização e capacidade de controle emocional são tão importantes quanto habilidades cognitivas medidas por provas e testes de QI.
O estudo foi baseado em um questionário utilizado no instrumento de avaliação batizado de SENNA (Social and Emotional or Non-cognitive Nationwide Assessment), que avalia as competências socioemocionais no contexto escolar, relacionadas com resultados de testes acadêmicos padronizados de matemática e português (no caso do Rio, provas realizadas pelo governo como Saerj e Saerjinho, feitas na mesma época da aplicação do questionário) e informações socioeconômicas e de bem-estar social.
Os resultados confirmam o que especialistas da área de educação vêm estudando nos últimos anos: com o maior desenvolvimento das características não cognitivas na escola, o desempenho escolar tende a melhorar, além disso, estas características podem ser incentivadas pontualmente.
São seis as competências não cognitivas avaliadas pelo estudo: extroversão, que engloba interesses e energia do aluno para com o mundo externo e com as pessoas; amabilidade, que consiste na tendência a agir com cooperação; conscienciosidade, que é a tendência de ser organizado, esforçado e responsável; estabilidade emocional, que envolve consistência nas reações emocionais, sem mudanças bruscas de humor; abertura a novas experiências, que engloba a tendência do aluno de se abrir a novas experiências estéticas, culturais ou intelectuais; e lócus de controle, que reflete em quanto os alunos atribuem suas experiências de vida a decisões do passado ou de terceiros, ou seja, quanto eles se responsabilizam pela situação em que vivem, se colocando como vítimas ou protagonistas. São as chamadas soft skills.
As questões apresentadas aos alunos se referiam à percepção sobre si mesmo, e cada resposta correspondia a um dos indicadores dos cinco domínios socioemocionais. Além disso, os alunos recebiam um segundo questionário com questões socioeconômicas, onde quantidade de livros em casa era um dos quesitos, por exemplo.
Incentivo da família é mais importante do que alfabetização dos pais
O estudo revelou que as características socioemocionais são mais determinantes ao desempenho acadêmico do que as características de ambiente familiar. A conscienciosidade foi a que mais se associou com os resultados de matemática. Com português, a principal influência ficou com o lócus de controle e com a abertura a novas experiências. Em medidas, no caso da conscienciosidade (o aluno ser responsável e organizado), o impacto do incentivo que os pais dão aos alunos é quase duas vezes maior do que o fato do aluno ser pobre ou não. Já relacionado ao lócus de controle (quanta responsabilidade o aluno toma pelas decisões que faz) e à abertura a novas experiências, o impacto é maior do que duas vezes.
Sobre a alfabetização dos pais e o quanto isso impacta no desempenho escolar dos filhos, em conscienciosidade, é quatro vezes menor do que o incentivo que os pais dão ao filho. Em lócus de controle, duas vezes menor, e em abertura a novas experiências, seis vezes menor. Ou seja, não significa que um aluno que venha de uma família onde os pais não são alfabetizados não possa ter um bom desempenho escolar, pois depende mais do incentivo que esses pais darão ao filho.
Políticas públicas
Segundo a analista de Projetos de Avaliação e Desenvolvimento do IAS, Daniela Arai, mapear quais são as competências socioemocionais que têm mais impacto na escola é apenas um dos objetivos. “Também se quis criar e melhorar um instrumento para medir esse impacto em um contexto escolar, que fosse de larga escala e ocupasse um tempo razoável, além de ter critérios para que seus resultados possam ser usados para criação de políticas públicas no futuro, onde se possa trabalhar para ampliar o desenvolvimento de algumas capacidades, pensando em propostas pedagógicas mais colaborativas, que tenham a ver com a personalidade do aluno”, explica.
Entre essas políticas públicas, a pesquisadora destaca aquelas no âmbito de formação de professores, pois atualmente as licenciaturas são muito voltadas aos conteúdos e se aprende muito pouco sobre a natureza das competências socioemocionais e práticas para desenvolvê-las. “É meio que um senso comum dos professores, eles sabem que são capacidades importantes mas não sabem como colocá-las em prática. A extroversão, por exemplo, acaba tendo um impacto negativo nos estudos porque as escolas não sabem lidar com alunos assim”, conclui.
A expansão do projeto
Em 2014, mais cinco escolas já estão utilizando a proposta curricular de desenvolvimento das habilidade socioemocionais. Segundo Maria, elas não reproduzem o método de forma integral, mas aproveitam conteúdos dentro de sua matriz curricular, conhecidas como escolas de referência. “A proposta é que para 2015 tenhamos cerca de 50 escolas na mesma linha”, afirma.
O novo método mostra que não existe um perfil socioemocional certo, mas conhecer os alunos e fazer com que eles se conheçam, adquirindo um papel protagonista no trabalho, na sociedade e na família, são experiências que importam tanto quanto o conteúdo de aula. “É muito legal ver o reconhecimento dos alunos. Eles contam que nunca ninguém havia perguntado a eles essas questões mais emocionais na escola. Em geral, não existe espaço para essas conversas no colégio. Eles perceberam que finalmente vamos falar desses assuntos”, conclui Daniela.