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"Sala de aula, banheiros e transporte seguem jogo que aponta para a corrupção", diz pesquisador

O professor Renato Bulcão transformou em livro o estudo em que avalia os últimos 100 anos da educação brasileira, e aponta fracasso da área

28 mar 2024 - 05h00
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Professor Renato Bulcão é o autor do Tratado da Má Educação
Professor Renato Bulcão é o autor do Tratado da Má Educação
Foto: Divulgação

Cem anos parece muito tempo. Do último século para cá, a internet chegou, as pessoas mudaram a forma de se vestir e se relacionar, e a sociedade até enfrentou uma pandemia. No entanto, tem um fator que insiste em permanecer andando a passos lentos no Brasil: a educação.

Foi pensando nisso que o professor, pesquisador e doutor em Educação e História da Cultura, Renato Bulcão, escreveu uma obra que avalia o sistema educacional brasileiro durante todo esse período. O Tratado da Má Educação analisa o problema a partir de uma abordagem estrutural.

Para o autor, política, religião e autoestima são os pontos-chave para entender o que chama de "fracasso educacional". A grande diferença entre o sistema público e privado também é pauta nas páginas escritas por Bulcão.

"A escola pública brasileira é um treinamento para o futuro cidadão ou cidadã lidar com o desinteresse do estado para com a sua pessoa", avalia.

É a partir desse olhar que o autor ainda traz questionamentos em relação a temas que estão no noticiário atual, como o ensino domiciliar (também chamado homeschooling) e a criação de 100 novos institutos federais com ensino técnico, anunciada no último dia 12 de março pelo governo federal. Sobre a medida, aliás, Bulcão provoca: "Pergunta-se se esse novo esforço não é mais uma oferta de cargos públicos na esperança de multiplicar votos". 

Leia a seguir a entrevista completa.

Livro avalia os últimos 100 anos de educação no Brasil
Livro avalia os últimos 100 anos de educação no Brasil
Foto: Divulgação

O livro 'Tratado da Má Educação' avalia os últimos 100 anos de educação no Brasil. Como foi o processo de pesquisa para escrever a obra? É possível que tenha deixado algo passar?

Todo livro é um recorte da realidade e com certeza os aspectos pessoais das dificuldades das vivências das professoras e professores foi negligenciado. Geralmente, trabalho com metanálise, que é o exame de dezenas ou centenas de pesquisas sobre um determinado tema. Fiz uma série de comparações entre artigos brasileiros e artigos estrangeiros, principalmente espanhois, italianos, portugueses e franceses. Neste sentido, o livro fala da educação a partir da cultura latina, de povos latinos. Mas a questão dos estudos cognitivos ficou de fora. Não levei em consideração quantas calorias são necessárias para uma menina de 12 anos poder frequentar e aprender no ensino fundamental. Também não me interessei pela quantidade de violência experimentada por um garoto da favela que o impede de estudar para a prova de Física no primeiro ano do ensino médio.

Você acredita que há soluções viáveis para os problemas que aborda em sua obra? Considera que, em algum momento destes 100 anos, estivemos perto de solucionar alguma dessas questões?

Sim, há um desenho básico de uma cartilha que pode começar fazendo uma diferença imediata no ensino público. Esse desenho fica espelhado naquilo que por vezes é adotado no ensino privado. Hoje, apenas 53% dos equipamentos públicos escolares está funcional. Em outras palavras, cada escola pública brasileira está depredada: as janelas estão quebradas, os banheiros não funcionam, os móveis estão quebrados, e por aí vai. Nesse momento, desde muito jovem, o pobre aprende bem como o poder público se importa com suas necessidades. Depois, percebe a mesma coisa na saúde, no transporte, na segurança... A coisa só vai piorando.

As professoras precisam ser contratadas em regime de 40 horas/aula para ganhar o piso nacional. O perfil hoje de uma professora é uma mulher entre 30 e 45 anos, que ministra aula para 180 alunos em salas superlotadas. Para tanto, elas têm uma contratação precária onde ganham menos de R$ 3 mil por mês. Essas professoras são instadas a educar um aluno crítico, quando nem mesmo conseguem exercitar algum senso crítico perante sua realidade. 

Nos últimos 100 anos, tivemos o manifesto da Escola Nova, que propunha um ensino mais prático, misturando teoria e prática. Porém, até hoje não conseguimos implementar isso. Agora, o atual governo está propondo 100 novos institutos federais com ensino técnico. Mas, num País que tem um sistema S (SENAI, SENAC, SESI) bem-sucedido e que foi negligenciado como solução possível, pergunta-se se esse novo esforço não é mais uma oferta de cargos públicos na esperança de multiplicar votos.   

Por meio do livro, podemos entender que o problema da educação brasileira é profundamente estrutural e perpassa temas como religião, autoestima e política. Você considera algum desses fatores o mais prejudicial?

Com certeza a política é a questão mais prejudicial. Nosso sistema de ensino espelha o clientelismo autoritário e a corrupção decorrente daquilo que hoje se tornou a cultura brasileira. Toda essa hierarquia de privilégios aprendida desde a escola, tanto no ensino público quanto no ensino privado, destroi a autoestima. Este ataque é que mantém a colonização das mentes, aplaudindo tudo que vem do exterior, confirma o racismo estrutural e constrói mecanismos de manutenção da exclusão e da pobreza.

O caldo dessa cultura é a religiosidade da população, que, de acordo com estudos e pesquisas nos últimos dez anos, aponta para um total de 83% de brasileiros se declarando religiosos. Então, o entendimento lógico e racional fica muito comprometido. Desse ponto de vista, ainda somos agostinianos, nós cremos para poder entender. Temos os pés enterrados na baixa Idade Média – vemos a educação como os europeus a viam há 1.500 anos. 

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Como a influência dos interesses políticos na formulação das políticas educacionais afeta diretamente a qualidade da educação e a formação dos cidadãos brasileiros?

Mudar o ensino público seria uma revolução cultural que atacaria diretamente esquemas políticos de corrupção, incluiria imediatamente as populações faveladas que, no período de 12 anos - um ciclo escolar completo - estaria exigindo cidadania e direitos de consumidor. O próprio equipamento ofertado à população, a sala de aula e seus móveis, o fornecimento de água e esgoto, os banheiros, a alimentação escolar, a limpeza geral, o interesse das professoras e dos professores, e, finalmente, o material e o transporte escolar, seguem um jogo de interesses que apontam diretamente para a corrupção.

Nesse sentido, a verba sofre de dois movimentos evidentes: diretores indicados politicamente resolvem todas as questões fraudando concorrências, e desviando grandes porcentagens de dinheiro numa ação entre amigos que muitas vezes incluem vereadores e deputados estaduais. Para identificar esse movimento, basta examinar quantas vezes as empresas dos mesmos proprietários ganham as licitações ao longo do ano. Entregam o serviço de qualquer jeito, mas contam com uma proteção política que permite a impunidade. O segundo movimento é daqueles diretores de escola que se sentem inseguros politicamente, e sabem que vão precisar responder pessoalmente caso haja algum ataque na forma de um processo administrativo, porque alguém não tomou a parte que achava que devia. Também é fácil identificar essa parcela de pessoas, basta verificar quais as escolas que devolvem verba municipal, estadual ou federal depois de um ano fiscal.

E até hoje, com governos de esquerda e de direita comandando o MEC, nunca ninguém nem sequer resolveu examinar o motivo desses problemas. Então, do ponto de vista cultural, a escola pública brasileira é um treinamento para o futuro cidadão ou cidadã lidar com o desinteresse do estado para com a sua pessoa.   

Quais são os principais obstáculos enfrentados pelos educadores brasileiros no atual cenário educacional?

Na minha opinião, estamos diante de um problema que se esconde à vista de todos. Desde a Proclamação da República, mas principalmente depois do Estado Novo de Getúlio Vargas, e apoiados pela ideia de um só país e uma só nação, lidamos com a questão da centralização autoritária.

Querem que um aluno de escola no Acre seja formado como um aluno do Rio Grande do Sul. As diferenças e adaptações, além do respeito às culturas regionais, são atacadas pelos governos federais de todas as matizes em nome de uma pretensa civilização brasileira. É como se um aluno da Polônia e um aluno de Portugal tivessem de aprender da mesma maneira, com iguais referências, pois participam da União Europeia.

Temos de formar para as realidades regionais de cada território. O que se aprende à beira de um porto de rio, não pode ser a mesma coisa que se aprende no meio do cerrado. São necessários conhecimentos diferentes para que cada grupo populacional se desenvolva num país como o Brasil.

As metas daquilo que precisa ser sabido por um aluno ao terminar os diversos ciclos da educação básica precisam ser as mesmas. O conteúdo das provas, mas principalmente a língua portuguesa e as linguagens ou códigos de cada disciplina, precisam ser democraticamente conhecidos previamente por alunos e professores. Porém, como cada população vai alcançar esse resultado não pode ser ditado de cima para baixo impondo uma conduta daquilo que é um bom ou mau ensino. Neste sentido, o ensino privado adota várias estratégias com muito mais sucesso do que tentam fazer com o ensino público. 

O problema geralmente está posto dentro dos Conselhos Estaduais de Educação, geralmente controlados por representantes do ensino privado. Para as escolas privadas, flexibiliza soluções de melhoria; para o ensino público, vale a letra fria da lei.

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Antes, a internet era considerada rival do aprendizado. No entanto, tem crescido a presença de professores nas redes sociais que atuam como "influenciadores digitais da educação". Nesse sentido, acha que a internet pode ser uma aliada ou há risco de tornar o processo do ensino superficial?

Quando trabalhei como professor na USP, nos anos 1990, já estava vinculado a uma linha de pesquisa chamada de educomunicação. Naquela época já sabíamos que era necessária uma comunicação dentro do âmbito da cultura que servisse para facilitar o entendimento de conceitos científicos por alunos de todas as etapas da educação. Tudo parte do princípio que se o professor não conseguir explicar de pelo menos duas maneiras simples um determinado conhecimento, é porque não domina a matéria e o espectador não terá interesse naquilo. A falta de interesse é determinante para o entendimento daquilo que se quer aprender. Se o aluno, na qualidade de espectador, procura alguém dando uma explicação na internet, é porque o professor na sala de aula não conseguiu se fazer entender. Geralmente, ele assistirá alguns vídeos até chegar naquele que facilita, de fato, seu entendimento do assunto, e não a forma específica de resolver uma questão. Assim, esse processo não é superficial, mas complementar, e acaba envolvendo o aluno num campo de conhecimento distante da sua realidade cultural imediata.

O atual governo se mostra completamente contrário ao homeschooling, prática apoiada pela gestão anterior. Tendo em vista que a pauta ainda corre no Senado, qual a sua opinião sobre o ensino em casa? Trata sobre a questão no livro?

Homeschooling é uma excrescência tamanha, que não perdi tempo com isso no livro. É simples. Numa população minimamente assistida, vamos ao dentista desde muito jovens. Depois de 25 anos indo ao dentista, alguém pode proclamar que virou dentista só porque está sempre vendo procedimentos que identifica enquanto paciente? A educação é um movimento coletivo porque está inserida na cultura de um povo. Tornar isso um movimento individual é se perguntar quem será escravizado para dar aulas a essas crianças dentro de casa.

É claro que o homeschooling é idiota por princípio. Até porque essa proposta feita por representantes de igrejas evangélicas de menor expressão não poderia nem mesmo tentar substituir as escolas presbiterianas, metodistas e batistas. Se ainda não existe uma liderança educacional evangélica, está na hora de existir e acabar com essa bobagem.

Depois do 'Tratado da Má Educação', você está trabalhando em alguma outra obra sobre o tema?

Reconheço que devido à minha atividade acadêmica, fiz um livro tese, denso e difícil leitura para quem trabalha em condições adversas. Por isso, estou reescrevendo o livro, agora com o nome de Segundo Tratado da Má Educação, com uma forma leve de escrita e indo direto ao assunto. É uma versão resumida e simplificada, quase uma cartilha, que mostra como uma professora pode lidar com os problemas na escola. A base comum são sempre as questões estruturais que estão presentes no cotidiano da profissão, e que não conseguem ser resolvidas por uma pessoa.

Mas também já comecei um trabalho mais filosófico, um pequeno estudo do que torna uma pessoa má. Esse livro vai se chamar O Caminho Suave da Maldade. Ele mostra de uma forma quase religiosa como as pessoas que aparentemente são bem-intencionadas acabam se tornando pessoas más, muito más, acreditando que estão fazendo o que fazem pelas melhores intenções.

Fonte: Redação Terra
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