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Sete em cada 10 alunos LGBTI+ do ensino médio não se assumem durante a vida escolar

Pesquisa realizada pela startup Todxs ouviu mais de 15 mil representantes da comunidade; rotinas de agressão e falta de diálogo são os motivos mais citados para o silêncio

14 dez 2020 - 10h10
(atualizado às 18h13)
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Sete em cada 10 pessoas LGBTI+ não se sentem seguras para declarar suas identidades de gênero ou orientações sexuais, e três não se entendem como tais, durante a vida escolar no ensino médio. É o que aponta a Pesquisa Nacional por Amostra da População LGBTI+, levantamento inédito feito pela startup Todxs e lançado nesta segunda-feira, 14, com mais de 15 mil representantes da comunidade, espalhados pelas 27 unidades federativas do País.

Realizado ao longo do ano passado de forma online, o censo é o maior até agora com foco específico nessa população. Gerente de Pesquisa e Desenvolvimento da Todxs, Marcos Felipe Almeida diz que um dos principais objetivos da startup é a produção de dados sobre a comunidade LGBTI+, e espera que o levantamento impulsione mudanças nas políticas públicas.

"Há uma falta de dados por parte dos órgãos oficiais; o próprio IBGE tem apenas uma pergunta sobre o tema. Isso traz dificuldade para o mercado, para a sociedade civil, e gera um reforço da invisibilização dessas pessoas, feita pelo próprio Estado, ao deixar de entender mais sobre essa população", afirma.

A maioria dos respondentes da pesquisa nasceu após 1990 (76,4%). Almeida diz ter se surpreendido com o número de pessoas dentro deste recorte que não se declararam LGBTI+ durante o ensino médio. Mas representantes da comunidade ouvidos pelo Estadão relatam uma rotina de exclusão e isolamento comum ao longo da vida escolar, e a impossibilidade de discutir o tema em casa, com a família - que muitas vezes é tão hostil quanto o sistema educacional.

Acolhimento 'zero'

Para o publicitário carioca Felipe do Vale, de 29 anos, a experiência no ensino fundamental foi "zero acolhedora". Sem sequer se entender como gay, ele conta que sofreu homofobia dos colegas, com ataques psicológicos, verbais e físicos. Um dos piores episódios aconteceu quando picharam seu nome ao lado da palavra "bichona" na parede da sala de aula.

"Eu gelei quando vi, morri de vergonha. Aquilo ficou manchado na parede o ano inteiro e todos os dias, quando eu entrava, tentava fingir costume", lembra. A experiência, entretanto, não foi isolada e, apesar da boa vontade de uma professora, ele conta que os ataques eram recorrentes e a instituição pouco ou nada fazia para coibi-los. "Era bem frequente juntarem grupos de meninos para me baterem. A escola sempre foi um ambiente extremamente hostil."

O publicitário encontrou segurança entre as amizades femininas. "Elas me defendiam e saíam da aula uma de cada lado, me protegendo", diz. Ele, entretanto, só conseguiu se abrir sobre sua orientação sexual ao mudar de escola no final do ensino médio. "Fui compreender isso aos 16 anos e, ainda assim, fiquei muito tempo em silêncio e guardei para mim. Só me assumi quando conheci o primeiro amigo gay. Ele me disse que a família dele sabia e tudo bem, ele era feliz. Foi uma questão puramente referencial."

Foi também quando conheceu outras pessoas LGBTI+ que Naísa Zaiiah, de 30 anos, passou a refletir sobre ter sido alvo de xingamentos e agressões durante a infância e a adolescência em Osasco. "Mesmo sem eu entender, as outras pessoas já viam algo na minha essência. Eu não sabia se era um menino gay, não entendia bissexualidade. Minha cabeça estava confusa e eu não tinha com quem conversar, sempre senti muito medo", lembra.

"Dentro de mim, eu sempre soube que me assumir, ser uma garota ou parecer uma, seria um problema", conta. "Fui ameaçada (na escola), tomei tapa na cara, soco no estômago. Uma vez tentaram me arrastar para dentro do banheiro à força e enfiar minha cara na privada, mas não conseguiram". Apenas aos 26 anos ela se declarou publicamente como uma mulher trans e bissexual, mesmo que já soubesse disso desde muito antes. "Encontrei esse conforto e confiança na rua, com as outras pessoas LGBTI+ que conheci."

As histórias são similares à do curitibano Luiz Felipe Pedroso, de 36 anos, que conta ter sido vítima de bullying e ataques homofóbicos na escola antes mesmo de se entender como gay. Um episódio que o marcou particularmente foi quando um colega colocou fogo no seu cabelo, dentro da sala de aula. "As pessoas me achavam estranho por brincar com as meninas, mas eu não entendia o porquê, e acabei me colocando em um casulo. Rolava um processo de exclusão, que na época eu nem tinha consciência", conta.

Enquanto era chamado de "bichinha", "viadinho" e "Clodovil" na escola, Pedroso não sentia a abertura necessária para contar os problemas em casa e diz que só se sentiu "normal" ao conhecer outras pessoas LGBTI+ no curso de teatro. Um ano depois, ele decidiu finalmente se abrir para a família. "Tive que formalizar esse momento para os meus pais e foi muito pesado, porque eles também não foram educados para lidar com isso. Por mais que seja algo normal, eles aprenderam que era errado."

Aos 26 anos, Yago Goia, artista transexual e não-binária (identidade que não se limita às categorias "masculino" ou "feminino"), reconhece que é um ponto fora da curva dentre as pessoas LGBTI+, ao ter encontrado um ambiente acolhedor e aberto ao diálogo na ETEC Carlos de Campos, no Brás. "Entrei lá já sabendo que eu era gay, mas muito reprimida. Enquanto a palavra 'gay' não era sequer mencionada na minha casa, eu passei a conversar na escola e me informar nesse sentido", relata.

Yago lembra que a escola incentivava a expressão artística dos alunos e que aqueles que se entendiam enquanto LGBTI+ eram incluídos nas discussões sobre segurança sexual, prevenção a doenças sexualmente transmissíveis e métodos contraceptivos. "Tínhamos três professores LGBTIs, e isso ajudava na fluidez das conversas. Não havia formalidade em relação a isso, era comum. Se os professores passavam no corredor e viam um casal de mãos dadas, eles conversavam sobre camisinha, um diálogo totalmente aberto, sem tabus."

"Esse ambiente acolhedor refletia não só nos alunos LGBTs, mas se ampliava para uma conscientização de todo mundo", avalia Yago. "Provavelmente existiam outros formatos de bullying, mas todos os casos eram levados para a diretoria e havia conversa", aponta. Foi através desse "empoderamento" alcançado na escola que ela conseguiu levar a discussão para casa. "Minha família conseguiu entender que algo tinha mudado e que eu ser assim era uma realidade, não algo passageiro."

Rede de apoio pela diversidade

Criada em 2015, a Associação Brasileira de Família Homotransafetivas (Abrafh) é formada por membros da sociedade civil que se reúnem para debates e apoio entre núcleos familiares nos quais pelo menos uma pessoa seja LGBTI+. Dentre as queixas referentes ao ambiente escolar, o bullying contra os alunos é uma constante, assim como os problemas enfrentados pelos próprios responsáveis, que se veem atacados ou invisibilizados por sistemas que não os contemplam.

"Há uma falta de capacitação dos profissionais de educação para lidar com sexualidade e famílias LGBTI+, e de práticas que considerem a diversidade. Tanto professores quanto funcionários administrativos terminam os cursos de graduação sem qualquer disciplina que tangencie a o tema, chegando à sala de aula com seus próprios valores, opiniões e visões", explica Saulo Amorim, presidente da ABRAFH.

Advogado e servidor público do Colégio Pedro II, um dos mais tradicionais no Rio, Amorim, de 38 anos, cita que as reclamações dos afiliados à Abrafh vão desde fichas de matrícula que não permitem o preenchimento com dois pais ou duas mães até a recusa de instituições confessionais em receber membros de famílias LGBTI+. "A família e a escola são os dois ambientes principais na vida de qualquer criança ou adolescente, e, na maioria das vezes, são extremamente hostis nesses casos. Precisamos de uma mudança de perspectiva com apoio em políticas públicas."

Em 2018, o Ministério da Educação aprovou o uso do nome social para travestis e transexuais no ensino básico, prerrogativa que já estava autorizada pela pasta desde 2014 para estudantes que fizessem o Exame Nacional de Ensino Médio (Enem). Entretanto, a última tentativa a nível federal de formular políticas públicas voltadas ao ensino da diversidade sexual e de gênero no ambiente escolar foi feita em 2011 com o programa "Escola Sem Homofobia". Desenvolvida durante o governo Lula (PT), a iniciativa custou R$ 1,8 milhão para a elaboração de conteúdos que abordavam a discriminação com base em identidade de gênero e orientação sexual no espaço escolar.

O programa foi desautorizado em 2011, pela então presidente Dilma Rousseff (PT), após pressão das bancadas evangélica, católica e da família. À época, o governo anunciou que a iniciativa passaria por uma reformulação sem custos, mesmo já contando com o aval da Unesco e do Conselho Federal de Psicologia, mas a promessa nunca foi adiante. O material confeccionado, que seria distribuído para 6 mil escolas da rede pública, nunca foi entregue e passou a ser chamado entre políticos de direita como "kit gay".

Especialista em Educação Integral do Instituto Ayrton Senna, Cynthia Sanches aponta que trechos específicos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (IDB, 9394/96) e da própria Constituição Federal versam sobre princípios de equidade no acesso escolar e inclusão universal nesses espaços. "Do ponto de vista legal, precisamos colocar em prática algumas dessas orientações que já estão na lei. Mas, do ponto de vista do currículo escolar, ainda precisamos conquistar bastante discussão, sobre como as diversas identidades são trabalhadas", avalia.

"A cultura escolar precisa estar permeada por esses valores", observa Cynthia. "É algo que precisa fazer parte do dia a dia da escola, com o desenvolvimento das capacidades de todos os estudantes para aprender não só português e matemática, mas para conviver e se conhecer. Se um dos objetivos da escola é promover a cultura de não discriminação, isso tem que ser extramuros e com a família incluída, por meio de medidas de conscientização, prevenção e combate."

Primeira professora transexual da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Danieli Balbi, de 31 anos, já lecionou por mais de uma década no ensino básico das redes pública e privada de ensino. Ela afirma que é necessário um "enfrentamento programático" dos agentes públicos reguladores da oferta de educação à discriminação, através de planos de acolhimento, aceitação, naturalização e promoção da diversidade no ambiente escolar.

Outro ponto que ela acredita ser essencial para a inclusão desses alunos é o fortalecimento de grêmios e coletivos estudantis voltados para a comunidade LGBTI+. "Observei que assim, em geral, tanto a direção escolar, quantos os agentes intermediários e mesmos os responsáveis lidam melhor com a questão e alcançam, em algum grau, a mudança da cultura escolar."

Cynthia também defende que, para combater as violências contra pessoas LGBTI+ na escola, é necessário uma abordagem horizontal, conjunta e permanente entre as instituições de ensino e as famílias. "Só envolvendo todos os atores da comunidade escolar você consegue manter esse diálogo vivo e ser inclusiva, tendo uma agenda permanente para que a família também possa ouvir e ser ouvida sobre o tema."

Estadão
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