Tema, critério de correção e qualidade de ensino: o que pode explicar apenas 12 redações nota mil no Enem 2024
Com mais de 3 milhões de participantes, baixo número de redações com nota máxima chamou atenção; apenas 7% tiraram a partir de 950
Na segunda-feira, 13, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) divulgou o resultado do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2024. Em entrevista coletiva de imprensa, o ministro da Educação, Camilo Santana, reforçou que a média geral de proficiência foi de 546 pontos, um leve crescimento em relação ao ano anterior (543 pontos), apesar do aumento na adesão ao exame.
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A avaliação aplicada anualmente no Brasil tem como objetivo avaliar o desempenho dos estudantes que estão concluindo ou já concluíram o ensino médio, servindo como porta de entrada para diversas universidades e programas de acesso ao ensino superior, como o Sisu, ProUni e FIES.
Na redação, apenas 12 candidatos (0,00028% do total) alcançaram a nota máxima de 1000, enquanto 311.913 participantes obtiveram notas consideradas altas, entre 950 e 980, representando 7,21% dos inscritos.
Esse dado chamou a atenção da web. “Gente, 12 pessoas com nota 1000 dá menos de 0,5% do total! Vocês têm noção disso? Que loucura!”, escreveu um usuário. “Por que isso aconteceu?”, questionou outra.
Mudanças na correção da redação
Para responder essa pergunta, devemos levar em consideração alguns fatores. João Vianney, doutor em Ciências Humanas e psicólogo especializado em Educação, explica que se criou, ao longo dos anos, uma "indústria do modelo de redação nota 1000", alimentada pelas regras claras de correção e pela publicação anual dos melhores textos pelo Inep.
Na opinião dele, isso facilitou a identificação de estruturas ideais para a redação, geralmente em quatro parágrafos bem alinhados, que garantiam boas avaliações.
Com o tempo, diz ele, surgiram "modelos pré-prontos" que contemplavam todas as dimensões da avaliação, restando ao candidato apenas adaptar o tema, ajustar os argumentos e calibrar a proposta de intervenção.
Para combater essa padronização, o Inep implementou, no Enem 2024, uma segunda banca de revisão para textos inicialmente avaliados com nota 1000. Essa revisão mais criteriosa resultou na perda de até 40 pontos em muitos casos, reduzindo significativamente o número de notas máximas, que caiu para apenas 12 em todo o País.
Daniela Garcia, professora de Redação do Curso Enem Gratuito, diz que, desde 2020, os critérios de correção da redação do Enem se tornaram mais claros e públicos e concorda que isso tem impactado diretamente a forma como os estudantes se preparam para o exame.
Contudo, ela alerta que, apesar dessa transparência, a redação do Enem continua exigindo habilidades que vão além do simples conhecimento das regras. Para Daniela, o maior desafio dos estudantes não é apenas dominar as competências do Enem, mas conseguir se distanciar de um estilo de escrita fragmentada e excessivamente pessoal, que se popularizou com o uso das redes sociais.
“A escrita formalizada é um grande desafio. A maioria dos alunos escreve de forma muito personalizada e fragmentada. Isso cria um hiato quando se tenta escrever de maneira mais estruturada, como exige o Enem”, observa a especialista.
Ela destaca a importância de uma prática constante de escrita para superar essa dificuldade, já que, de maneira geral, os estudantes têm poucas oportunidades de exercitar a escrita formal, salvo em cursos pré-vestibulares.
Tema da redação
Entre as especulações sobre o motivo do Enem 2024 só ter registrado 12 notas mil na redação, muitos internautas mencionaram a defasagem deixada pela pandemia, mas para Sérgio Paganim, professor de Redação do Curso Anglo, não existe relação direta. “Minha análise é que essa redução provavelmente tem mais relação com o tema. Os desafios da valorização da herança africana é um tema muito mais próximo do universo de referências dos candidatos”, explica.
Paganim diz que os conteúdos abordados no ensino médio, como história, geografia, filosofia, sociologia e redação, são fundamentais para compreender o papel das ciências humanas na análise de temas relacionados à relação da sociedade atual com seu passado escravocrata e à valorização da herança cultural africana. Ele destaca que, em diferentes períodos históricos, essa valorização não foi constante, o que torna essencial um olhar crítico e articulado sobre o tema.
Para ele, a escolha de um tema mais simples em redações, como em provas do Enem ou vestibulares, pode levar as bancas a adotarem critérios mais rigorosos na avaliação. "Quando o tema é mais acessível, a expectativa é que os candidatos apresentem um repertório e uma linguagem mais articulados. Assim, a banca se posiciona de forma mais exigente para avaliar aspectos como a articulação temática e o domínio da linguagem", observa.
Ele ainda ressalta que, quando o tema é mais complexo, as bancas tendem a ser mais condescendentes, pois as expectativas podem não ser totalmente atendidas. Já com temas considerados mais simples, é possível que os corretores adotem um olhar mais criterioso para garantir uma avaliação mais precisa e discriminatória entre diferentes níveis de desempenho.
"A prova precisa distinguir entre notas excelentes, ótimas, boas, regulares e irregulares. Esse rigor na avaliação está diretamente relacionado à escolha do tema e à necessidade de discriminar os diferentes níveis de desempenho entre os candidatos", conclui.
Influência da pandemia
Já para Juliana Azevedo, mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e gerente de projetos no Instituto Ayrton Senna, a pandemia afetou, sim, o desempenho dos estudantes no Enem. Para ela, o afastamento dos alunos das escolas obrigou muitos a se adaptarem rapidamente ao ensino remoto e a desenvolverem uma gestão mais autônoma dos estudos, algo que nem todos estavam preparados para enfrentar.
"Além disso, muitos não tinham acesso à tecnologia e aos recursos necessários para acompanhar as aulas no formato imposto pelo distanciamento social", ressalta. Ela também destaca que o isolamento social, as perdas de pessoas próximas e o cenário de incertezas impactaram significativamente os jovens, trazendo "marcas da defasagem de aprendizado e do desenvolvimento social" que ainda são percebidas hoje.
Outro desafio enfrentado pela educação brasileira é a chamada "crise do ensino médio". Juliana pontua que há anos as esferas governamentais, instituições acadêmicas e organizações da sociedade civil discutem a necessidade de reformular o atual formato dessa etapa de ensino.
"O objetivo é torná-lo mais interessante e adequado aos jovens de hoje, introduzindo novas formas de aprendizado, conteúdos e discussões", explica. Apesar dos esforços, ela afirma que "ainda não chegamos a um modelo que atenda aos principais pontos de interesse das diversas frentes envolvidas", sendo necessário buscar uma educação de qualidade que contemple as necessidades dos jovens brasileiros.
Além disso, Juliana chama atenção para a queda no número de leitores no Brasil e suas consequências na formação de escritores e pensadores críticos. "Estar em contato com livros, diferentes narrativas e leitores é essencial para quem precisa discorrer sobre temas diversos e conectar ideias", argumenta.
Para ela, o hábito de leitura vai além dos livros, envolvendo também o consumo de jornais, revistas de opinião e até redes sociais – desde que acompanhado de um olhar crítico. "Saber identificar boas fontes e checar informações são habilidades fundamentais que os leitores precisam desenvolver para produzir textos de qualidade", conclui.
O que é avaliado?
Entre as competências avaliadas na redação do Enem, Daniela Garcia aponta que os alunos perdem mais pontos nas competências 1 e 3. A competência 1 avalia a gramática do texto, e qualquer desvio gramatical pode resultar na perda de pontos. “A rigidez dessa competência é notável, pois um único erro pode custar até 40 pontos, o que impacta diretamente a nota final”, explica.
Já a competência 3, que envolve a autoria e a argumentação do texto, também apresenta desafios, principalmente devido à prevalência de modelos pré-prontos e textos pouco autorais. “Muitos alunos acabam optando por textos mais enrijecidos, seguindo modelos semi-estruturados, o que prejudica a originalidade e a força argumentativa”, afirma Daniela.
Em relação à justiça do sistema de correção, Daniela acredita que é difícil avaliar a justiça de um processo de grande escala como o Enem. “Existem falhas, sim, no sistema, como a rigidez dos modelos de redação, mas é complicado falar em injustiça, já que estamos lidando com uma avaliação de larga escala”, diz.
Para ela, o ensino da redação precisa ir além dos moldes do Enem. “Os professores devem ensinar os alunos a escrever de forma autoral, coesa e bem estruturada antes de ensiná-los a escrever uma redação para o Enem”, sugere.
Soluções
A busca por soluções para os baixos resultados no Enem e em outras avaliações formais frequentemente recai sobre medidas como o aumento da carga horária de disciplinas como Língua Portuguesa e Matemática, consideradas centrais na formação acadêmica. No entanto, Juliana Azevedo ressalta que esse tipo de abordagem pode ocorrer "em detrimento de outras disciplinas, como Filosofia e Sociologia", o que representa uma visão limitada da educação.
Juliana destaca que é necessário trazer práticas como a leitura, o debate e a construção de ideias para todas as áreas do currículo e para os diferentes espaços da escola. "A escola deve ser pulsante, estimular o conhecimento de diferentes formas e garantir que os estudantes exercitem tanto as competências cognitivas quanto as socioemocionais", argumenta. Segundo ela, atividades como projetos, trabalhos em grupo e ações individuais são ferramentas valiosas para promover uma aprendizagem mais significativa.
"Ao aprender com curiosidade e criticidade, exercitando a leitura e a escrita em diferentes momentos da rotina escolar, o estudante terá uma formação mais qualificada", afirma Juliana. Essa abordagem não apenas impacta os resultados no Enem, como também prepara os jovens para a vida de maneira ampla, tanto no âmbito acadêmico quanto pessoal. A reflexão proposta ressalta a importância de uma educação que vá além dos conteúdos avaliados formalmente, promovendo o desenvolvimento integral do indivíduo.