Travesti brasileira celebra mestrado em Harvard e planeja futuro: "Quero chegar na ONU"
Victória Dandara Amorim relembra dificuldades que enfrentou e as violências que superou para realizar o sonho de mudar de vida com estudos
A advogada Victória Dandara Toth Rossi Amorim, de 25 anos, está prestes a fazer história. Ela será a primeira travesti brasileira declarada a fazer mestrado na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.
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Filha mais velha de uma família de quatro irmãos, Dandara, como prefere ser chamada, nasceu e foi criada em Itaquera, na Zona Leste de São Paulo. Sua mãe é sobrevivente de violência doméstica e, assim que pôde, optou pela maternidade solo.
Além do trauma que precisou administrar ao longo da sua infância, Dandara conta que algo ainda mais marcante em sua trajetória é um conselho que sempre ouvia de sua mãe: "a única possibilidade é estudar".
"Os primeiros anos da minha vida foram vendo meu pai agredindo minha mãe de várias formas. Quando ela se separou e voltou a ser professora para garantir o sustento, ela sempre incentivou o estudo. Ela dizia: 'Nós somos pobres, então a única possibilidade é estudar'. Isso sempre me marcou. Eu tinha que ser a melhor em todos os âmbitos e, quando me identifiquei como travesti, isso ficou ainda mais forte", lembra.
Harvard nunca pareceu uma possibilidade para aquela jovem de origem pobre. A universidade, uma das melhores de todo o mundo, só lhe era acessível nos filmes e pela televisão. Agora, que a formação na renomada instituição, é real, ela já se permite sonhar ainda mais.
"São as travestis chegando em lugares que antes não eram imagináveis, ainda mais vindo da realidade em que eu nasci", celebra.
"Meu sonho profissional agora é estar num trabalho que eu sinta que esteja mudando a vida das pessoas. Posso dizer que quero chegar na ONU? Acredito que hoje eu possa, sim. Talvez ser presidenta da organização... Mas, além da cadeira, saber que estou dando lugares para meninas trans do amanhã", sonha Victória Dandara Amorim, primeira travesti brasileira a ir pra Harvard.
A ideia de estudar em Harvard veio quando conheceu as bolsas de estudos internacionais da Fundação Estudar. A instituição ajuda pessoas a estudarem para as provas e a lidar com as burocracias necessárias para adentrar nas universidades norte-americanas. Com esse suporte, ela conseguiu passar não apenas em Harvard, mas em uma lista de faculdades que inclui Berkeley, Northwestern, Georgetown, Nova York (NYU), Columbia, Los Angeles (UCLA) e American University.
Nem todo o caminho teve essa glória
Gostar do estudo era muito mais do que Dandara conseguia compreender. Hoje, ela considera um local de aconchego, mas reconhece que tinha um sentimento de responsabilidade. Como irmã mais velha, ela já havia presenciado o pior e queria proporcionar à mãe e aos irmãos o que há de melhor.
"Eu não tenho brinquedos da infância, todos foram comidos por ratos. Eu não acho isso bonito, eu vejo e acho cruel. Eu acho bonito a força que eu tive para sair dessa realidade. Também não acho que outras pessoas tenham que passar por isso pra chegar onde estou", admite.
Na adolescência, Dandara conseguiu uma bolsa para cursar o ensino médio em um colégio particular religioso. Sua transição de gênero, inclusive, ocorreu neste período. A instituição, ao saber o que acontecia, não retirou seu benefício, mas também não a acolheu.
Segundo relata, ela era proibida de usar o banheiro da instituição, para evitar que os pais das alunas reclamassem. Dandara, então, tinha que atravessar a rua e utilizar o banheiro de shopping que ficava em frente à instituição onde estudava.
Seu nome social também não foi adotado oficialmente pela direção. Dandara teve de recorrer a cada professor, individualmente, e alguns até riram ao receber o pedido, conforme conta.
O desconforto dos colegas frente ao seu desempenho acadêmico também dificultou sua vida. A vontade de desistir foi grande, mas, ela lembra, sua mãe nunca permitiu.
"Foi um trabalho de resiliência meu e da minha mãe para me formar. Ela me obrigou. Eu quis desistir, mas ela não deixava. Tive colegas que olhavam torto e, quando eu transiciono, isso se torna mais brutal", conta ela, que passou na USP na primeira tentativa.
"Para muitos dos meus colegas, era inaceitável. E, assim, eu sempre falo: eu só consegui transicionar, manter minha cabeça nos estudos, não desistir de tudo e virar estatística, por causa da aceitação da minha mãe. Sou uma travesti indo para Harvard, mas sou uma travesti com privilégios. Esse apoio familiar, a maioria absoluta não tem", afirma Dandara.
Mais do que conquista, denúncia
Inicialmente aprovada para cursar Políticas Públicas, ela migrou para Direito e fez um intercâmbio na Rússia, onde encarou o medo de ser presa. No país, a homossexualidade e a transsexualidade são considerados crimes.
Ela se formou como a primeira travesti declarada do Largo São Francisco. Mais do que uma vitória, seu diploma simboliza uma denúncia.
"Até a minha turma foram 191 anos de instituição, então temos quase duzentos anos sem nenhuma pessoa trans entrando de forma assumida. Temos pessoas que entraram, formaram e se identificaram trans depois, mas não é a mesma situação. É diferente você sendo travesti prestar a prova e ocupar aquele espaço. O meu corpo gera estranhamento nos professores, nos alunos, mas se você sai dali, você vê esses corpos na rua, na prostituição… Ou seja, é comum ver corpos como o meu do portão pra fora, não ao contrário. Chega-se à conclusão que temos aí 191 anos de uma instituição que formou 14 presidentes brasileiros, mas não conseguiu formar uma travesti até então".