"Bolsonarismo usa YouTube para colocar eleições em xeque", diz pesquisadora
Número de vídeos publicados em canais alinhados a Bolsonaro com referências ao STF, ao TSE e a seus ministros vem crescendo desde setembro
Canais do YouTube que apoiam narrativas políticas alinhadas ao presidente Jair Bolsonaro vêm publicando cada vez mais vídeos com menções a tribunais superiores ou aos seus ministros, em grande parte com teor hostil. Em setembro de 2021, foram 185 referências a esses temas, e em junho de 2022, 1.409.
O monitoramento é feito pela pesquisadora Letícia Capone, do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Internet e Política da PUC-Rio, que aponta que o YouTube é hoje a rede social "onde as narrativas mais sensíveis sobre a democracia e as instituições são construídas e disseminadas" pelo ecossistema bolsonarista, com ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF), ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ao sistema de votação.
A estratégia que motiva a produção de cada vez mais conteúdo contra as Cortes e seus integrantes, segundo Capone, é colocar em xeque a rigidez do sistema eleitoral e a legitimidade das instituições, para facilitar um eventual movimento posterior às eleições de questionamento do resultado. "Esse não seria um fenômeno novo, visto o que ocorreu no Capitólio, após a derrota de Donald Trump nas eleições norte-americanas", afirma.
A rádio Jovem Pan, emissora que na década passada especializou-se no nicho antipetista e hoje é ouvida e respeitada por parcela importante dos bolsonaristas, aparece com destaque no monitoramento de cerca de 600 canais no YouTube, que abrange canais filiados a variadas linhas ideológicas e da imprensa profissional.
No período de 20 a 26 de junho, três programas da Jovem Pan - Os Pingos nos Is, Jovem Pan News e Pânico - tiveram, somados, 26,8 milhões de visualizações no YouTube. Para comparação, o portal de notícias UOL, um dos maiores do país, teve 4,5 milhões no mesmo período. A CNN Brasil, 3,3 milhões.
DW Brasil: Como é a pesquisa e quantos canais são monitorados?
Letícia Capone: Acompanhamos canais e perfis de diversos campos políticos, da direita, do centro, da esquerda, além de perfis e canais ligados à imprensa, focando nos que fazem um debate relacionado às pautas políticas nas redes. No YouTube, cerca de 600 canais são monitorados.
Segundo o monitoramento, de 20 a 26 de junho, três programas da rádio Jovem Pan - Os Pingos nos Is, Jovem Pan News e Pânico - tiveram, somados, 26,8 milhões de visualizações no YouTube. Para comparação, o portal de notícias UOL, um dos maiores do país, teve 4,5 milhões no mesmo período, segundo sua pesquisa. Qual é o papel da Jovem Pan no ecossistema bolsonarista hoje?
A Jovem Pan tem um papel de centralidade na linha argumentativa que busca dar coerência às pautas alinhadas ao governo. O que a gente observa é que os outros canais que fazem parte desse sistema de apoio em torno do presidente Jair Bolsonaro muitas vezes fazem referências aos programas da Jovem Pan. Eles adotam e ampliam o marco narrativo estabelecido ali.
A Jovem Pan propaga o discurso estabelecido pelo presidente e seu núcleo duro?
Na verdade, há um constante diálogo entre a Jovem Pan e esse ecossistema de canais e perfis em torno de Bolsonaro. A Jovem Pan é uma emissora que mistura programas com conteúdo factual e programas com conteúdo opinativo, e normalmente as discussões começam a partir da pauta dessa emissora. Outros canais e perfis vão amplificar marcos narrativos que começam, pela nossa observação, na Jovem Pan.
Qual é a função e a relevância do YouTube na rede bolsonarista como um todo?
O YouTube vem se configurando como um espaço onde as narrativas mais sensíveis sobre a democracia e as instituições são construídas e disseminadas. Dentro desse ecossistema específico da extrema direita, cada rede social cumpre uma função. No Instagram e no Facebook, os perfis pessoais, especialmente os de políticos, têm maior proeminência. Já no YouTube, os canais de mídias e blogs têm centralidade maior.
Sobre o que os vídeos no ecossistema da extrema direita no YouTube têm falado com mais frequência?
O que chama a atenção é uma tendência desse campo em conferir maior importância aos temas envolvendo os ministros [de tribunais superiores] e as instituições do Judiciário. O presidente Jair Bolsonaro foi o nome com mais menções de setembro de 2021 a março de 2022, seguido por conteúdos relacionados aos tribunais e aos ministros, um conteúdo que ganha maior relevância, em termos quantitativos, do que a agenda envolvendo os pré-candidatos, como Lula e Ciro Gomes.
O que explica a estratégia da extrema direita de produzir conteúdo sobre as Cortes e os ministros?
Algumas pesquisas apontam uma tendência de esvaziamento da importância do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral para esse campo. Isso se soma à produção de conteúdo que coloca em xeque a rigidez do sistema eleitoral e a legitimidade das instituições, que pode facilitar um movimento posterior às eleições de questionamento dos resultados. Esse não seria um fenômeno novo, visto o que ocorreu no Capitólio, após a derrota de Donald Trump nas eleições norte-americanas.
Como essa narrativa sobre o processo eleitoral modificou-se nos últimos meses e em que ponto está agora?
A extrema direita variou a mobilização de argumentos em torno do sistema eleitoral brasileiro. Em um primeiro momento, foram mobilizados temas relacionadas ao voto impresso, e o enquadramento foi o da interferência do Judiciário na votação da PEC [sobre voto impresso] e o da necessidade da intervenção pelo uso do artigo 142 [da Constituição]. Com o passar do tempo, outros argumentos foram sendo mobilizados, também com base na Constituição, como a necessidade da auditagem pública dos resultados das eleições, narrativas em torno da existência de uma sala secreta [no TSE] e da obsolescência das urnas eletrônicas utilizadas no Brasil. Outro tema que também ganha centralidade nas redes de apoio ao presidente é a relação entre as Forças Armadas e o TSE e a constante tensão entre essas instituições, a partir do momento em que o TSE convida as Forças Armadas a compor a Comissão de Transparência que acompanha o processo eleitoral.
Pela métrica de vocês, a extrema direita tem desempenho muito melhor em termos de visualizações no YouTube do que os canais de esquerda e de centro e os da mídia profissional. Isso é resultado da amostragem de vocês, ou a extrema direita de fato tem mais sucesso no YouTube?
Nossas pesquisas têm como objetivo ter um ponto de isenção na observação do espectro político como um todo. Não dá para estabelecer uma relação de causa e efeito, mas a gente percebe que existe um alinhamento da agenda e de enquadramento dos canais e perfis da extrema direita, e isso certamente facilita a difusão das informações e a consolidação de uma quantidade maior de canais dentro desse campo político, assim como uma quantidade maior de visualizações.
A extrema direita vai melhor no YouTube do que o centro e a esquerda?
O que a gente observa é que houve uma aposta de fato da extrema direita em adotar o YouTube como uma plataforma importante para as suas comunicações, assim como o Telegram. Talvez esse objetivo não tenha sido cumprido de forma tão eficiente pelo campo mais alinhado às pautas progressistas, mais localizado na esquerda. Com o desenvolvimento de novas redes sociais isso vai se redesenhando, mas, no YouTube, o que a gente observa é que de fato existe uma predominância das pautas e dos canais relacionados à extrema direita.
O YouTube tem agido para conter a expansão de ataques a instituições da democracia e ao sistema eleitoral?
O TSE vem estabelecendo alguns acordos com plataformas de redes sociais, é uma medida que aponta para um caminho. Mas ainda existe um conjunto de agendas que pode avançar. O YouTube vem adotando algumas ações, especialmente nos últimos meses, como retirar conteúdo falso e desinformativo relacionado às eleições. Outra ação é a rotulagem de alguns vídeos com conteúdo sensível, o Instagram fez isso de forma consistente nas postagens relacionadas a vacinas e à covid. Isso aponta para um caminho de práticas que podem melhorar a comunicação que circula nas redes sociais.
É suficiente? O que mais poderia ser feito?
Existem mais ações que podem ser tomadas. Por exemplo, incorporar nas suas políticas de moderação e nos termos de uso, como em outras partes do mundo já incorporam, a defesa da integridade do sistema eleitoral e das instituições. Outra ação é dar mais transparência às ações de moderação, de remuneração dos canais e de anúncios políticos que circulam nas redes.