Impopularidade de Crivella e esquerda dividida favorecem Paes no Rio
Vencedor na capital no 2º turno contra Witzel pelo Governo em 2018, Eduardo Paes sai na frente na corrida pela prefeitura carioca em 2020
"Sobrevivente" da era Sérgio Cabral, cujo grupo político integrou no Rio, o ex-prefeito Eduardo Paes (DEM) desponta como grande favorecido pelo quadro político fluminense para a eleição de 2020 de prefeito da capital. Mesmo com o antigo "padrinho" preso e condenado a mais de 200 anos por corrupção e outros delitos, Paes aposta em um flerte com o voto bolsonarista e no fato de ter ficado fora do furacão de processos da Lava Jato para voltar ao Palácio da Cidade. Para atingir esse objetivo, conta ainda com a impopularidade do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) e com a divisão das esquerdas, que miram a sucessão presidencial de 2022.
"Paes, pelo que estou acompanhando, não vai bater no (presidente Jair) Bolsonaro, vai tentar sair da disputa nacional e ficar na agenda local", prevê o cientista político Ricardo Ismael, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). "Como foi prefeito, conhece muito os problemas da cidade e leva vantagem no debate regional." O pesquisador acredita que o segundo turno será disputado entre Paes e um candidato da esquerda ou Crivella, que ganhou visibilidade positiva com a pandemia - mas, ressalta, tem problemas. O ex-prefeito namora uma coligação com Cidadania, PV, Avante e Democracia Cristã.
Em 2018, Paes venceu o segundo turno da eleição para governador na capital, onde foi prefeito por dois mandatos, com 51,69%. Teve na cidade 1.627.367 votos, contra 1.520.888 (48,31%) para Wilson Witzel (PSC). No Estado, porém, sob o peso de Cabral, o ex-prefeito foi amplamente derrotado, com 40,13% (3.134.400) da votação. Witzel teve 59,87% (4.675.355), folga de mais de 1,5 milhão de votos. O governador venceu a disputa brandindo o perfil de ex-juiz, o discurso de defesa do enfrentamento violento da crime e o apoio do bolsonarismo.
O cenário atual é diferente. Em meio a investigações de corrupção na saúde, rompido com Bolsonaro e acusado de incompetência no enfrentamento da pandemia, Witzel está à beira de um impeachment na Assembleia Legislativa. Não deverá ter nenhum papel relevante na campanha, e é possível que até lá nem seja mais governador. Mas, escaldado pela derrota para um político desconhecido e azarão que surfou na onda Bolsonaro e no voto evangélico no fim da campanha de 2018, o ex-prefeito traçou um plano. Já avisou a aliados que não vai criticar o presidente, ainda que possa fazer críticas pontuais ao governo.
Foi o jeito que Paes achou de construir um "caminho do meio" na polarização que divide o País. Disputa assim pelo menos parte do voto conservador - e bolsonarista - com Crivella. Motivos para essa cautela e cobiça sobram. Em 2018, no segundo turno, de cada três votos válidos na corrida presidencial, Bolsonaro teve dois. Conseguiu 66,35% das preferências, votação de 2.179.896 sufrágios. Apesar de o quadro atualmente ser diverso - pesquisas apontam que o presidente tem em torno de 50% de avaliação ruim ou péssima para seu governo -, ainda tem cerca de 30% de bom e ótimo. Isso indica resiliência do voto conservador e um nicho a explorar.
Assim como Paes, Crivella conhece bem esse quadro. Com uma gestão sem marca, acusada de desmonte em áreas sociais e que enfrentou aguda crise na saúde, no ano passado, o prefeito buscava uma saída para sua aguda impopularidade. Em dezembro de 2019, segundo o DataFolha, 72% dos eleitores da cidade avaliavam seu governo como ruim ou péssimo. Esse número inviabilizaria sua reeleição, já que, em tese, em uma conta grosseira, lhe restaria apenas 28% do eleitorado a disputar.
O desastre na opinião pública levou Crivella a radicalizar à direita e nas sinalizações ao eleitorado evangélico. Assim, mandou apreender revistas supostamente impróprias para menores, na Bienal do Livro. Também carregou no populismo, ao mandar destruir a praça do pedágio da Linha Amarela, uma concessão municipal que estaria cobrando acima do que permitiria a lei. A pandemia lhe deu a chance de fazer algo que, na prática, não tinha feito até então - mostrar serviço. Isso pode ter ajudado o prefeito a melhorar suas chances na eleição, mas há muito desgaste, diz Ismael.
"Crivella tenta buscar o voto bolsonarista, principalmente ligado ao movimento evangélico", disse o cientista político - o prefeito é bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). O pesquisador vê chances de o prefeito avançar no eleitorado, por sua ação na pandemia. "Até a eleição, ainda vai ter muita coisa de covid-19 no Rio de Janeiro, o prefeito terá muita visibilidade."
Em seu esforço para atrair o voto bolsonarista, Crivella conseguiu a filiação de dois filhos do presidente, o senador Flávio Bolsonaro e o vereador Carlos Bolsonaro, ao partido Republicanos. Os novos filiados - e os acenos amistosos do prefeito ao presidente - geraram especulações sobre uma suposta chapa em que o presidente indicaria alguém de confiança para vice-prefeito. Nessa moldura, um Crivella reeleito, renunciaria em 2022 para disputar o governo estadual. Bolsonaro teria a máquina da prefeitura do Rio para tentar ficar no Planalto.
É improvável, porém, que isso se concretize. O presidente avisou, em março, que não pretende participar do primeiro turno da disputa de 2020. Para Ismael, a participação de Bolsonaro não seria "bom negócio" para ele. Nacionalizaria a eleição e levaria para o colo presidencial o ônus de uma eventual derrota. Não seria tão impossível assim, se o candidato for um prefeito impopular e tiver apoio de um presidente com rejeição em alta. "É uma reeleição ainda difícil, mas Crivella tenta chegar ao segundo turno", disse Ismael.
Pré-candidata à prefeitura, a presidente do PROS—RJ, deputada federal Clarissa Garotinho, tenta cavar um espaço ao centro. Sua possível candidatura representará a família Garotinho na disputa. Clarissa tem criticado a polarização entre direita e esquerda na política brasleira. Afirma que esse embate tem atrapalhado a solução de problemas do País. Apresenta-se como independente:apoiou alguns projetos do governo Bolsonaro na Câmara, mas votou contra a Reforma da Previdência, em 2019. No Rio, critica o atual prefeito e o ex-prefeito.
"O Eduardo Paes contratou obras no crediário, endividando a cidade de uma forma absurda, reduzindo drasticamente a capacidade de investimento do município e jogando essa conta no colo da população e do atual prefeito. Por sua vez, o Crivella mostrou-se totalmente incapaz para driblar as dificuldades financeiras. Ele demorou demais pra renegociar a dívida, a juros mais baixos. E o que é pior: Crivella não conseguiu sequer ser um bom síndico da cidade, que é o mínimo que se espera de um prefeito", diz Clarissa.
Como a esquerda se organiza no Rio
Em seu esforço para nacionalizar o pleito no Rio, a esquerda provavelmente tentará colocar o presidente no centro da disputa, em uma tática plebiscitária de explorar a rejeição ao bolsonarismo. O problema é que, desde o segundo turno de 2018, há mágoas e rivalidades que dividem os partidos desse campo. Existem ainda questões práticas. A nova legislação proíbe coligações para o Legislativo e impõe cláusula de barreira nas câmaras municipais.
"A cláusula de barreira e o fim das coligações proporcionais fazem com que os partidos busquem o caminho da autoconstrução", afirma Washington Quaquá, vice-presidente nacional do PT. "As duas tendem a reorganizar o quadro partidário. E estamos vivendo esse processo."
Não foi só a necessidade de eleger vereadores, porém, que implodiu a aliança que o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL) articulava. Contra o bolsonarismo, ele propunha uma "frente ampla do campo democrático" com PT, PDT, PSB para enfrentar o que chamou de "fascismo" - a direita bolsonarista. A coligação lhe daria tempo de televisão, recursos e capilaridade para enfrentar um provável segundo turno com Paes - o deputado do PSOL raspava os 20% nas pesquisas. O espectro de candidaturas a presidente em 2022, como as de Ciro Gomes (PDT) e a que for lançada pelo PT, inviabilizou a união.
O PT já decidiu que disputará o pleito com a candidatura de Benedita da Silva. Quadro pioneiro do partido, a deputada federal já tentou a prefeitura em 1992. Perdeu para Cesar Maia, então no PMDB, sob pressão de denúncias contra um dos filhos. Foi eleita vice-governadora em 1998, em aliança imposta pela direção nacional petista. Assumiu o governo em abril de 2002, quando o governador Anthony Garotinho renunciou para tentar a Presidência pelo PSB. Teve passagem discreta pelo primeiro governo do presidente Luiz Inácio da Silva, como ministra da Secretaria Especial de Trabalho e Assistência Social. Sua candidatura demonstra a dificuldade do PT para se renovar. Elegeu-se pela primeira vez em 1982, vereadora. Ex-empregada doméstica e ex-militante comunitária, Benedita é evangélica e graduada em Serviço Social. O partido também dificilmente conseguirá aliança relevante para apoiá-la.
"Se for o caso iremos ver um vice do próprio PT que ajude a compor o programa, o imaginário", explica Quaquá. "Estamos operando em um campo mais conceitual, digamos, de afirmação do petismo-lulismo."
Com a retirada de Freixo, o PSOL resolveu apostar na deputada estadual Renata Souza como candidata à prefeitura. Ex-chefe de gabinete da vereadora Marielle Franco (PSOL), assassinada em março de 2018, Renata foi eleita deputada estadual em 2018, pela primeira vez. É uma aposta do partido na memória deixada por Marielle. Sua trajetória é parecida com a da ativista morta por pistoleiros. Renata é negra, militante da área de direitos humanos, nasceu e foi criada na Maré, estudou com bolsa integral na PUC do Rio. Graduada em jornalismo, é doutora em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e fez pós-doutorado em Mídia e Cotidiano pela Universidade Federal Fluminense.
Deputada estadual pelo PDT, Martha Rocha tentará sua candidatura com apoio do PSB e da Rede. A parlamentar, delegada aposentada, foi a primeira mulher a chefiar a Polícia Civil do Rio. Tem pós-graduações em Direitos Humanos, Direito Penal, Administração Pública e Políticas Públicas, com passagens pela UFRJ e Universidades Estácio de Sá, Cândido Mendes e do Estado do Rio de Janeiro. Parlamentar de segundo mandato, será um baluarte de Ciro Gomes no Rio. Para Ismael, tem potencial de crescimento, mas enfrentará um obstáculo: as demais candidaturas de esquerda. "Esse campo vai estar muito dividido", ressalta ele.
Em uma espécie de segundo pelotão, virá o deputado estadual Rodrigo Amorim, do PSL. Conhecido por ter quebrado uma placa com o nome de Marielle Franco em 2018 - com o que ganhou notoriedade -, Amorim não é mais tão próximo dos Bolsonaros, como era quando foi eleito. Em uma caderneta de Márcia Aguiar, mulher de Fabrício Queiroz, ex-assessor de um dos filhos do presidente, Flávio Bolsonaro, investigado no caso das "rachadinhas", apreendida pelo Ministério Público, estão anotados o nome e o celular de Amorim, entre outros. Seria uma das pessoas que poderiam ajudar, se Queiroz fosse preso, como revelou o Estadão. O ex-assessor foi capturado em 18 de junho, na Operação Anjo, em um imóvel registrado como escritório de advocacia por Frederick Wassef, que se apresentava como advogado da família presidencial. O deputado já o elogiou e chamou de amigo.
O PSDB deverá lançar a candidatura de Paulo Marinho. Suplente de Flávio, ele rompeu com a família Bolsonaro. Em maio, disse à Folha de S. Paulo que entre o primeiro e o segundo turno da campanha de 2018 um delegado da Polícia Federal vazou ao então senador eleito que seria deflagrada a Operação Furna da Onça, contra corrupção na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O policial teria contado ainda que Queiroz estava entre os suspeitos de movimentações financeiras incompatíveis com a renda na Alerj. Afirmou também que a PF estava "segurando" a ação para não prejudicar Jair Bolsonaro, que disputava com Fernando Haddad (PT) o segundo turno.
Como teriam recebido a informação com antecedência, os Bolsonaros demitiram Queiroz do gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio e a filha dele, Nathalia Queiroz, da assessoria do então deputado federal em Brasília, segundo essa versão. Flávio nega tudo. Diz que Marinho quer que seja cassado, para ficar com sua vaga no Senado.
Alinhado ao governador de São Paulo, João Doria (PSDB), também postulante ao Planalto em 2022, Marinho substitui outro ex-bolsonarista, o advogado Gustavo Bebbiano. Nomeado secretário-geral da Presidência em janeiro de 2019, Bebbiano deixou o governo logo depois, em fevereiro, após conflito com o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos), outro filho do presidente. O ex-secretário-geral filiou-se ao PSDB e tornou-se pré-candidato a prefeito. Morreu de um ataque cardíaco em 14 de março de 2020.