Marina Silva: "Manipulação bolsonarista prejudica a fé evangélica"
Em entrevista, ex-ministra afirma que "armas, intolerância e política de ódio não tem nada que ver com os ensinamentos de Jesus"
Durante um ato de campanha na última segunda-feira, 24, em São Paulo, o candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) "repreendeu" a ex-ministra Marina Silva (Rede-SP) após uma fala dela em defesa dos avanços observados na área ambiental nos dois governos do petista.
"Que nunca mais você fale que o governo do Lula fez isso", afirmou. "Você fazia parte do governo e é responsável por quase tudo o que foi sucesso em política ambiental." A troca de elogios no palco do Tuca, o teatro da PUC, foi o ponto alto de uma reaproximação tida como improvável há poucos anos.
As feridas abertas pela ofensiva petista contra Marina na eleição presidencial de 2014 pareciam insuperáveis. Mas, ante a ameaça da reeleição do presidente Jair Bolsonaro, a ex-senadora entrou de cabeça na campanha de Lula, após 14 anos de rompimento com o PT.
O apoio foi anunciado ainda no primeiro turno, no dia 12 de setembro, quando Lula assinou um compromisso com uma série de propostas elaboradas pela ex-ministra para a área socioambiental.
Um dos pontos mais caros da agenda é a adoção de uma política ambiental transversal, que perpasse todas as áreas do governo, e não apenas o Ministério do Meio Ambiente. Trata-se de uma demanda apresentada por Marina desde que integrava o governo Lula, e nunca atendida.
As outras propostas incluem a tolerância zero com o desmatamento, um plano de infraestrutura voltada ao desenvolvimento sustentável e a criação de uma autoridade nacional para o risco climático e o cumprimento das metas internacionais, entre outros tópicos.
"Já há uma política pública que deu certo", diz Marina Silva, em referência à gestão ambiental nos governos anteriores de Lula. Em entrevista à DW Brasil, a ex-ministra exalta os feitos dos dois governos do petista na área ambiental e defende a necessidade de adequações. "A base e os eixos estratégicos estão todos ali, e ninguém melhor que o presidente Lula, que começou essa agenda, para fazer essa atualização."
Eleita deputada federal pela Rede em São Paulo, a ex-ministra lembra que o desmatamento caiu em mais de 80% nos governos do petista, enquanto registrou alta superior a 70% com Bolsonaro. Marina avalia que Lula teria condições de retomar iniciativas de cooperação internacional e destravar negociações importantes, como o acordo da União Europeia com o Mercosul.
"Já estava praticamente finalizado quando o governo Bolsonaro descumpriu todos os elementos que nos levariam a honrar nossos compromissos com o Acordo de Paris, com o aumento do desmatamento e o descontrole das políticas de preservação", diz Marina.
"Em um provável governo Lula, todos esses processos serão retomados, e eu não tenho dúvida de que o acordo será finalizado, porque o Brasil já deu demonstrações no passado de que tem como controlar o desmatamento", conclui.
Evangélica, Marina foi escalada pela campanha de Lula para aproximar o ex-presidente desse eleitorado, no qual Bolsonaro registra ampla vantagem.
"Noto que, neste momento, temos lideranças políticas e religiosas que fazem essa manipulação da fé genuína e sincera de uma parte muito grande do povo evangélico. É preciso ter sabedoria para lidar com essa complexidade, e não tratar os evangélicos como se fossem homogêneos. E também não tratar como se fosse uma decisão fixa, permanente, em relação ao Bolsonaro", defende.
DW: Você irá retornar ao parlamento em um cenário de fortalecimento do bolsonarismo. Como a nova composição do Congresso pode afetar as políticas públicas na área socioambiental?
Marina Silva: Durante a minha campanha, eu tinha esse receio, de que poderíamos encontrar um cenário ainda mais difícil do que o atual, que já é muito complicado. Com o dinheiro do orçamento secreto, mais de R$ 50 bilhões que foram despejados nessa eleição para a base de sustentação do governo Bolsonaro e seus aliados, eles conseguiram ampliar ainda mais essa base conservadora, sobretudo reacionária. Isso é muito preocupante.
Caso Bolsonaro ganhe o governo, eu não consigo nem imaginar, porque a soma desse parlamento, que ampliou muito a base conservadora e reacionária, com um governo negacionista, autoritário e que não respeita a Constituição, será o fim da democracia, será o fim das políticas públicas, algo muito perigoso na realidade de um país como o Brasil e de uma região como a nossa, aqui na América Latina.
E se Lula for o presidente?
Em um cenário de eleição do ex-presidente Lula, nós vamos poder implementar muitas políticas a partir do Executivo, até mesmo independentemente de decisões legislativas. Na área social, já existe um marco regulatório. Para as políticas de meio ambiente, nós já temos uma legislação que é muito boa. No dia 12 de setembro, o presidente Lula se comprometeu publicamente com propostas muito consistentes, que agora integram seu programa de governo. Elas constituem a base para que o Brasil possa fazer a transição climática, a transição energética, a transição para uma agricultura de baixo carbono e a sua reindustrialização já na lógica do que seria uma indústria 4.0. O programa dá as bases para que se possam criar essas pilastras de uma transição consistente para um modelo sustentável de desenvolvimento.
Outro ex-ministro do Meio Ambiente, o bolsonarista Ricardo Salles, teve o triplo de votos que você recebeu em São Paulo. Que avaliação você faz desse resultado?
Todas as pesquisas feitas no Brasil desde 2009 mostram que mais de 80% da população já tem consciência de que estamos vivendo sob os efeitos das mudanças climáticas. Quando perguntadas sobre a Amazônia e suas florestas, mais de 90% das pessoas dizem não querer ver as florestas serem destruídas. O problema é como você transforma essa sensibilidade em efetividade eleitoral, votando naqueles que estão comprometidos em resolver o problema da mudança climática, proteger as florestas e manter as bases naturais do desenvolvimento, criando prosperidade e respeitando os povos tradicionais e originários. Essa efetividade ainda não acontece no tamanho que nós gostaríamos e precisa urgentemente acontecer.
A votação do Salles foi superior a 600 mil votos. Mas nós tivemos também uma votação grande para a agenda ambiental. Eu tive 237 mil votos, mas quando você soma os votos dados ao Rodrigo Agostinho (PSB), ao Ricardo Galvão (Rede), ao Ivan Valente (PSOL) e outras candidaturas, você tem algo em torno de 800 mil votos. A diferença é que o Salles concentra simbolicamente na figura dele o voto da destruição. O voto da proteção está dividido entre várias candidaturas do campo socioambiental, como a Sonia Guajajara (PSOL), que foi eleita também. É que, para destruir, às vezes só basta um mesmo ou dois, o Salles e o Bolsonaro, mas para construir, tem que ser uma obra de muitas pessoas.
Como um novo governo de Lula poderia retomar acordos de cooperação com a União Europeia e outros países na área ambiental?
Nós temos uma situação em que a cooperação internacional precisa ser aperfeiçoada no contexto das mudanças climáticas, das agendas que não terão como ser enfrentadas de forma isolada, mas no espaço do multilateralismo. A pandemia nos mostra que é impossível tratar de determinadas situações apenas dentro das fronteiras nacionais, o que não significa que isso venha a ser qualquer tipo de intervenção na soberania de quem quer que seja. Tem que ser uma cooperação soberana. Há um espaço muito grande para essa cooperação. Além de acordos comerciais, dos interesses econômicos e geopolíticos, tem uma cooperação que pode se dar nos espaços dos acordos de cooperação técnico-científica.
Não se trata da transferência de tecnologia, que não se concretiza em países de renda baixa ou mesmo média alta, como é o caso do Brasil. A cooperação técnico-científica possibilita internalizar conhecimento nos dois países e criar uma base tecnológica para fazer avançar os novos processos, em termos econômicos, na direção de uma economia de baixo carbono. Este é um espaço de muita cooperação.
Outra frente são os acordos internacionais, como o da União Europeia com o Mercosul. Já estava praticamente finalizado, quando o governo Bolsonaro descumpriu todos os elementos que nos levariam a honrar nossos compromissos com o Acordo de Paris, com o aumento do desmatamento, e o descontrole das políticas de preservação, aumentando a violência nas comunidades indígenas e ameaçando mudar a legislação ambiental brasileira. O acordo foi suspenso.
Você acredita que o acordo poderá ser finalizado em um novo governo Lula?
Em um provável governo Lula, todos esses processos serão retomados, e eu não tenho dúvida de que o acordo será finalizado, porque o Brasil já deu demonstrações no passado de que tem como controlar o desmatamento. Quando eu fui ministra do Meio Ambiente, e o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento foi implementado, nós conseguimos uma redução do desmatamento em 83%. Ao contrário do Bolsonaro, nós pegamos o desmatamento em um patamar altamente elevado e empurramos para baixo. O Bolsonaro pegou uma base baixa e empurrou para cima, fazendo subir em mais de 70%.
Portanto, já há uma política pública que deu certo. O documento com que o presidente Lula se comprometeu publicamente fala no resgate atualizado da agenda socioambiental perdida, porque ela foi iniciada no governo Lula. É atualizada porque muita coisa mudou, vai precisar de uma atualização, mas a base, os eixos estratégicos estão todos ali, e ninguém melhor que o presidente Lula, que começou essa agenda, para fazer essa atualização. Ele mesmo disse que serão prioridades do governo a proteção da Amazônia e o desenvolvimento sustentável - não só do governo como um todo, mas dele próprio.
O assassinato do jornalista Dom Philips e do indigenista Bruno Pereira, no Vale do Javari, mostraram que o crime organizado na Amazônia atingiu um novo patamar de complexidade nos últimos anos. O que deve ser feito para enfrentar essa realidade à altura?
Hoje, a complexidade é muito maior. Exatamente por isso, um dos pontos do programa de governo fala na retomada atualizada do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento. Para se ter uma ideia, nós conseguimos criar 25 milhões de hectares de unidades de conservação. Isso foi uma espécie de muralha verde para ajudar a conter o desmatamento, além das ações de comando e controle, que colocaram 725 pessoas na cadeia. Esse conjunto de medidas fez o desmatamento cair em mais de 80%. Implodimos 86 pistas de pouso clandestinas, e achávamos que aquilo era um horror. Agora, nós temos 1.264 pistas clandestinas na Amazônia. Esses grupos criminosos levaram o Estado a perder o controle aéreo, terrestre e fluvial em regiões importantes e estratégicas da Amazônia, o que tornam as populações indígenas muito vulneráveis, inclusive com crimes horrendos, como aquele que vitimou Dom e Bruno.
O Plano vai ter que ser atualizado, vai demandar uma infraestrutura muito maior e uma capacidade de trabalho conjunto com vários servidores do próprio governo. O Plano trabalhava com 13 ministérios naquela época, agora mais ainda. E vai ter que substituir todos os militares que estão em órgãos de direção, que não entendem da agenda ambiental, pelos quadros técnicos. Isso não significa que não deva haver um trabalho de parceria com as Forças Armadas naquilo que elas, de fato, podem contribuir. Quando fui ministra, eu trabalhei muito com o Exército. O Coter era uma base logística de operação fundamental para o nosso trabalho no Ministério, junto com a PF, que fazia todo o trabalho de investigação e inteligência, como nessas 25 operações da PF e do Ibama, que prenderam cerca de 725 pessoas.
O bom é que nós já conseguimos fazer. É uma boa base, tem muitas coisas que podem ser preservadas, e outras precisam ser agregadas. Nós sabemos como fazer. Pode ter certeza que é possível preservar a floresta, ser uma potência agrícola de baixo carbono, preservar as populações tradicionais e criar uma nova economia para a proteção da Amazônia, que é a bioeconomia. Nela, a bioindústria é voltada para a biotecnologia, para processos que juntam o conhecimento técnico-científico da modernidade com os saberes milenares das populações indígenas, das populações tradicionais, mantendo a floresta em pé e criando um novo ciclo de prosperidade, no qual ninguém fica para trás: as mulheres, os indígenas, o povo preto, a população LGBTQIA+, todos os segmentos da sociedade brasileira.
Por ser evangélica, você foi escalada pela campanha de Lula para conquistar votos junto a esse eleitorado, que demonstra preferência majoritária por Jair Bolsonaro (PL). É possível atravessar essa barreira?
Como você mesmo disse, eu sou cristã, evangélica. Noto que, neste momento, temos lideranças políticas e religiosas que fazem essa manipulação da fé genuína e sincera de uma parte muito grande do povo evangélico. É preciso ter sabedoria para lidar com essa complexidade, e não tratar os evangélicos como se fossem homogêneos. E também não tratar como se fosse uma decisão fixa, permanente, em relação ao Bolsonaro. Eu diria que algo em torno de 60 milhões a 70 milhões de brasileiros se intitulam evangélicos, mesmo não pertencendo às grandes convenções religiosas. O Censo não está alcançando essa população, porque existem muitas igrejas pequenas, independentes.
Há uma demanda legítima por participação do cidadão, afinal de contas é quase a metade da população no país. É preciso cada vez mais trabalhar no sentido de construir políticas públicas de saúde, de educação, de moradia digna, de vida digna para todas as pessoas. Esse público com certeza é um grande beneficiário, porque a maioria dessas pessoas são pessoas pobres, que vivem em comunidades e sentem a diferença de políticas públicas consistentes. No entanto, há que ter a sabedoria de mediar o respeito, o acolhimento da espiritualidade de um país onde mais de 80% do seu povo se declara cristão. Obviamente que sempre com a clareza de que somos um Estado laico e, assim, as políticas são para todos os segmentos, independentemente de crença, orientação sexual, condição social ou ideológica. Mas devemos ter sempre uma relação de respeito com essa diversidade brasileira.
Essa manipulação que o Bolsonaro e o bolsonarismo fazem tem prejudicado tanto a política quanto a fé cristã evangélica, porque aqueles que não fazem a confissão da fé evangélica a associam com armas, intolerância e política de ódio. Isso não tem nada que ver com o cristianismo, com os ensinamentos de Jesus. Bolsonaro ainda está fazendo outro desserviço, que é apartar os cristãos evangélicos do legado da Reforma Protestante, que está diretamente associada ao mundo evangélico e foi o que contribuiu decisivamente para que se tivesse o Estado laico, a separação entre Estado e religião. O bolsonarismo quer um Estado que é imbricado com a religião, no qual a religião vai ser imposta pelas leis do Estado à população não cristã. Isso não tem nenhuma base bíblica. A Bíblia diz que não é por força nem por violência, é um toque do espírito. Não tem nada a ver com imposição por leis no Congresso ou qualquer forma autoritária, antidemocrática, inconstitucional e antibíblica de fazer a fé cristã chegar às pessoas.