Política e religião combinam? Candidatos expõem divergências
Uma é ateia. O outro, líder evangélico. Aqui, Luciana Genro e Pastor Everaldo mostram opiniões divergentes sobre os mesmos temas e ampliam a discussão iniciada no primeiro debate presidencial
"Me permita chamá-lo de Everaldo. Eu não gosto de misturar política e religião, acho impróprio. O senhor era da base do governo quando a presidente Dilma suspendeu o programa Escola Sem Homofobia. O senhor não se sente responsável pelas mortes de homossexuais, resultado do preconceito?"
"Nunca tive preconceito. Nunca fui responsável por morte nenhuma. E tenho muito prazer e muita honra por meu nome. Sou chamado assim desde a juventude, sempre fui pregador do evangelho (...). Não existe cidadão mais tolerante que o cristão verdadeiro."
O embate aconteceu entre Luciana Genro (Psol) e Pastor Everaldo (PSC) no primeiro debate presidencial das eleições de 2014. Na ocasião, os candidatos finalmente colocaram a questão “política x religião” em pauta e mostraram que estão em lados opostos do muro sobre o qual Dilma Rousseff (PT), Aécio Neves (PSDB) e Marina Silva (PSB) costumam ficar.
A base da discussão pode ser resumida em uma pergunta: até que ponto a religiosidade de um candidato pode influenciar suas propostas? Luciana (que se diz ateia) defende o respeito a todas as crenças, mas acredita que elas não podem intervir de maneira alguma em políticas públicas. Embora elabore discurso semelhante, Everaldo (líder da evangélica Assembleia de Deus), não esconde que carrega bandeiras políticas ligadas à ideologia cristã.
Como esse importante debate não pode acabar tão cedo, o Terra conversou com ambos para buscar explicações mais aprofundadas sobre alguns tópicos específicos. O resultado você confere abaixo.
Laicidade do Estado
Luciana:
“Acho difícil considerar o Brasil verdadeiramente laico quando se tem símbolos religiosos ornamentando lugares públicos. Ainda há influência forte das religiões, principalmente da católica. Na esfera política, tem crescido também a da evangélica. Prova disso é que existe uma bancada de parlamentares que se proclamam evangélicos, com posições conservadoras e até reacionárias em vários aspectos, com influência grande nas políticas públicas. Um exemplo é o programa Escola Sem Homofobia, que foi suspenso por pressão dessa bancada.”
Everaldo: “Graças a Deus vivemos em um País democrático e laico. Graças a Deus tenho visto isso acontecer. Temos liberdade religiosa, liberdade de expressão, liberdade de imprensa. Pelo que eu sei, até hoje a igreja não interferiu em questões políticas. Em todas as democracias do mundo, nos Estados Unidos, na Inglaterra, por exemplo, a religião nunca interferiu em política. A presença de símbolos religiosos em lugares públicos não é desrespeito, é só a cultura brasileira. Por que eu vou tirar o símbolo de lá? Não vejo nada demais.”
Religiões minoritárias
Luciana: “Costumo chamar atenção para o fato de que o Estado laico foi instituído também como garantia para os evangélicos. O Brasil ainda é um País majoritariamente católico; se houvesse quebra da laicidade, ele poderia se instituir em um Estado católico. Isso seria injusto com os evangélicos, que tem o direito de se expressar, assim como os umbandistas ou quaisquer outros religiosos. A laicidade é uma garantia não só para quem é ateu, mas principalmente para quem é adepto de uma religião minoritária.”
Everaldo: “Graças a Deus todas as religiões têm sido respeitadas no País. Eu mesmo nunca desrespeitei ninguém. Convivo com pessoas de todos os credos sem nenhum preconceito. Nunca tive preconceito, nunca sofri preconceito. Não sei dizer por que existe uma bancada evangélica forte e não existem outras. Isso não cabe a mim avaliar.”
Constituição
Luciana: “Tenho a impressão de que a Constituição atual é suficiente para garantir a laicidade do Estado. O problema é desenvolver uma cultura que intimide os políticos por usarem a religião para se promover. Infelizmente é isso que acontece. Eu me recusar a chamar o Everaldo de 'pastor' é uma tentativa de chamar atenção para esse fato. Ele está usando posição religiosa para se promover na política, isso não é correto. Um pastor é pastor dentro da igreja, mas não pode usar esse título para tentar rebanhar votos. Não vejo necessidade de mudanças legais, mas de uma mudança cultural para garantir respeito a todas as religiões, não permitindo que nenhuma delas interfira nas políticas públicas.”
Everaldo: “Não vejo necessidade de nenhuma mudança na Constituição nesse sentido. O Estado é laico desde 1889. Desde o século 19 isso já está garantido. O Brasil é um País maravilhoso em que todas as crenças têm liberdade.”
Direitos LGBT
Luciana: “Sou a favor do casamento civil igualitário e da adoção de crianças por casais homossexuais. Ser contra uma coisa ou outra é direito de todo cidadão, mas estabelecer políticas públicas com base em posições religiosas é desrespeito. Quem tem a convicção de achar que casais homossexuais não devem se casar que não case com um homossexual! Essa pessoa pode aplicar esses princípios na sua vida, mas não pode impor aos outros. Políticas públicas não podem ser orientadas por princípios religiosos. Por princípios que estão na Constituição, como os da igualdade e dos direitos humanos, o gay, a lésbica e o transexual têm que ter os mesmos direitos que o heterossexual.”
Everaldo: “Estou em um País democrático, tenho o direito de defender os princípios nos quais acredito. Sou contra a adoção de crianças por casais homossexuais. Tenho convicção de que isso não é o melhor para as crianças. Não sei o que poderia acontecer com elas, mas sei que não é o melhor. O melhor é a referência, as famílias fortalecidas, o casamento entre homem e mulher. Toda sociedade tem sido formada ao longo dos séculos desta forma. O melhor é quando existe pai e mãe. Quando há separação de pai e mãe já é uma dificuldade para a criança! Isso não é convicção religiosa. Só existe perpetuação de espécie se tem homem e mulher. Não tem nada de religião aí. É biológico.”
Candidatos com títulos religiosos
Luciana: “Acho que usar títulos religiosos em nome de urna é uso abusivo da religião para interferir na política. É impróprio, indevido. Seria mais saudável se pessoas se identificassem apenas com seus nomes e não com os títulos que ostentam. Essa é uma forma de influenciar votos a partir de posição religiosa, de buscar influência por hierarquia da igreja. Isso não contribui para construir a laicidade do Estado.”
Everaldo: “Graças a Deus o Brasil não é Cuba nem Venezuela. Eu posso falar meus princípios, ter minha liberdade. Assim como cada um pode emitir sua opinião. Mas são sempre os mesmos assuntos, ninguém fala, por exemplo, de dois temas importantes que são extremamente religiosos. O primeiro é 'não matarás'. Isso é religioso, está nos Mandamentos. E nós vamos combater a violência. O outro é 'não roubarás'. Também é religioso, também está nos Mandamentos. E nós vamos combater a corrupção. É para essas coisas que eu luto.”
Outras considerações
Luciana: “As crenças são uma parte essencial no que cada um de nós é. Inclusive representa, muitas vezes, uma lente através da qual nós enxergamos o mundo. Não vejo nenhum problema em as pessoas terem crenças. O problema é quando essas crenças se sobrepõem às necessidades de garantia da igualdade e dos direitos humanos. Às vezes é difícil fazer esse debate no processo eleitoral. Quando questionamos o caráter religioso de algumas candidaturas podemos passar a impressão errada de que estamos questionando o direito a se ter uma crença. Por isso sou muito cuidadosa e cautelosa na forma como me expresso sobre o assunto, não quero que pensem que sou contra religião.”
Everaldo: “A religião tirou o mundo do obscurantismo. Se existe escola pública foi em função da demanda da reforma protestante na Alemanha. Até a melhor universidade do planeta, Harvard, é de origem protestante. Existe um país ao norte, os Estados Unidos, que foi de formação protestante e hoje é a primeira economia do mundo. Eu tenho um projeto para o Brasil.”
Números
No levantamento das eleições de 2014 disponível no site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 114 candidatos são apontados como “Sacerdote ou Membro de Ordem ou Seita Religiosa”. Entre eles, 75 levam títulos ligados à religião em seus nomes, sendo que “pastor” (50), “padre” (9) e “bispo” (8) são os mais frequentes.
A lista é composta ainda por um “apóstolo”, um “baba” (babalorixá), dois “irmãos”, uma “mãe”, dois “missionários” e um “presbítero”. Os outros 39 não especificaram seus cargos e ocupações.
O que diz a Constituição
Art. 5: (...) É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva; ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.
Art. 19: É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; recusar fé aos documentos públicos; criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.
Trechos retirados da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988