Script = https://s1.trrsf.com/update-1736967909/fe/zaz-ui-t360/_js/transition.min.js
PUBLICIDADE

Enterrado vivo: a surreal história de como a COVID-19 levou ao caos uma cidade remota na Amazônia peruana

Na cidade de Iquitos, na Amazônia peruana, a primeira onda da COVID-19 trouxe um caos sem precedentes, um mercado negro de oxigênio e valas comuns.

17 jan 2025 - 10h06
Compartilhar
Exibir comentários

Juan Pablo Vaquero foi declarado morto na cidade peruana de Iquitos, na Amazônia, na primeira onda da COVID-19, em abril de 2020. Sua irmã não teve permissão para ver seu corpo. Três dias depois, ele apareceu na casa dela, após supostamente ter acordado em uma pilha de cadáveres na selva.

O "Tio Covid", como Vaquero passou a ser conhecido, tornou-se uma sensação na mídia local. Sua história foi descartada como uma lenda urbana pelas elites políticas e profissionais da cidade. Mas ela tocou uma maioria empobrecida presa em uma crise sem precedentes.

Como mostra minha nova pesquisa sobre a pandemia de COVID-19 em Iquitos, a primeira onda atingiu duramente a cidade. Cerca de 70% de seus habitantes haviam sido infectados em julho de 2020. A região de Loreto - da qual Iquitos é a capital - teve a maior taxa de mortalidade pela doença do Peru, que teve a maior taxa de mortalidade por COVID-19 do mundo.

Eu estava em Iquitos pouco antes da pandemia, pesquisando os desafios sociais e ambientais dessa remota cidade na selva, a maior do mundo sem acesso por estrada.

Quando voltei para lá em 2022, o "Tio Covid" continuava sendo mencionado nas conversas. No início, fiquei cético. Mas quanto mais eu ouvia, mais plausível se tornava sua história.

Capitalismo canibal

A pobreza foi a grande responsável pela gravidade da pandemia em Iquitos. A maioria das pessoas trabalha informalmente nos vastos mercados da cidade. Todos os dias, elas precisam ganhar dinheiro para alimentar suas famílias. Elas não tiveram escolha a não ser furar o bloqueio rigoroso imposto pelo governo central e levar o vírus para suas casas superlotadas.

Mas a principal causa do excesso de mortes foi a escassez crônica de oxigênio medicinal. Décadas de privatização e austeridade dizimaram o sistema de saúde peruano antes da pandemia. E o reduzido orçamento local para saúde é amplamente considerado como tendo sido repetidamente saqueado pelo governo regional de Loreto, infiltrado por máfias envolvidas na mineração ilegal de ouro, na extração de madeira e no comércio ilegal de drogas.

Quando a COVID-19 chegou a Iquitos em março de 2020, o principal hospital da cidade tinha apenas sete leitos de terapia intensiva e uma usina de oxigênio com defeito, incapaz de atender à grande demanda. Um mercado negro surgiu rapidamente, com um único tanque de oxigênio custando 5.000 soles (£ 1.190, ou cerca de R$ 8,8 mil em valores atuais) ou mais.

Em vez de regular esse mercado, o governo regional foi um de seus principais atores. O Ministério da Saúde peruano começou a enviar tanques de oxigênio em voos diários de Lima. Mas funcionários públicos e profissionais médicos me disseram que muitos desses tanques eram roubados e revendidos por gangues criminosas ligadas a figuras poderosas do governo regional, que em 2020 era supostamente o mais corrupto do Peru.

O mercado negro de oxigênio era o capitalismo em sua forma mais canibal. Era um mercado da própria vida, no qual economias de uma vida eram transferidas para as máfias em troca da chance de sobrevivência.

A maioria empobrecida era excluída desse mercado. Milhares morreram de casos evitáveis da doença. No final de abril de 2020, o necrotério do hospital estava transbordando e o incinerador municipal havia quebrado. Uma vala comum foi secretamente aberta fora da cidade, para onde os mortos foram levados em caminhões.

Histórias surreais

Iquitos foi um caso extremo do colapso social vivenciado em todo o mundo durante a pandemia de COVID-19. Para bilhões de pessoas, a normalidade da vida cotidiana foi subitamente substituída por cidades vazias, rodovias desertas e morte em massa. A situação foi frequentemente descrita como "surreal". Mas as pesquisas acadêmicas sobre a pandemia ignoraram em grande parte essa dimensão surreal.

Eu queria abordar essa omissão em minha pesquisa sobre Iquitos. Para isso, usei um método chamado "surrealismo etnográfico", que dá voz a experiências excluídas em relatos acadêmicos padrão, para expor verdades ocultas sobre o colapso da sociedade.

Essa abordagem revelou inúmeras histórias cotidianas em que a realidade assumiu as qualidades surreais de um sonho, como as seguintes experiências que as pessoas compartilharam comigo sobre a jornada dos corpos até a vala comum.

As únicas pessoas dispostas a coletar os corpos para o transporte até a vala comum eram viciados em crack sem-teto, que recebiam uma diária mais comida. Eles foram contratados por um integrante do governo regional, que os descreveu dirigindo em caminhonetes pela cidade deserta, comendo hambúrgueres enquanto se sentavam sobre pilhas de cadáveres embrulhados em sacos de lixo pretos. "Isso foi surreal!", ele riu. Então ele começou a chorar.

No início, os corpos foram mantidos em uma unidade de refrigeração nos arredores de Iquitos. Mas os moradores bloquearam a rodovia com pneus em chamas. Eles temiam o contágio e alegaram que a unidade havia quebrado e que o ar cheirava a carne em decomposição. Uma mulher me disse que tinha visto nuvens negras contendo os espíritos dos mortos e que tinha ouvido seu sofrimento: "Como os mortos choravam! As mulheres que morreram enquanto estavam grávidas choraram, e os bebês que morreram em suas barrigas choraram".

A sepultura ficava na selva, fora da vista da estrada principal. Testemunhas descreveram um processo brutal e caótico, no qual as escavadeiras retiravam os cadáveres com uma pá e os jogavam em uma cova. De acordo com uma mulher: "Eles jogaram os mortos fora como animais". Outro homem concordou: "Como animais, eles os jogaram fora ao lado da estrada".

Uma lenda urbana?

Nesse contexto, a história do "Tio Covid" parecia menos rebuscada.

Encontrei sua irmã em uma das favelas da cidade. Ela me disse que ele havia deixado Iquitos e não queria mais falar sobre sua provação. Mas concordou em compartilhar sua experiência comigo.

Depois de levá-lo ao hospital, ela ficou esperando no corredor. "As pessoas estavam morrendo ao meu redor como galinhas com a peste", disse ela. Ela viu a equipe embrulhar seus corpos em plástico preto e "levá-los embora como lixo".

Purificación Chota Chávez, irmã de Juan Pablo Vaquero, compartilha suas experiências.

Depois de ser informada da morte do irmão na manhã seguinte, ela passou o dia inteiro no hospital tentando descobrir o que havia acontecido com seu corpo. Muitas outras pessoas estavam fazendo perguntas semelhantes. Finalmente, ela voltou para casa naquela noite, sem saber onde ele estava.

Dois dias depois, sua pobreza a obrigou a voltar ao trabalho. Ela se levantou à meia-noite para ir a um mercado noturno clandestino que funcionava em regime de isolamento. De repente, um vizinho gritou que seu irmão estava na porta. Ela abriu a porta e o encontrou lá. Suas roupas estavam imundas e ele cheirava a morte. Todos ficaram aterrorizados e disseram a ela para não deixá-lo entrar. Mas ela o trouxe para dentro e lhe deu banho.

"Onde você estava, irmão?", perguntou-lhe ela. "Eu estava na estrada, em um depósito de lixo", respondeu ele. "Acordei no lixo, em cima de uma pilha de sacos pretos".

A vala comum nos arredores de Iquitos. Japhy Wilson, CC BY
A vala comum nos arredores de Iquitos. Japhy Wilson, CC BY
Foto: The Conversation

Juan Pablo Vaquero e sua irmã nunca receberam uma explicação oficial sobre o que aconteceu. Eles acreditam que ele foi levado para a vala comum nos arredores da cidade e deixado para morrer. Sua história é ridicularizada pelas elites da cidade - aquelas que puderam pagar pelo oxigênio do mercado negro e cujos familiares não foram enterrados secretamente em uma cova aberta.

Mas o "Tio Covid" ainda é celebrado nas favelas de Iquitos, onde passou a simbolizar a sobrevivência rebelde dos pobres, que se recusam a ser derrotados por um sistema capitalista canibal que comercializa o ar que respiram e os reduz a lixo.

A resiliência deles é a verdade mais profunda que sua história surrealista conta. Nas palavras de um morador de favela: "Havia um homem que diziam ter morrido de COVID-19. Eles cavaram um buraco para jogar os corpos e o deixaram lá. Mas o homem reviveu. Ele saiu coberto de vermes e voltou para sua família".

Lições para uma "policrise"

A história da pandemia em Iquitos também capta uma verdade mais ampla sobre a esta época chamada de "policrise", na qual o mundo é dominado por graves problemas econômicos, sociais, políticos e ambientais que só prometem piorar.

Quando a primeira onda da COVID-19 chegou ao fim, havia um consenso em Iquitos de que a realidade revelada exigia uma mudança radical. De acordo com dois padres católicos: "Essa pandemia trouxe à tona todas as nossas falhas. A decomposição da sociedade em Loreto é terrível. O desgoverno e a corrupção trabalham para a morte".

Um consenso semelhante surgiu globalmente, pois especialistas alertaram que não poderia haver retorno à normalidade diante da iminente catástrofe planetária da qual a pandemia era um prenúncio e para a qual havia servido como um alerta urgente.

Mas em Iquitos, o mesmo sistema capitalista canibal continua a dominar. Ninguém foi processado pelos vários supostos casos de corrupção. E quando a segunda onda chegou em janeiro de 2021, todo o ciclo começou novamente, com hospitais em colapso e o ressurgimento do mercado negro de oxigênio.

Em todo o mundo, à medida que nos aproximamos do quinto aniversário do início da pandemia, parece que aprendemos pouco com suas lições.

No contexto de nossa policrise cada vez mais profunda, a figura do "Tio Covid" continua a personificar o sofrimento causado pelo capitalismo canibal. Mas a imagem surreal de um homem morto-vivo cambaleando em uma estrada vazia também se assemelha a esse sistema perverso: um sistema que não apenas mata, mas também se recusa a morrer. Como o "Tio Covid", o capitalismo canibal rasga os cadáveres e cambaleia pela estrada.

The Conversation
The Conversation
Foto: The Conversation

Japhy Wilson não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.

The Conversation Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
Compartilhar
Publicidade
Seu Terra












Publicidade